Acórdão nº 50001181220198210147 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Décima Nona Câmara Cível, 09-12-2022

Data de Julgamento09 Dezembro 2022
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Classe processualApelação
Número do processo50001181220198210147
Tipo de documentoAcórdão
ÓrgãoDécima Nona Câmara Cível

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20003044805
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

19ª Câmara Cível

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Apelação Cível Nº 5000118-12.2019.8.21.0147/RS

TIPO DE AÇÃO: Esbulho / Turbação / Ameaça

RELATOR: Desembargador MARCO ANTONIO ANGELO

APELANTE: JURANDI GUEDES DOS SANTOS (AUTOR)

APELANTE: MARLENE PEIXOTO PAIM (AUTOR)

APELADO: JOSE SUENI MACHADO DE LIMA (RÉU)

RELATÓRIO

Trata-se de apelação interposta por JURANDI GUEDES DOS SANTOS e MARLENE PEIXOTO PAIM contra a sentença proferida na ação de manutenção de posse n. 5000118-12.2019.8.21.0147 ajuizada em face de JOSE SUENI MACHADO DE LIMA, com o seguinte dispositivo (Evento 94 do originário):

Diante do exposto, julgo IMPROCEDENTE o pedido formulado por JURANDI GUEDES DOS SANTOS e MARLENE PEIXOTO PAIM em face de JOSÉ SUENI MACHADO DE LIMA, determinando a extinção do feito com a resolução do mérito, fundamentada no art. 487, inciso I, do Código de Processo Civil.

Consequentemente, CONDENO a parte autora ao pagamento das custas processuais e de honorários advocatícios aos procuradores da parte adversa, que fixo em R$ 1.000,00 (mil reais) por apreciação equitativa, em atenção ao art. 85, §8º e §2º, incisos II e IV, do Código de Processo Civil, considerando o lugar de prestação do serviço e o trabalho realizado. A exigibilidade de tais verbas fica suspensa em razão do benefício da AJG.

Os autores, declinando suas razões, requerem a reforma da sentença para julgar procedente seu pedido de proteção possessória. Ressaltaram que o objeto da causa é uma fração de terras rurais - um terreno com 1.433,64m², onde edificaram sua residência, exercem a agricultura familiar e praticam serviços avulsos externos para sua sobrevivência; e que a causa de pedir foi o direito possessório sobre a área citada, de forma mansa pacífica, sem oposição e ininterrupta por mais de 15 anos, com ânimo de dono. Alegaram que, ainda que não houvesse uma efetiva compra e venda nem uma doação no sentido jurídico dos termos, o sr. Noeli renunciou o seu direito à área. Destacaram o fato de que as testemunhas dos apelantes, Alceri Rodrigues, Antônio Sérgio e Adão Lara, foram de clareza ímpar, em afirmar que o Sr. Noeli tinha ‘doado’ a pequena área aos apelantes, para ser sua. Alceri ainda afirma que Noeli presenciou os trabalhos de construção da casa para os apelantes, e dele ouvir dizer expressamente seu ato donativo – a troco de serviços; bem como das provas dos atos de turbação. Disseram que em nenhum momento foi combinado um comodato entre as partes; nem poderia ser, pois os apelantes são de origem humilde e não iriam investir suas parcas economias na construção de benfeitorias para a qualquer momento ter de abandoná-las, razão pela qual a posse não é, nem era, precária.

Foram apresentadas contrarrazões (Evento 108 do originário).

Cumprido o disposto nos artigos 931, 934 e 935 do CPC/2015.

É o relatório.

VOTO

Tratando-se de litígio envolvendo direitos possessórios, o possuidor tem o direito a ser mantido na posse em caso de turbação, reintegrado na hipótese de esbulho e, ainda, segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado (art. 1.210, caput, do CCB e arts. 560 do CPC).

Para obter a proteção possessória, incumbe ao autor provar a sua posse, a turbação ou esbulho praticado pela parte adversa e a sua data, bem como a continuação da posse, embora turbada, na ação de manutenção ou a sua perda na ação de reintegração (art. 561 do CPC).

Consoante doutrina de Tupinambá Miguel Castro do Nascimento1, o esbulho ocorre quando, por ato de terceiro que se utiliza de violência, clandestinidade ou precariedade, que são vícios objetivos, se afasta o titular da posse, que por isso a perde, obstaculizando-o de usar a coisa, de fruí-la e dela dispor [...]. O fim da reintegratória de posse é restituir o possuidor a posse perdida.

O resultado é a improcedência da pretensão possessória se não forem demonstrados todos os requisitos supramencionados.

Em relação à doação, cumpre observar o disposto no art. 538 do Código Civil, segundo o qual se considera doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra.

Os juristas Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery2 ensinam que:

a doação é o contrato mediante o qual uma parte, por espírito de liberalidade, enriquece a outra dispondo de um direito em seu favor e assumindo uma obrigação. “Dar é ato do mundo fáctico; doar, ato do mundo jurídico: é o dar mais a razão, o fim de dar. Quem somente dá apenas entrega, sem qualquer fim: o ato humano, ainda depois de entrar no mundo jurídico, é ato-fato jurídico, como todo facere (ocupar, especificar, escrever, prestar, esculpir, conseguir descoberta cientifica, residir, inventar, abandonar posse, adotar pseudônimo, pagar, cf. Tomo II, § 159, in fine) e como todo non facere. Doar já é negócio jurídico, que dos outros se distingue pela atribuição patrimonial gratuita” (Pontes de Miranda. Tratado, v. XXIII⁴, § 2777, 1).

