Acesso: impactos no direito subjetivo de propriedade, revolução 4.0 e a economia de compartilhamento

Páginas113-160
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ACESSO: IMPACTOS NO DIREITO
SUBJETIVO DE PROPRIEDADE,
REVOLUÇÃO 4.0 E A ECONOMIA DE
COMPARTILHAMENTO
6.1 O ACESSO COMO NOVA FORMA DE EXPERIMENTAR A PROPRIEDADE
Em uma de suas obras, Tercio Sampaio Ferraz Júnior1 menciona: “No mundo
que nos é comum, existe sempre o retorno do mesmo: coisas que sempre ocorrem
de novo, fenômenos que sempre se realizam novamente”. Por esta razão, é possível
buscar na história se em algum momento o homem viveu a noção de titularidade
de forma similar aos dias atuais, por isso também, o medievo – com os riscos que a
aproximação conceitual implica e ciente dos distintos fundamentos – poderia ser
apontado como o período em que a propriedade teve alguma identidade ao com-
partilhamento crescente.
É certo que o sentido de propriedade aponta para conceitos de estabilidade,
então, o que varia, o que f‌lui, não é o apropriar-se em si mesmo, mas como deve
ser experimentada a apropriação. Assim, a propriedade se transforma, se revisita,
se recompõe para afastar ou incorporar noções aptas a dar-lhe o signif‌icado mais
apropriado ao lapso temporal em que se instala.
De um absolutismo romano, para o comunitarismo germânico e medieval, a
propriedade privada alcançou novos traços individualistas com o liberalismo francês
e se funcionalizou em meados do século XX. Agora, com a desmaterialização dos
bens provocada pelos incontornáveis impactos das tecnologias, a propriedade volta
a se revisitar e buscar a leitura que melhor incorpore seu conteúdo em um período
de “erosão do real jurídico pelo mundo virtual”.2-3
1. FERRAZ JÚNIOR, 2014, p. 15.
2. “Se o universo corpóreo conhecido (casas, móveis, cadeiras, mesas, cigarros, livros, imagens etc.) constituía
até agora o meio ambiente de nossa existência (Daisen), orientar-se no mundo signif‌icava mover-se entre
coisas, separando-as, isto é, classif‌icando-as nas suas diferentes formas (corpóreas/incorpóreas, móveis/
imóveis, sensíveis/intelectivas, materiais/imateriais etc.), projetando-as em espaços regulados: o meu, o
teu, o nosso, o deles” (FERRAZ JUNIOR, 2014, p. 34).
3. Idem, p. 29.
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PROPRIEDADE: RECONSTRUÇÕES NA ERA DO ACESSO E COMPARTILHAMENTO • Danielle Portugal De Biazi
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Destarte, quando se diz acesso, a noção parece demasiadamente ampla e pode
incorporar acesso à informação, à internet, à educação, à justiça, à saúde, ao meio
ambiente equilibrado, entre outros, mas não é esse o foco desta tese. Portanto, o
acesso sob a ótica desta pesquisa se limita às consequências de um novo padrão de
comportamento nos direitos reais e ao estudo de alguns instrumentos negociais
existentes para assegurar a inserção deste novo conteúdo ao complexo das titulari-
dades e no exercício do direito subjetivo de propriedade.
Delineadas nos capítulos iniciais as principais fases históricas nas quais o direito
de propriedade esteve no centro do debate, mereceram relevo o período romano,
a Idade Média e a ascensão burguesa. Sempre e em qualquer das etapas, com dife-
rentes níveis de atuação, este direito subjetivo exerceu inf‌luência sobre os modelos
econômico-sociais do mundo. Teorias da função social e os direitos fundamentais
sociais marcam época e remodelam o direito privado a partir da linguagem civil-
-constitucional.
Agora, os novos hábitos provocam, para além de social, que a propriedade seja
comunicacional e isso afeta o seu condão de direito subjetivo, afeta a concepção
de exclusividade. Isto é, não basta obedecer aos padrões exigíveis pelo artigo 1.228
e parágrafos do Código Civil; mais do que desenvolver seu conteúdo sob a luz do
disposto na ordem constitucional, o acesso funcionaliza a exclusividade4 e promove
a criação de negócios que modelam o exercício do direito subjetivo sob perspectivas
desaf‌iadoras e desconhecidas.
Por isso, as coisas corpóreas precisam, de algum modo, incorporar o intangível
que se impõe e parte importante desta noção deve ser extraída da ideia de acesso.
Portanto, não há intenção de explorar, para f‌ins desta tese, o acesso em seu sentido
mais amplo, que alcança bens imateriais (direitos autorais, propriedade intelectual
e até mesmo direitos difusos), mas apenas os seus ref‌lexos no direito de propriedade
privada como direito real máximo disciplinado pelo Código Civil brasileiro no seu
Livro III, do Direito das Coisas.
