Acórdão Nº 08087226020208200000 de TJRN. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, Câmara Criminal, 10-12-2020

Data de Julgamento10 Dezembro 2020
Classe processualHABEAS CORPUS CRIMINAL
Número do processo08087226020208200000
ÓrgãoCâmara Criminal
Tipo de documentoAcórdão

PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE
CÂMARA CRIMINAL

Processo: HABEAS CORPUS CRIMINAL - 0808722-60.2020.8.20.0000
Polo ativo
ADEMAR FERREIRA DA SILVA
Advogado(s): AMALIA ROSA DE MORAES SILVA, ANDREO ZAMENHOF DE MACEDO ALVES, JOVANA BRASIL GURGEL DE MACEDO, OSMAR JOSE MACIEL DE OLIVEIRA
Polo passivo
JUÍZO DE DIREITO DA VARA ÚNICA DA COMARCA DE CARAÚBAS/RN
Advogado(s):

Habeas Corpus Com Liminar n.° 0808722-60.2019.8.20.0000

Origem: Vara Única da Comarca de Caraúbas/RN.

Impetrante: Dra. Amália Rosa de Moraes Silva e outros.

Paciente: Ademar Ferreira da Silva.

Aut. Coatora: MM Juiz (a) de Direito da Vara Única da Comarca de Caraúbas/RN

Relator: Desembargador Amílcar Maia (em substituição legal)

EMENTA: CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS COM LIMINAR. PECULATO. PRETENSO TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. PERCEBIMENTO LÍCITO DE SALÁRIO POR SERVIDORA PÚBLICA SEM A EFETIVA CONTRAPRESTAÇÃO DO SERVIÇO COM A CONIVÊNCIA E ACOBERTAMENTODO SUPERIOR HIERÁRQUICO. SITUAÇÃO JURÍDICA QUE PODE ENSEJAR, EM TESE, SANÇÕES DE NATUREZA DISCIPLINAR OU CIVIL, NÃO SE ADEQUANDO AO FATO TÍPICO PENAL. PRECEDENTES DO STJ E DESTA CORTE DE JUSTIÇA. INEQUÍVOCA ATIPICIDADE DA CONDUTA. CONHECIMENTO E CONCESSÃO DA ORDEM QUE SE IMPÕE.


ACÓRDÃO

Acordam os Desembargadores que integram a Câmara Criminal deste Egrégio Tribunal de Justiça, à unanimidade de votos, em dissonância com o parecer da 16.ª Procuradoria de Justiça, em conhecer e conceder a ordem de habeas corpus, determinando o trancamento da ação penal de nº 0100434-18.2017.8.20.0115, instaurada em desfavor do paciente Ademar Ferreira da Costa, com extensão dos efeitos a corré Elesandria Batista dos Santos, tudo nos termos do voto do Relator, parte integrante deste.

RELATÓRIO

Trata-se de habeas corpus com pedido liminar impetrado pela advogada Amália Rosa de Moraes Silva e outros em favor de Ademar Ferreira da Silva, apontando como autoridade coatora o Juiz de Direito da Vara Única da Comarca de Caraúbas/RN.

Alegam os impetrantes que o paciente foi denunciado pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte, pela suposta prática do crime de peculato, sendo réu na ação penal nº º 0100434-18.2017.8.20.0115, em trâmite no juízo da Vara Única da Comarca de Caraúbas/RN.

Asseveram que inexiste justa causa para a propositura da ação penal, em razão da desconexão entre os fatos narrados e a conduta imputada ao Paciente, como também pela reconhecida atipicidade da conduta narrada na denúncia.

Acrescem que “O SERVIDOR PÚBLICO QUE SE APROPRIA DOS SALÁRIOS QUE LHE FORAM PAGOS E NÃO PRESTA OS SERVIÇOS, NÃO COMETE PECULATO, o que de logo já evidencia a atipicidade da conduta da acusada ELESANDRIA BATISTA DOS SANTOS, e, por consequência, a atipicidade das supostas condutas atribuídas a ADEMAR FERREIRA DA SILVA, uma vez que a Denúncia aponta para uma inexistente relação de causalidade entre o comportamento de ambos. As ações narradas na exordial acusatória, caso fossem verdadeiras, poderiam ser considerados, no máximo, atos de improbidade administrativa, e não delitos penais.”.

Concluem, requerendo a concessão da ordem de habeas corpus para trancar a ação penal pela flagrante ausência de justa causa da persecução penal referente à sua pessoa, por faltar tipicidade nas condutas que são objetos da Ação Penal, já que sequer podem ser consideradas como crimes; ”.

Juntaram os documentos que acharam pertinente.

Atendendo ao despacho de ID 7623091, a autoridade coatora prestou as informações solicitadas (ID 8076255 – Págs. 01-02).

Parecer da 16.ª Procuradoria de Justiça opinando pelo conhecimento e denegação da ordem (ID 8114278 - Págs. 01-13).

É o relatório.

VOTO


Presentes os requisitos do art. 654, § 1º, do Código de Processo Penal, recebo a presente ação.