Por outro lado, a exigibilidade da promessa de doação é questão controversa.

Excepcionalmente, a jurisprudência tem admitido a promessa de doação feita pelos genitores em favor da sua prole. No entanto, de maneira geral, entende-se que a promessa de doação de imóvel resulta inexigível, pois a execução compulsória da liberalidade retira a espontaneidade inerente ao ânimo de doar.

De fato, a doação, contrato geralmente unilateral, gratuito e formal, possui como elemento essencial o ânimo de liberalidade, circunstância incompatível com a pretensão de obrigação de fazer deduzida na lide.

Sobre a matéria, transcrevo precedente do Egrégio STJ:

RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DE COBRANÇA - PROMESSA DE DOAÇÃO - ATO DE LIBERALIDADE - INEXIGIBILIDADE - PROVIDO O RECURSO DO RÉU - PREJUDICADO O RECURSO DA AUTORA. [...] 2. Inviável juridicamente a promessa de doação ante a impossibilidade de se harmonizar a exigibilidade contratual e a espontaneidade, característica do animus donandi. Admitir a promessa de doação equivale a concluir pela possibilidade de uma doação coativa, incompatível, por definição, com um ato de liberalidade. 3. Há se ressaltar que, embora alegue a autora ter o pacto origem em concessões recíprocas envolvendo o patrimônio familiar, nada a respeito foi provado nos autos. Deste modo, o negócio jurídico deve ser tomado como comprometimento à efetivação de futura doação pura. 4. Considerando que a presente demanda deriva de promessa de doação pura e que esta é inexigível judicialmente, revele-se patente a carência do direito de ação, especificamente, em razão da impossibilidade jurídica do pedido. 5. Recurso especial do réu conhecido e provido. Prejudicado o exame do recurso especial da autora. (REsp 730.626/SP, Rel. Ministro JORGE SCARTEZZINI, QUARTA TURMA, julgado em 17/10/2006, DJ 04/12/2006, p. 322).

Não bastasse isso, importa considerar que a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem a constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, nos termos do arts. 108 e 541 do CC.

De outro modo, o comodato é o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis, o que se perfaz com a tradição do objeto, nos termos do art. 579 do Código Civil.

Além disso, nos termos do art. 582 do Código Civil, o comodatário é obrigado a conservar, como se sua própria fora, a coisa emprestada, não podendo usá-la senão de acordo com o contrato ou a natureza dela, sob pena de responder por perdas e danos. O comodatário constituído em mora, além de por ela responder, pagará, até restituí-la, o aluguel da coisa que for arbitrado pelo comodante.

Por isso, o comodatário deve conservar o imóvel, usar de forma adequada e, sobretudo, restituí-lo quando constituído a mora, sob pena de responder por perdas e danos.

Com efeito, se o contrato foi celebrado por prazo indeterminado, a interpelação do comodante, extrajudicial ou judicial, concretiza a mora do comodatário, transformando sua posse, até então justa e de boa-fé, em injusta (precária) e de má-fé, configurando o esbulho e autorizando a reintegração da posse.

Nesse sentido, transcrevo jurisprudência do STJ:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE DE IMÓVEL CEDIDO EM COMODATO POR PRAZO DETERMINADO (CEM ANOS). NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL DO COMODATÁRIO SOBRE O DESINTERESSE DO COMODANTE EM MANTER A AVENÇA, POR QUEBRA DE CONFIANÇA E/OU DESVIO DE FINALIDADE. POSSE PRECÁRIA. ESBULHO CONFIGURADO. [...] 2. Como de sabença, o comodato é espécie de empréstimo gratuito, mediante o qual o comodante cede, temporariamente, ao comodatário um bem infungível, para fins de uso, assumindo este último o dever de conservar a coisa para posterior restituição. 3. A temporariedade é uma das características estruturais do comodato, uma vez consabido que a entrega gratuita de bem sem intenção de restituição caracteriza o contrato de doação e não o de empréstimo. Não há, portanto, que se falar em comodato vitalício ou perpétuo. 4. Celebrado comodato por prazo certo, não poderá o comodante, em regra, reclamar a restituição do bem antes do decurso do lapso assinalado. Por outro lado, advindo o termo contratual, exsurgirá o dever do comodatário de restituir a coisa, sob pena de configuração automática da mora, não havendo, portanto, necessidade de interpelação judicial ou extrajudicial do devedor (mora ex re). Nessa hipótese, a não devolução da coisa emprestada no prazo fixado constitui a posse precária do comodatário e, consequentemente, caracteriza o esbulho ensejador da pretensão reintegratória do comodante. 5. De outro giro, cuidando-se de comodato precário - isto é, sem termo certo -, o comodante, em regra, somente poderá invocar o direito de retomada (hipótese de resilição unilateral ou denúncia) após o transcurso do intervalo suficiente à utilização do bem,...

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