Acórdão nº 50001008420128210163 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Nona Câmara Cível, 06-07-2022

Data de Julgamento06 Julho 2022
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Classe processualApelação
Número do processo50001008420128210163
Tipo de documentoAcórdão
ÓrgãoNona Câmara Cível

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20002348368
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

9ª Câmara Cível

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Apelação Cível Nº 5000100-84.2012.8.21.0163/RS

TIPO DE AÇÃO: Erro médico

RELATOR: Desembargador CARLOS EDUARDO RICHINITTI

APELANTE: LEONIDA RODRIGUES (AUTOR)

APELADO: ASSOCIAÇÃO EDUCADORA SÃO CARLOS HOSPITAL SANTA LUZIA (RÉU)

APELADO: RICARDO MACHADO (RÉU)

RELATÓRIO

Trata-se de apelação cível interposta por LEONILDA RODRIGUES contra sentença (evento 3, PROCJUDIC10, pp. 32-36, do feito originário) que, nos autos da demanda indenizatória ajuizada em desfavor da ASSOCIAÇÃO EDUCADORA SÃO CARLOS – HOSPITAL SANTA LUZIA e de RICARDO MACHADO, julgou improcedente o pedido constante da inicial da ação, com consequente condenação da autora ao pagamento das custas processuais e honorários de mil e quinhentos reais (R$ 1.500,00) aos procuradores dos requeridos, ficando suspensa a exigibilidade dos ônus de sucumbência em razão da gratuidade judiciária inicialmente deferida.

Em suas razões, a recorrente sustenta, em apertada síntese, que existem evidências suficientes do erro médico descrito na exordial. Argumenta que, de acordo com a segunda perícia produzida em juízo, houve falha do médico assistente ao deixar de enviar amostras do lipoma encontrado durante o ato cirúrgico para exame anátomo-patológico (em caso de efetiva suspeita de lesão maligna). Afirma, ainda, que há prova contundente do nexo causal entre as suas sequelas ortopédicas e a lesão de seu nervo fibular na cirurgia conduzida pelo segundo réu. Defende, nesse diapasão, a responsabilidade dos requeridos pela reparação dos danos de ordem material e moral que lhe foram causados. Enfatiza que a prova pericial, secundada pela prova testemunhal, dá conta da configuração, em seu prejuízo, de conduta médica falha no caso em apreço, notadamente quando da retirada de lipoma em cirurgia inicialmente voltada à remoção de varizes. Cita doutrina e jurisprudência e requer, ao final, o recebimento e o provimento do recurso, com o consequente acolhimento do pleito indenizatório inicialmente deduzido.

Não foram apresentadas contrarrazões.

Em atenção aos princípios do contraditório e da vedação de decisões-surpresa, converteu-se o julgamento em diligência com o fim de promover a intimação das partes para, querendo, manifestarem-se a respeito da questão pertinente à ilegitimidade passiva de médicos judicialmente demandados por erros supostamente cometidos durante o exercício de seus ofícios no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), como verificado no caso concreto (evento 6).

Sobrevieram manifestações dos litigantes (eventos 12 e 17).

Após determinação de retificação da digitalização do processo físico e juntada de mídias referentes a depoimentos colhidos em audiência (evento 19), retornaram os autos conclusos para julgamento.

É o breve relatório.

VOTO

Colegas.

O presente apelo reúne condições de admissibilidade, razão por que dele conheço.

A fim de expor a fundamentação de maneira ordenada, analiso por tópicos as questões vindas ao conhecimento deste órgão ad quem.

Ilegitimidade passiva de médico que presta assistência por intermédio do Serviço Único de Saúde (SUS)

Ao compulsar os autos de origem, pude constatar que o atendimento controvertido na presente lide foi realizado via SUS (evento 3, PROCJUDIC3, pp. 37-38, dos autos originários). Sendo assim, está configurada, na esteira do que vem entendendo esta Câmara, a ilegitimidade passiva do profissional vinculado ao sistema público de saúde para responder diretamente por eventual dano provocado a terceiro.

A questão é um tanto quanto controversa e há, reconheça-se, sustentação legal pela responsabilização de forma direta, ou, pela posição que ora adoto, no sentido de que ela deva ser sempre regressiva.

Acabei, após uma análise e reflexão da questão, posicionando-me pela responsabilização regressiva, não só pelo arcabouço legal que abaixo examino, mas principalmente pela posição firme do STF a respeito do assunto, sendo que decisões em sentido diverso estão sendo modificadas pelos Ministros inclusive de forma monocrática.

Ora, em sendo o STF o guardião da Constituição e se tratando de matéria eminentemente constitucional, até em nome da segurança jurídica, entendo que se deva adotar tal posicionamento, não obstante todas as razões bem expostas e defendidas em sucessivos votos do ilustre colega Eugênio Facchini.