Isso implica, por consequência, uma análise f‌ilosóf‌ica, porque no mundo
virtual que se colocou diante da sociedade, o chamado homo ludens5 nem sempre
está disposto a lidar com coisas, mas a acessá-las e isso se faz mediante autonomia
privada, a partir de negócios jurídicos não raramente atípicos. Nota-se que, para
f‌ins de direitos reais, o acesso precisa estar enclausurado em coisas, e este termo
(acesso) que antes parecia tocar apenas a ordem da imaterialidade passa a acontecer
no plano dos bens corpóreos. Os negócios começam a ser desenvolvidos de modo
4. FERRAZ JÚNIOR, 2014, p. 49.
5. “Atualmente, com a revolução tecnológica, nasce uma outra f‌igura, o homo ludens, que sucede o animal
laborans, uma nova relação se estabelece: homem/aparelho eletrônico, e que a pessoa humana se transforma
em um performer, que vive um espetáculo, que dispensa muitas vezes a ação e privilegia o ato de digitar”
(DONNINI, 2017, p. 21).
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6 • ACESSO: IMPACTOS NO DIREITO SUBJETIVO DE PROPRIEDADE, REVOLUÇÃO 4.0
que o sujeito apropria-se de bens, por vezes, mais em razão da experiência, do que
em razão do domínio por si mesmo. Sobre esta transição é o que se passa a expor.
6.1.1 Revolução 4.0: o acesso como forma de fruição dos bens corpóreos
Os direitos reais e o direito dos contratos, mesmo com os indispensáveis im-
pactos da constitucionalização do direito civil, pautam pela máxima da segurança
jurídica. Não há quem pretenda desenvolver negócios sob a sombra da incerteza.
Ocorre que os negócios celebrados no século passado partiam de um estilo de vida
deliberadamente distinto do pregado na atualidade.
Nesse ponto é pertinente a colocação de Jeremy Rifkin,6 quando pontua que
Henry Ford, ao desenvolver a indústria automobilística, não teria, naquele momento,
pensado que seria um ótimo negócio alugar seus carros. Sua intenção era a venda, a
transmissão de propriedade: ter era sinônimo de sucesso. O mesmo se extrai de um
trecho da literatura f‌iccional em que a norte-americana Toni Morrison, ganhadora
do prêmio Nobel, em sua obra intitulada “O olho mais azul”, destaca a importância
da propriedade para que o negro pudesse ser identif‌icado como alguém de valor e
a luta que isso signif‌icava para aquelas pessoas que não tinham nada além da força
de trabalho7.
Não há dúvidas de que propriedade exerce protagonismo, mas o desejo por
mobilidade lhe confere um impacto nunca experimentado e, por sua vez, promove
o setor de serviços. Locação pode não ter sido o sonho de negócio de Henry Ford,
mas é justamente o que coloca um número expressivo de empresas em destaque na
atualidade, como foi o exemplo do Airbnb mencionado no capítulo anterior.
Fundadas nesta premissa, que busca conjugar segurança jurídica com realidade
social, surgem pesquisas que visam incluir estudos mais profundos ao direito de
acesso. Preliminarmente, parece pertinente buscar o conteúdo do termo acesso, que
vem do latim accessus e signif‌icava aproximação, entrada.
No dicionário Aurélio, acesso pode indicar, entre muitos signif‌icados, ingresso,
entrada, trânsito, passagem, comunicação, signif‌icados que em muito se aproximam
à explicação oferecida por Paulo Lôbo que busca diferenciar o acesso do direito de
6. RIFKIN, 2001, p. 61.
7. O trecho literário que retrata a f‌ilosof‌ia contemporânea ao fordismo é justamente o seguinte: “Saber que
estar na rua era coisa que existia criava em nós uma fome por propriedade, por posse. A posse f‌irme de um
quintal, um alpendre, uma parreira. Os negros que tinham propriedade dedicavam toda a energia, todo o
amor, aos seus ninhos. Como pássaros frenéticos e desesperados, decoravam tudo com exagero; mexiam e
remexiam nas casas conseguidas a duras penas; enlatavam, faziam geleias e conservas o verão inteiro para
encher armários e prateleiras; pintavam e enfeitavam cada canto da casa. E essas casas erguiam-se como
girassóis de estufa entre as f‌ileiras de ervas daninhas que eram as casas alugadas. Os negros que alugavam
lançavam olhares furtivos para aqueles quintais e alpendres de casas próprias e assumiam com mais f‌irmeza
o compromisso de comprar um lugarzinho bonito” (MORRISON, 2019, Kindle, posição 174).
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