Acórdão nº 50000797120178210054 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Segunda Câmara Criminal, 23-02-2022

Data de Julgamento23 Fevereiro 2022
ÓrgãoSegunda Câmara Criminal
Classe processualApelação
Número do processo50000797120178210054
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Tipo de documentoAcórdão

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20001665469
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

2ª Câmara Criminal

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Apelação Criminal Nº 5000079-71.2017.8.21.0054/RS

TIPO DE AÇÃO: Leve (art.129, caput)

RELATORA: Desembargadora GISELE ANNE VIEIRA DE AZAMBUJA

APELANTE: SEGREDO DE JUSTIÇA

ADVOGADO: CRISTIANO VIEIRA HEERDT (DPE)

APELADO: SEGREDO DE JUSTIÇA

RELATÓRIO

O MINISTÉRIO PÚBLICO ofereceu denúncia contra GLAUCIO DE MATOS FORTES, com 26 anos de idade na data dos fatos, dando-o como incurso nas sanções do artigo 129, § 9º, do Código Penal, com incidência da Lei n.º 11.340/06, pela prática do seguinte fato delituoso:

“No dia 15 de janeiro de 2017, por volta da 01h50min, na Rua Sepé Tiaraju, n. 2352, nesta Cidade, o denunciado GLÁUCIO DE MATOS FORTES ofendeu a integridade corporal da vítima Luciane Machado Pereira, sua companheira.

Na ocasião, o denunciado, após ingerir bebida alcoólica, iniciou uma discussão com a vítima e, na sequência, jogou-a no chão, passando a agredi-la como socos e chutes, provocando-lhe lesões corporais consistentes em “escoriação em antebraço esquerdo”, conforme descrito no boletim de atendimento ambulatorial da fl. 11/IP e auto de exame de corpo de delito de fl. 13/IP. O crime foi praticado em situação de violência doméstica e familiar”

A denúncia foi recebida em 21 de julho de 2017 (evento 3, DEC4).

O réu foi citado pessoalmente (evento 3, OUT - INST PROC5, fls. 04-06), tendo apresentado resposta à acusação por intermédio da Defensoria Pública do Estado (evento 3, DEFESA PRÉVIA6).

Durante a instrução, foram ouvidas a vítima, uma testemunha, e ao final, interrogado o acusado (evento 3, OUT - INST PROC7, fl. 17).

Certificados os antecedentes criminais do réu (evento 3, OUT - INST PROC7, fl. 20).

Encerrada a instrução, as partes apresentaram memoriais escritos (evento 3, ALEGAÇÕES8 e evento 3, ALEGAÇÕES9).

Sobreveio a sentença, de lavra da Dra. Magáli Ruperti Rabello, de procedência da ação penal para condenar o réu GLAUCIO DE MATOS FORTES nas sanções do artigo 129, § 9º, do Código Penal, com incidência da Lei n.º 11.340/06, à pena privativa de liberdade de 03 (três) meses de detenção, em regime inicial aberto, sendo suspenso o cumprimento da pena pelo período de 02 (dois) anos, mediante a prestação de serviços à comunidade pelo primeiro ano da execução e o comparecimento trimestral do réu a juízo para informar e justificar suas atividades (evento 3, SENT11).

A sentença foi publicada em 23.08.2019 (fl.06, evento 3, DOC11).

O réu foi intimado pessoalmente da sentença (evento 3, OUT - POS SENT12).

A defesa apelou tempestivamente (evento 3, TERMO13). Em suas razões, requereu a reforma da sentença para absolver o acusado por insuficiência probatória quanto ao fato denunciado. Defendeu que a prova não pode estar alicerçada unicamente na palavra da vítima. Subsidiariamente, requereu o reconhecimento da atenuante da confissão espontânea, com a redução da pena aquém do mínimo legal, alegando a inconstitucionalidade da Súmula 231 do STJ. Por fim, alegou que o réu não possui condições de arcar com eventual pena de multa que possa ser imposta (evento 3, APELAÇÃO15).

Os autos foram remetidos a esta Corte, tendo sido determinado seu retorno ao primeiro grau para que o Ministério Público apresentasse contrarrazões ao recurso de apelação (evento 4, DESPADEC1).

O Ministério Público apresentou contrarrazões (evento 12, CONTRAZAP1) e os autos retornaram a esta Corte.

Em parecer, a ilustre Procuradora de Justiça, Dra. Jacqueline Fagundes Rosenfeld, opinou pelo não provimento do recurso defensivo (evento 11, PARECER1).

Vieram os autos conclusos para julgamento.

É o relatório.

VOTO

Eminentes Colegas:

Conheço do recurso uma vez que adequado e tempestivo.

Adianto que a sentença condenatória deve ser confirmada, uma vez que devidamente fundamentada com base nos elementos de decisão constantes dos autos, não comportando reforma.

A materialidade delitiva restou evidenciada pelo registro do boletim de ocorrência (fls. 04-05, evento 3, OUT - INST PROC3), pelo termo de declaração da vítima (fl. 07, evento 3, OUT - INST PROC3), atestado médico (fl. 12, evento 3, OUT - INST PROC3), auto de exame de corpo de delito (fl. 14, evento 3, OUT - INST PROC3), bem como pela prova oral carreada aos autos.

