Acórdão Nº 08004120620238205159 de TJRN. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, Segunda Câmara Cível, 14-12-2023
Data de Julgamento | 14 Dezembro 2023 |
Classe processual | APELAÇÃO CÍVEL |
Número do processo | 08004120620238205159 |
Órgão | Segunda Câmara Cível |
Tipo de documento | Acórdão |
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE
SEGUNDA CÂMARA CÍVEL
Processo: | APELAÇÃO CÍVEL - 0800412-06.2023.8.20.5159 |
Polo ativo |
BERENICE DE MIRANDA |
Advogado(s): | HUGLISON DE PAIVA NUNES |
Polo passivo |
BANCO BRADESCO S/A |
Advogado(s): | FELIPE D AGUIAR ROCHA FERREIRA |
APELAÇÃO CÍVEL Nº 0800412-06.2023.8.20.5159
APELANTE: BERENICE DE MIRANDA
ADVOGADO: HUGLISON DE PAIVA NUNES
APELADO: BANCO BRADESCO S/A
ADVOGADO: CARLOS EDUARDO CAVALCANTE RAMOS
RELATORA: DESEMBARGADORA MARIA DE LOURDES AZEVÊDO
EMENTA: DIREITO PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE COBRANÇA INDEVIDA C/C REPETIÇÃO DO INDÉBITO E DANOS MORAIS COM PEDIDO DE TUTELA DE URGÊNCIA. CONTRATO BANCÁRIO. DESCONTOS INDEVIDOS. EXTINÇÃO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. FRACIONAMENTO E PULVERIZAÇÃO DE AÇÕES DA MESMA PARTE E EM RELAÇÃO À MESMA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. PEDIDO E CAUSA DE PEDIR SEMELHANTES OU DECORRENTES DA MESMA RELAÇÃO JURÍDICA. CONDUTA NÃO ADMISSÍVEL. VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA TRANSPARÊNCIA, DA LEALDADE, DA BOA-FÉ, DA COOPERAÇÃO E DA ECONOMIA PROCESSUAL. ARTIGOS 5º, 6º E 8º DO CPC. NOTA TÉCNICA DO CIJ/TJRN. PRECEDENTES DE VÁRIOS TRIBUNAIS. DESPROVIMENTO DO RECURSO.
A C Ó R D Ã O
Acordam os Desembargadores que integram a 2ª Câmara Cível deste Egrégio Tribunal de Justiça, em Turma e à unanimidade, em conhecer e desprover o recurso, nos termos do voto da relatora, parte integrante deste.
R E L A T Ó R I O
Berenice de Miranda interpôs apelação contra sentença proferida pelo Juízo da Vara Única da Comarca de Umarizal/RN (ID nº 21793539), o qual extinguiu a presente Ação Declaratória de Cobrança Indevida c/c Repetição do Indébito e Danos Morais com Pedido de Tutela de Urgência que ajuizou em desfavor do Banco Bradesco S/A, sem resolução do mérito, nos termos do art. 485, IV e VI do CPC, pelo fato da existência de seis (06) processos envolvendo as mesmas partes, com narrativas idênticas, os quais poderiam ter sido apresentados numa única demanda - Processos nº 0800411-21.2023.8.20.5159, 0800412-06.2023.8.20.5159, 0800413-88.2023.8.20.5159, 0800414-73.2023.8.20.5159, 0800415-58.2023.8.20.5149 e 0800416-43.2023.8.20.5159.
Em suas razões (ID nº 21793541) sustenta que as demandas apontadas não possuem o mesmo pedido e causa de pedir, e estão embasadas em contratos diferentes, daí não haver litispendência.
Conclui requerendo o provimento do apelo, para ver reconhecida a pretensão inaugural.
Apresentadas contrarrazões (ID nº 21793544), o recorrido pugna pelo conhecimento e desprovimento do reclame, mantendo-se a sentença recorrida por seus próprios fundamentos.
É o relatório.
V O T O
Preenchidos os requisitos de admissibilidade, conheço do recurso.
A sentença registrou que a parte autora propôs outras demandas judiciais (fracionamento artificiais de ações) com base em narrativas quase idênticas (valores indevidamente descontados em sua conta bancária), caracterizando modo abusivo e predatório, bem como que o autor poderia ter manejado apenas uma ação, sem que houvesse qualquer prejuízo para a defesa de seus interesses e o processo foi extinto sem resolução de mérito (art. 485, IV e VI do CPC).
Os processos discutem a cobrança de valores debitados em conta-corrente da parte apelante, provenientes de tarifas bancárias, título de capitalização, empréstimo pessoal, anuidade de cartão de crédito e aplicação, e que todas as demandas, a parte autora postulou indenização por danos materiais e morais decorrentes de tais cobranças e descontos.
Está em análise recurso decorrente de julgado em demandas judiciais que buscam diluir a pretensão da parte autora no maior número possível de ações, mediante o fracionamento da causa de pedir, que se poderia cumular em uma única ação, mas optou por utilizar o Poder Judiciário para conseguir vantagens indevidas ou várias indenizações decorrentes da mesma relação jurídica.
Esse método, assemelhado a um “modelo de negócio”, muitas vezes traz grandes benefícios à parte e a seus patronos porque aumenta suas chances de, ao menos em uma das ações, por exemplo, ocorrer revelia ou a instituição financeira demandada deixar de apresentar provas, em especial o contrato assinado, a refutar as alegações da parte autora, sobretudo nas relações de consumo que se tem em seu favor a inversão do ônus da prova.