Passo, portanto, à análise da questão legal e dos fundamentos que me levam a adotar a posição aqui referida.

A hoje incontroversa responsabilidade objetiva do Estado consagrou-se no artigo 194 da Constituição de 1946, que desvinculou a responsabilidade da Administração Pública da averiguação de culpa de seus funcionários. Assim, o Estado passou a ser responsável pelos danos que seus servidores, nessa qualidade, causassem a terceiros. No parágrafo único do artigo 194, constava a previsão de ação regressiva contra o agente causador do dano, quando verificada a culpa deste. Como assinala Pontes de Miranda:

A Constituição de 1946, em vez de adotar o princípio da solidariedade, que vinha de 1934, adotou o princípio da responsabilidade em ação regressiva. Os interêsses do Estado passaram à segunda plana, — não há litisconsórcio necessário, nem solidariedade, nem extensão subjetiva da eficácia executiva da sentença contra a Fazenda nacional, estadual ou municipal, ou contra outra pessoa jurídica de direito público interno. Há, apenas, o direito de regresso.

A Constituição Federal de 1988, por sua vez, insculpe a responsabilidade objetiva do Estado em seu artigo 37, § 6º:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Em síntese, o aludido dispositivo determina que a pessoa jurídica responda objetivamente, bastando a prova do nexo de causalidade entre o dano e a ação ou omissão da Administração Pública. Ressalva expressamente, contudo, seu direito de regresso contra o agente, desde que este tenha agido com dolo ou culpa.

A controvérsia se põe no tocante à possibilidade de demanda direta da vítima do dano contra o servidor público (neste caso, importa reiterar, mediante apreciação dos elementos subjetivos de dolo ou culpa). O STF – na sua qualidade de guarda e intérprete final da Constituição Federal – apreciou a matéria no RE nº 327.904, em que foi Relator o Ministro Carlos Britto, julgado em 15/05/2006. Na decisão, entendeu-se que o artigo 37, § 6º, da CF, determina que o terceiro prejudicado proponha a ação indenizatória somente em face da pessoa jurídica de direito público ou de direito privado que preste serviço público, as quais respondem objetivamente por ato ou omissão de seus agentes. É o que se extrai do voto do Relator:

11. Com efeito, se o eventual prejuízo ocorreu por força de um atuar tipicamente administrativo, como no caso presente, não vejo como extrair do § 6º do art. 37 da Lei das Leis a responsabilidade “per saltum” da pessoa natural do agente. Tal responsabilidade, se cabível, dar-se-á apenas em caráter de ressarcimento ao Erário (ação regressiva, portanto), depois de provada a culpa ou o dolo do servidor público, ou de quem lhe faça as vezes. Vale dizer: ação regressiva é ação de “volta” ou de “retorno” contra aquele agente que praticou ato juridicamente imputável ao Estado, mas causador de dano a terceiro. Logo, trata-se de ação de ressarcimento, a pressupor, lógico, a recuperação de um desembolso. Donde a clara ilação de que não pode fazer uso de uma ação de regresso aquele que não fez a “viagem financeira de ida”; ou seja, em prol de quem não pagou a ninguém, mas, ao contrário, quer receber de alguém e pela vez primeira.

12. Vê-se, então, que o § 6º do art. 37 da Constituição Federal consagra uma dupla garantia: uma, em favor do particular, possibilitando-lhe ação indenizatória contra a pessoa jurídica de direito público, ou de direito privado que preste serviço público, dado que bem maior, praticamente certa, a possibilidade de pagamento do dano objetivamente sofrido. Outra garantia, no entanto, em prol do servidor estatal, que somente responde administrativa e civilmente, perante a pessoa jurídica a cujo quadro funcional se vincular. (STF. Primeira Turma. RE 327904. Rel. Min. Carlos Britto. Julgamento: 15/08/2006. DJ 08-09-2006) (Grifei)

A dupla garantia a que alude o precedente dirige-se tanto ao particular quanto ao servidor público. Ao particular na medida em que este, em face da responsabilidade objetiva do Estado, busca reparação sem necessidade de demonstrar a culpa ou o dolo, bastando a prova do nexo de causalidade. Por outro lado, não há como desconsiderar que o § 6º do artigo 37 garante também o agente causador do dano em decorrência da prestação de serviço público, uma vez que este somente será demandado diretamente pela pessoa jurídica a que se vincula.

Em verdade, o entendimento da Corte Constitucional proporciona ao agente público maior liberdade na sua atuação, visando a resguardá-lo de eventuais ameaças e assédios de particulares no exercício de suas funções. A possibilidade de ser acionado pelo Estado apenas em ação regressiva tem por escopo a salvaguarda do interesse público, que orienta todo o direito administrativo brasileiro. No louvável afã de proteger o direito indenizatório da vítima, não podem ser relegadas a...

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