Como é cediço, o habeas corpus pode ser veiculado para o trancamento da ação penal. Entretanto, somente terá sucesso nos casos em que configurada de plano uma das hipóteses estabelecidas em lei, como previsto no art. 395, do Código de Processo Penal, verbis:

Art. 395. A denúncia ou queixa será rejeitada quando:

I – for manifestamente inepta;

II – faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal; ou

III – faltar justa causa para o exercício da ação penal.

Do contrário, deve a inicial acusatória ser recebida para que, após a instrução processual, possa se concluir pela responsabilidade penal ou não do paciente. Isso porque o trancamento da ação penal, na via estreita do habeas corpus, constitui medida restritíssima no direito processual penal, somente adotada em hipóteses bem definidas e excepcionais.

No caso, verifico que assiste razão aos impetrantes, eis que comprovada a inequívoca atipicidade da conduta narrada na peça acusatória.

A denúncia se lastreia no entendimento de haver incorrido o acusado, juntamente com Elesandria Batista dos Santos, no delito de peculato, previsto no art. 312 do Código Penal, por vinte e uma vezes (art. 71 do CP), que assim dispõe:

"Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio:

Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa.

§ 1º - Aplica-se a mesma pena, se o funcionário público, embora não tendo a posse do dinheiro, valor ou bem, o subtrai, ou concorre para que seja subtraído, em proveito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário."

Malgrado a peça acusatória se ache estribada em elementos de prova suficientes no que concerne a indícios no sentido de que a servidora pública Elesandria Batista dos Santos, durante esparso lapso temporal em que o acusado, ora paciente, esteve desempenhando as funções de Prefeito do município de Caraúbas/RN, percebeu remuneração sem a devida contraprestação dos serviços, com probabilidade concreta de conivência e acobertamento por parte deste, não verifico, na casuística, como demonstrada concretamente a figura do fato típico formal na seara criminal em discussão.

Isto porque, firme é o posicionamento jurisprudencial no sentido de que a apropriação por servidor de salário licitamente percebido sem o dispêndio da mão de obra respectiva, não configura fato típico passível de punição na esfera penal.

Ou seja, tal proceder embora antiético, antijurídico, desvirtuado da finalidade pública, digno de elevada reprovação, e afronte ao princípio da moralidade, resta limítrofe ao âmbito da seara disciplinar ou civil (improbidade administrativa), o que perpassa para o Chefe Imediato eventualmente acobertador.

Deste modo, em sendo o pagamento do servidor imposição legal, a eventual conduta de não prestar o devido expediente, possibilitada através de hipotético conluio com o seu Chefe Imediato, é dotada de atipicidade penal.

Em situação muito assemelhada a presente, o STJ, nos autos do RHC nº 60601/SP, entendeu, por trancar Ação Penal no correspondente ao ato de percebimento lícito de salário por assessor de Câmara Municipal sem a correspondente contraprestação, inclusive com a existência de atestados de frequência possivelmente tidos por inverídicos, exarados por Vereador (seu Chefe imediato), mantendo o transcurso da persecução penal apenas quanto à aventada falsidade ideológica, em razão de eventual falseamento em declarações de assiduidade para ambos os recorrentes (servidor e Chefe Imediato), como abaixo se vê:

“PROCESSUAL PENAL E PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. PECULATO. ATIPICIDADE. FALSIDADE IDEOLÓGICA. DOLO. RELEVÂNCIA JURÍDICA. REEXAME FÁTICO-PROBATÓRIO. REVOGAÇÃO DE MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS DA PRISÃO. PREJUDICIALIDADE ... 2. Entende essa Corte que servidor público que se apropria dos salários que lhe foram pagos e não presta os serviços, não comete peculato, porquanto o crime de peculato exige, para sua configuração em qualquer das modalidades ( peculato furto, peculato apropriação ou peculato desvio), a apropriação, desvio ou furto de valor, dinheiro ou outro bem móvel. 3. O recorrente, embora recebesse licitamente o salário que lhe era endereçado, não cumpriu o dever de contraprestar os serviços para os quais foi contratado. 4. Atipicidade dos fatos. Configuração, em tese, de falta disciplinar ou ato de improbidade administrativa ... 6. Prejudicado o exame da ilegalidade da decisão que determinou a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão, porquanto extrai-se do andamento processual do processo de origem que, após a presente impetração, foram prolatadas outras decisões mantendo as referidas medidas, atestando a sua necessidade de acordo com o contexto fático atual. 7. Recurso em habeas corpus parcialmente provido, para determinar o trancamento da ação penal quanto ao crime de peculato ...(STJ - RHC 60.601/SP, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 09/08/2016, DJe 19/08/2016).

Calha consignar outro julgado do STJ, mutatis mutandis, advindo, inclusive, de irresignação recursal do Ministério Público deste Estado, no qual adicionava a argumentativa de obtenção por parte da servidora de atestados falsos de frequência para se desvencilhar da prestação dos serviços perante a Assembleia Legislativa do RN:

“PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. MEDIDA EXCEPCIONAL. PECULATO. ATIPICIDADE. OFENSA AO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO SOCIETATE. AUSÊNCIA. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. Segundo o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte, a agravada obteve atestados falsos de frequência, percebendo a remuneração do cargo de Agente Legislativo sem a devida prestação de serviços....

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