Acórdão nº 50003419020188210149 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Quarta Câmara Criminal, 23-06-2022

Data de Julgamento23 Junho 2022
ÓrgãoQuarta Câmara Criminal
Classe processualApelação
Número do processo50003419020188210149
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Tipo de documentoAcórdão

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20002278390
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

4ª Câmara Criminal

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Apelação Criminal Nº 5000341-90.2018.8.21.0149/RS

TIPO DE AÇÃO: Crimes do Sistema Nacional de Armas (Lei 9.437/97 e Lei 10.826/03)

RELATORA: Desembargadora GISELE ANNE VIEIRA DE AZAMBUJA

APELANTE: SEGREDO DE JUSTIÇA

ADVOGADO: CRISTIANO VIEIRA HEERDT (DPE)

APELADO: SEGREDO DE JUSTIÇA

RELATÓRIO

O MINISTÉRIO PÚBLICO ofereceu denúncia contra VALDENIR DA SILVA ESTEVO, com 36 anos de idade na data dos fatos, dando-o como incurso nas sanções do artigo 12 da Lei nº 10.826/03, pela prática do seguinte fato delituoso:

No dia 03 de julho de 2017, por volta das 17h, em propriedade rural, na Localidade de Potreirinhos, interior do Município de Jóia/RS, o denunciado Valdenir da Silva Estevo possuía e mantinha sob sua guarda, uma espingarda calibre 28, marca Rossi, modelo Pomba; dois cartuchos calibre 28, recarregados; um cartucho calibre 28, intacto; um cartucho calibre 22, intacto; seis espoletas e seis estojos calibre 28, deflagrados; esferas e pedaços de chumbo; e um socador de pólvora, de uso permitido, mas em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior de sua residência.

Para tanto, o denunciado possuía e mantinha a arma de fogo (no quarto de sua mãe) e as munições (algumas no quarto de sua mãe e outras no seu quarto), bem como os estojos e demais materiais para recarga de munição (no seu quarto), os quais restaram apreendidos em cumprimento de mandado de busca e apreensão (auto de apreensão da fl. 06) expedido por este Juízo (processo nº 149/2.17.0000227-4).

A arma apreendida é potencialmente lesiva, considerando que se encontra em condições de efetuar disparos, bem como os cartuchos foram eficazes, segundo laudo pericial das fls. 24/25.

A denúncia foi recebida em 29 de janeiro de 2019 (evento 3, PROCJUDIC1, fl. 49).

Pessoalmente citado (evento 3, PROCJUDIC2, fl. 10-12), o acusado apresentou resposta à acusação por intermédio da Defensoria Pública (evento 3, PROCJUDIC2, fls. 13-15).

Durante a instrução processual, foram ouvidas as testemunhas e procedido o interrogatório do réu (evento 3, PROCJUDIC2, fl. 36 e evento 3, PROCJUDIC3, fl. 27).

Encerrada a instrução, os debates orais foram substituídos por memoriais, apresentados pelo Ministério Público (evento 3, PROCJUDIC3, fls. 30-33) e pela defesa (evento 3, PROCJUDIC3, fls. 34-46).

Sobreveio sentença de lavra do Dr. Tomás S. Martins Hartmann, julgando procedente a pretensão punitiva, a fim de condenar o réu como incurso nas sanções do artigo 12 da Lei nº 10.826/03, à pena de 01 (um) ano de detenção, em regime aberto, substituída por uma restritiva de direitos, além da pena de multa, fixada em 15 (quinze) dias-multa à razão mínima (evento 3, PROCJUDIC4, fls. 09-18).

A sentença foi presumidamente publicada em 07 de janeiro de 2022 (evento 3, PROCJUDIC4, fl. 21).

O réu foi intimado pessoalmente do conteúdo da sentença condenatória (evento 3, PROCJUDIC4, fl. 23).

A defesa interpôs recurso de apelação. Em razões, sustentou ausência de lesividade do delito, razão pela qual deve ser reconhecida a atipicidade da conduta. Referiu que a pena provisória pode ser fixada aquém do mínimo, pois inexiste vedação legal nesse sentido. Pugnou, por fim, pelo afastamento da pena de multa (evento 3, PROCJUDIC4, fls. 24-33).

O Ministério Público apresentou contrarrazões (evento 3, PROCJUDIC4, fls. 36-42) e os autos foram remetidos a esta Corte.

Em parecer, o ilustre Procurador de Justiça, Dr. Heriberto Roos Maciel, manifestou-se pelo desprovimento do recurso defensivo (evento 7, PARECER1).

Vieram os autos conclusos para julgamento.

É o relatório.

VOTO

Eminentes colegas:

Conheço do recurso porque adequado e tempestivo.

No que tange ao pedido de absolvição, não assiste razão à defesa do acusado.

