Abrigo para crianças e adolescentes como medida de proteção: uma controvérsia

AutorRosane Jauczura
CargoCentro Universitário Franciscano - UNIFRA
Páginas99-106

Page 100

1 Introdução

Este artigo tem o objetivo de abordar os enfoques atuais à instituição “abrigo” como uma medida de proteção, prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (BRASIL, 1990). Esses enfoques têm colocado o abrigo, ora como um fator negativo para o desenvolvimento da criança, ora como um fator positivo, ou seja, oportunidade fundamental para o desenvolvimento da criança e do adolescente.

Entretanto, em pesquisa recentemente realizada pela autora com os atores sociais1, chegou-se à conclusão de que se o abrigo deve ser visto, a partir de uma visão ampla, de modo a romper com a dicotomia de fatores positivos e negativos. Na pesquisa realizada com os diferentes atores sociais, envolvidos no processo de abrigamento de crianças e adolescentes, constatou-se uma complexidade ainda maior a ser considerada para a análise do abrigo como instituição. Ao invés de separar-se o modo de estudar o abrigo, concluiu-se que se devemintegrar os dois enfoques, olhando-os de um ponto de vista da totalidade.

A criança e o adolescente, pela Constituição Federal de 1988, se tornam sujeitos de direitos e prioridade absoluta, como seres em processo de desenvolvimento (BRASIL, 1988), portanto mais vulneráveis e necessitadas de cuidados diferenciados e atenção, observando-se as diferenças individuais. Em relação ao direito à convivência familiar e comunitária (BRASIL, 1990 e 2006a), à família devem ser dadas às condições para apoiar, proteger e educar seus filhos, na satisfação de suas necessidades físicas e psicológicas, para que crianças e adolescentes possam ter um desenvolvimento satisfatório, nos aspectos da vida social.

Sempre que os direitos reconhecidos no Estatuto forem ameaçados ou violados, são aplicadas medidas de proteção, preferencialmente, aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários. Dentre essas medidas, encontrase o abrigo2 como a primeira possibilidade de proteção a que se recorre, embora ocupe a sétima posição no Estatuto (ECA, art. 101, inciso VII, parágrafo único), conforme estudo realizado pela autora na sua tese de doutorado. É uma medida de proteção caracterizada pela provisoriedade e transitoriedade, suscitando questões problematizadoras, quanto à aplicabilidade dos princípios legais do Estatuto (BRASIL, 1990) e sua relação com as políticas sociais públicas.

Crianças e adolescentes têm o direito à convivência com sua família e com a sua comunidade, de modo a poderem se desenvolver plenamente como seres humanos. Proteger e fortalecer os vínculos familiares e comunitários tem sido desafios constantes do Estado e da sociedade brasileira, diante do cenário atual de desigualdades sociais, que interferem nas relações sociais e que se expressam na forma de riscos e vulnerabilidades, no cotidiano da vida dessas pessoas.

A história social da criança, do adolescente e da família tem sido marcada pela dificuldade da família em proteger e educar seus filhos, constituindo-se em núcleos familiares vulneráveis e suscetíveis a riscos pessoais e sociais. Frente a essas incapacidades, a família e seus membros devem receber apoio e proteção por parte do Estado e pela sociedade, na garantia da manutenção e do direito ao convívio familiar e comunitário.

A Assistência Social, como política de proteção social, deve garantir atendimento às crianças e aos adolescentes que, por uma série de fatores, não contam mais com a proteção e o cuidado de suas famílias, estando os vínculos ameaçados ou rompidos. Assim, essas crianças e adolescentes, por se encontrarem em situação de risco, são afastados da sua família e da sua comunidade (BRASIL, 2004 e 2006b) e acolhidos em instituição que promova a sua proteção integral, enquanto não haja possibilidade de permanecerem no meio a que pertencem.