A autoria, igualmente, é incontroversa, tendo o apelante confirmado que agrediu a ofendida.

Acerca da prova oral produzida na instrução processual, colaciono, no que importa, trecho da sentença, que bem sintetizou a prova colhida:

"Com efeito, o réu, na seara judicial (CD - fl. 45) confessou os fatos. Relatou que o crime realmente aconteceu, mas ocorreu por ciúmes da parte do declarante. Disse que na ocasião, saiu da piscina e agrediu a companheira, assim com ela o agrediu.

A vítima, por seu turno, relatou em juízo (CD - fl. 45) que o réu bebeu e ficou alterado, ocorrendo discussões, quando ele passou a agredí-la com chutes, derrubando-a no chão, resultando em lesões nos braços e na cabeça. Disse que o fato foi isolado e depois acabaram o relacionamento. Contou que o motivo da briga foi o fato de que a declarante não querer entrar na piscina com um casal de amigos. Disse que na data era calor e que estavam bebendo cerveja. Afirmou que não entrou na piscina, pois estava com a filha pequena e ela estava com o telefone e que de dentro da piscina o réu lhe jogou uma lata de cerveja, seguindo com a discussão e as agressões.

Vainer M. P., policial militar, em juízo (CD - fl.45), aduziu que atendeu a ocorrência e recorda que chegou no local e a vítima disse que tinha brigado com o companheiro, estando essa com arranhões e a roupa rasgada, com escoriações no cotovelo. Disse que o réu estava bastante nervoso e que o depoente visualizou bebidas na casa, havendo outras pessoas no local. Relatou que não recorda de ter visto o réu lesionado, mas que ele estava avermelhado e foi levado ao hospital para exame".

A versão inicial dos fatos relatados pela vítima na fase investigatória vem corroborada pelo atestado médico e exame de corpo de delito, que indicam "escoriações em antebraço esquerdo", e pelo próprio interrogatório do apelante, que confirmou que o fato aconteceu.

Portanto, tenho que os fatos narrados na denúncia restaram devidamente comprovados pelas provas produzidas.

Destarte, os elementos probatórios contidos nos autos denotam, sem qualquer dúvida, que o acusado ofendeu a integridade física de Luciane, incidindo nas sanções do artigo 129, § 9º, do CP.

Outrossim, não obstante a tese defensiva, o caso dos autos se trata de condenação por crime de lesão corporal em situação de violência doméstica e familiar contra a mulher. Logo, por mais que as partes tenham se desculpado, não é possível reconhecer a irrelevância jurídica da conduta descrita na denúncia, mormente porquanto a ação penal é pública e incondicionada. Portanto, a persecução penal independe da vontade da ofendida.

Conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça, o sistema inerente à Lei Maria da Penha impõe do intérprete e aplicador do Direito um olhar diferenciado para a problemática da violência doméstica, com a perspectiva de que todo o complexo normativo ali positivado tem como mira a proteção da mulher vítima de violência de gênero no âmbito doméstico, familiar ou de uma relação íntima de afeto, como corolário do mandamento inscrito no artigo 226, § 8º, da Constituição da República (RHC 74.395/MG, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 18/02/2020, DJe 21/02/2020).

Nessa toada, a lesão corporal que o acusado provocou na sua ex-companheira ao agredí-la, denota justamente a problemática da violência doméstica, e ao Juiz cabe ter em mira a proteção da mulher sob o sistema inerente à Lei Maria de Penha, como corolário do mandamento constitucional previsto no art. 226, § 8º, in verbis:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

Com efeito, se a família deve ter especial proteção do Estado, inclusive mediante mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares, o Julgador pode e deve utilizar esses mecanismos para proteger a mulher vítima da violência doméstica.

Guilherme de Souza Nucci, in Código Penal Comentado, 20ª edição, 2020, págs. 656-657, ao tratar do artigo 129, § 9º, do CP, alude:

“A mulher agredida deve ser protegida e não mais lhe cabe decidir se processa ou não o agente da lesão corporal; o interesse é público e o bem tutelado, nesse cenário, indisponível”.

Nesse norte, tamanha é a proteção da mulher a fim de coibir que seja vítima de violência doméstica e familiar que, após a Lei Maria da Penha (Lei n.º 11.340/2006), o Supremo Tribunal Federal, em julgamento proferido na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 4.424/DF, firmou entendimento no sentido da desnecessidade de representação da vítima nos crimes de lesão corporal praticados contra a mulher no âmbito familiar, por se tratar de ação penal pública incondicionada, justo para não esvaziar a proteção assegurada às mulheres.

Assim, a tese da defesa no sentido de que a condenação se baseou tão-somente na palavra da vítima, circunstância que não poderia ensejar uma condenação, não vinga minimamente.

E, como corolário lógico desse sistema inerente à proteção da mulher vítima de violência no âmbito doméstico, é que a palavra da vítima possui especial relevância, até porque, como se sabe à saciedade, nos crimes praticados no ambiente familiar, dificilmente há testemunhas presenciais, senão os próprios envolvidos.

Sobre o tema, colaciono precedente do Supremo Tribunal Federal, in verbis:

DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO INTEOSTO...

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