A apelação interposta pela parte autora baseia-se na multiplicidade de ações ajuizadas contra o Banco Bradesco S/A. A sentença extinguiu o processo sem resolução do mérito, na forma do art. 485, IV e VI do CPC, ao verificar a existência de diversos processos, repita-se.
O uso dessa prática tem se tornado comum no Judiciário: o ajuizamento de ações de forma fracionada e pulverizada, que poderiam ser aglutinadas em um único processo. Isso causa prejuízos ao Judiciário e contraria o princípio da lealdade processual e contrapõe-se ao uso indevido do Poder Judiciário para obter vantagem indevida. De fato, é um artifício a violar frontalmente os princípios da transparência, da lealdade, da boa-fé e economia processual.
As demais ações envolvem as mesmas partes e possuem a mesma causa de pedir ou com pedidos semelhantes, cuja única diferença é o fato de que os descontos se referem a nomenclaturas e descontos diversos e possíveis contratos distintos, porém realizados na mesma conta (às vezes, o número do contrato é distinto porque se coloca o número da parcela).
A pulverização ou o fracionamento de demandas não pode ser admitida. Se é possível solucionar o conflito em um único processo, não há razão a justificar o ingresso de várias ações com o nítido propósito de dificultar a defesa dos réus e obter a cumulação de indenizações, confiando muitas vezes que em algumas ou, ao menos em um, haverá deficiência de defesa ou até mesmo total ausência de contestação dos pedidos.
Veja-se os artigos 5º, 6º e 8º do CPC:
Art. 4º As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.
Art. 5º Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.
Art. 6º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva. (…)
Art. 8º Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.
O núcleo do fundamento da sentença consiste na afirmação exaustivamente provada, que esta demanda se caracteriza como artificial e predatória e essa conclusão encontra amparo nos autos a justificar sua extinção sem resolução do mérito, especialmente pela dicção do art. 485, VI do CPC (ausência de interesse processual).
O exercício abusivo do direito de acesso à justiça pode e deve ser reprimido pelo Judiciário, e o ajuizamento em massa de litígios, de maneira indevida, prejudica o acesso à justiça de quem realmente necessita de intervenção judicial para solucionar alguma questão, eis que assoberba o Judiciário, influindo na qualidade da prestação jurisdicional.
A demanda em exame apresente forte carga de litigiosidade artificial, e essa conclusão também encontra abrigo no art. 375 do CPC, que impõe ao juiz aplicar as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece, e ninguém melhor do que ele para observar e combater tal fenômeno, o que fez com maestria singular.
A sentença deu fiel interpretação e correta aplicação à norma legal fazendo uso adequado dos poderes e deveres que lhe são conferidos pelo art. 139, III do CPC:
Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe:
I ( …)
II ( …)
III - prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça e indeferir postulações meramente protelatórias (negrito acrescido).
Os Tribunais também reconhecem o poder-dever do juiz de reprimir demandas predatórias. Eis alguns julgados recentes:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO - DEMANDA ARTIFICIAL E PREDATÓRIA - IRREGULARIDADE REPRESENTAÇÃO PROCESSUAL - EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO - CABIMENTO. Para evitar a litigiosidade artificial e práticas predatórias no âmbito do Poder Judiciário, o Magistrado possui o poder-dever de tomar medidas saneadoras para coibir o uso abusivo do acesso à Justiça. A capacidade processual e a representação judicial das partes constituem pressupostos processuais de constituição e desenvolvimento válido e regular do processo. Tendo o procurador dado ensejo à movimentação indevida do aparato judicial, pelo princípio da causalidade, cabível sua condenação ao pagamento das custas e despesas do processo. (TJMG - Ap. Civ. 1.0000.23.169309-4/001, Rel. Des. Estevão Lucchesi, 14ª CÂMARA CÍVEL, j. em 19/10/2023, pub. da súmula em 19/10/2023).
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DECLARATÓRIA - NEGATIVAÇÃO INDEVIDA - NOTA TÉCNICA Nº 01/2022 EMITIDA PELO CIJMG - LITIGÂNCIA PREDATÓRIA - VICIO DE REPRESENTAÇÃO - AUSÊNCIA DE PODERES VÁLIDOS - PRESSUPOSTO DE VALIDADE INOCORRENTE - EXTINÇÃO DO FEITO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO.
- A nota técnica nº 01/2022 - emitida pelo CIJMG - aponta parâmetros para identificação de demandas predatórias e orienta boas práticas de gestão de processos judiciais para o enfrentamento (prevenção e combate) da litigância predatória. (TJMG - Ap. Civ. 1.0000.23.091864-1/001, Relatora: Des.(a) Lílian Maciel, 20ª CÂMARA CÍVEL, j. em 18/10/2023, pub da súmula em 19/10/2023).
“Para evitar a litigiosidade artificial e práticas predatórias no âmbito do Poder Judiciário, o Magistrado possui o poder-dever de tomar medidas saneadoras para coibir o uso abusivo do acesso à Justiça. A capacidade processual e a representação judicial das partes constituem pressupostos processuais de constituição e desenvolvimento válido e regular do processo. Tendo o procurador dado ensejo à movimentação indevida do aparato judicial, pelo princípio da...
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