O abrigo é a sétima medida de proteção prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990) que deve ser aplicada, sempre que os direitos da criança e do adolescente forem ameaçados ou violados. No caso em que haja necessidade de a criança e o adolescente serem afastados do seu meio familiar e comunitário, a medida de proteção abrigo deve respeitar os princípios de brevidade, excepcionalidade e provisoriedade, priorizando a reintegração ou reinserção familiar, garantidos na legislação vigente (BRASIL, 1990; 2004; 2006a).

Além disso, o abrigo deve ser utilizado em situações transitórias, como a colocação da criança e do adolescente em família substituta (BRASIL, 1990). Violência intrafamiliar, pobreza, inexistência ou ineficácia de políticas públicas que contemplem ações voltadas para a família e que a potencializem, como referência, podem ser arroladas como algumas das causas do afastamento de crianças e adolescentes da família e de seu abrigamento.

Por outro lado, o uso da medida abrigo tem-se configurado mais como uma política de atendimento que põe em risco a aplicabilidade dos princípios legais ECA, violando, por exemplo, o direito à convivência familiar e comunitária, do que servindo para a proteção efetiva das crianças e dos adolescentes, considerados sujeitos de direitos e “prioridade absoluta” (BRASIL, 1990) no país.

Tanto essa medida quanto as medidas anteriores ao abrigamento envolvem a inclusão da família, da criança e do adolescente em programas, projetos, serviços e benefícios que devem estar assegurados nas políticas públicas comprometidas com a garantia dos direitos básicos de todos os cidadãos, em particular, das crianças e dos adolescentes.

Este artigo está dividido em três partes: na primeira, são apresentados, de modo geral, os dois enfoques da controvérsia atual sobre o abrigo; naPage 101 segunda, trata-se o enfoque que vê o abrigo de modo negativo (mais como prejuízo para as crianças e adolescentes); na terceira e última parte, o enfoque que vê o abrigo como proteção. Concluise apresentando algumas questões para a resolução dessa controvérsia.

2 O abrigo: duas perspectivas

O abrigo se torna uma necessidade, quando a família ou os responsáveis pela criança ou pelo adolescente não conseguem efetivar o direito essencial à formação e ao desenvolvimento dos seus filhos e quando o Estado não atua eficazmente, mediante políticas públicas e sociais, na garantia à proteção social da família. Nesse contexto, o acolhimento institucional se revela como uma das alternativas, dentre outras (famílias acolhedoras, adoção), de garantia da convivência, de maneira provisória e excepcional, como está previsto nas normativas nacionais e internacionais.

O Sistema de Garantias e Direitos (SGD) prevê o abrigo como um serviço de proteção de Direitos Humanos para a criança e para o adolescente, que tem o caráter de atendimento inicial, integrado e emergenciale visa prevenir a ocorrência de ameaça aos direitos e atender às crianças e aos adolescentes imediatamente, após a ocorrência dessas ameaças e violações3. Os princípios basilares e fundantes do Estatuto (ECA) estão pautados num Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGD) que está apoiado em três eixos estratégicos de ação: a Promoção dos Direitos Humanos (Atendimento Direto), o Controle da efetivação dos Direitos Humanos (Vigilância) e a Defesa dos Direitos Humanos (Responsabilização), em favor de todas as crianças e adolescentes, de modo que sejam reconhecidos e respeitados como sujeitos de direitos consagrados nos instrumentos normativos nacionais e internacionais.

O Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes (SILVA, 2004) constatou a existência de 20 mil crianças e adolescentes vivendo em 589 abrigos, investigados em âmbito nacional(dentre aqueles que recebem subsídios do governo federal). Em sua maioria, são meninos entre as idades de sete e 15 anos, negros e pobres.

No Município de Santa Maria-RS, através de pesquisa realizada por Arpini e Silva (2006), nas Delegacias Especializadas da Criança e do Adolescente (DPCA) e da Mulher (DPPM), no período entre janeiro e junho de 2004, foi indicado que dos 1.234 casos registrados, 455 r e gis t r o s env olv e r a m 5 5 0 c rianç a s e adolescentes como vítimas.

A análise dos dados da pesquisa aponta que, dessas 550 vítimas registradas na DPCA (não foram computados aqui os dados...

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