Com efeito, a materialidade e a autoria delitivas foram demonstradas através da ocorrência policial nº 275/2017 (evento 3, PROCJUDIC1, fls. 07-08), pelo auto de apreensão (evento 3, PROCJUDIC1, fl. 10), pelo auto de cumprimento de mandado de busca e apreensão (evento 3, PROCJUDIC1, fl. 12), pelo laudo pericial nº 149162/2017 (evento 3, PROCJUDIC1, fls. 31-32), bem como pela prova oral produzida durante a instrução processual.

Observo que os policiais militares que participaram do cumprimento do mandado de busca e apreensão que conduziu ao flagrante delito, esclareceram a contento as circunstâncias em que se deu a apreensão da arma, como se pode verificar de seus depoimentos apostos na sentença.

Decerto, não há nenhum adminículo de prova capaz de descredibilizar o depoimento da agente de segurança. De qualquer sorte, o exame conjunto de todos os elementos juntados nos autos, permitem concluir que Valdenir estava na posse de uma espingarda calibre .38, tal como afirmaram os policiais em ambas as fases processuais.

Inclusive, saliento que o acusado confessou a prática delitiva quando de seu depoimento em juízo. A fim de evitar tautologia, colaciono trecho de seu depoimento sintetizado em sentença:

O denunciado VALDENIR DA SILVA ESTEVO, em seu interrogatório, declarou que a arma apreendida era de seu falecido pai, sendo uma arma antiga. Que as munições ficaram todas no quarto que era deste, e que agora ocupa. Que seu pai, que veio a óbito em 2015, pedia que não vendesse a arma, assim como sua mãe, então, deixou-a lá.

Dessa forma, não merece acolhido o pedido defensivo de absolvição, haja vista que os elementos probatórios demonstram, sem sombra de dúvida, que o réu praticou o delito previsto no artigo 12 da Lei de Armas.

Outrossim, não há falar em atipicidade da conduta, uma vez que, para a configuração do delito de posse irregular de arma de fogo de uso permitido, basta que o agente pratique qualquer uma das condutas descritas no artigo 12 da Lei nº 10.826/03.

Ora, é sabido que o crime de posse de arma de fogo é crime de perigo abstrato, cuja consumação não reclama a lesão concreta ao bem jurídico ou a colocação deste bem em risco real e concreto. É dizer, são tipos penais que descrevem apenas um comportamento, sem apontar um resultado específico como elemento expresso do fato típico.

Neste fio, deve-se acrescentar que este crime é classificado como de perigo abstrato, já que a lesividade ao bem jurídico é presumida, o que afasta, assim, a tese defensiva de atipicidade.

Noutro giro, a tese de atipicidade da conduta por inconstitucionalidade do crime de perigo abstrato ou mesmo pela atipicidade material do crime imputado não merece prosperar.

Veja que a constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato encontra mansa jurisprudência no Supremo Tribunal Federal, que reafirmou posicionamento no sentido de que “a criação de crimes de perigo abstrato não representa, por si só, comportamento inconstitucional por parte do legislador penal" (STF - HC: 104410 RS, Relator: Min. GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 06/03/2012, Segunda Turma, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-062 DIVULG 26-03-2012 PUBLIC 27-03-2012).

Sobre os crimes de perigo abstrato, lecionam PACELLI e CALLEGARI1:

“(...) os crimes de perigo abstrato são aqueles em que basta que a conduta seja perigosa em geral para algum bem jurídico, ainda que não chegue a colocá-lo em perigo de lesão próxima ou imediata. Mir PUIG aduz que não é preciso que no caso concreto a ação crie um perigo efetivo, pois somente seriam delitos de perigo no sentido de que a razão de seu castigo é que normalmente supõe o perigo.

Nesses, delitos, o perigo é presumido pelo legislador (presunção juris et de júri), não sendo necessária a prova da existência do perigo. É como se o legislador considerasse que a prática da conduta prevista no tipo penal, mesmo que dela nenhum perigo reste comprovado. Segundo Claus ROXIN, nos delitos de perigo abstrato ‘o perigo típico de uma ação é motivo para a sua penalização, sem que no caso concreto se faça depender a punibilidade da produção real de um perigo."

Também é certa a constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, consoante entendimento fixado há muito pelo STF:

HABEAS COUS. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DESMUNICIADA. (A)TIPICIDADE DA CONDUTA. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS PENAIS. MANDATOS CONSTITUCIONAIS DE CRIMINALIZAÇÃO E MODELO EXIGENTE DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS EM MATÉRIA PENAL. CRIMES DE PERIGO ABSTRATO EM FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. LEGITIMIDADE DA CRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE ARMA DESMUNICIADA. ORDEM DENEGADA. 1. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS PENAIS. 1.1. Mandatos Constitucionais de Criminalização: A Constituição de 1988 contém um significativo elenco de normas que, em princípio, não outorgam direitos, mas que, antes, determinam a criminalização de condutas (CF, art. 5º, XLI, XLII, XLIII, XLIV; art. 7º, X; art. 227, § 4º). Em todas essas normas é possível identificar um mandato de criminalização expresso, tendo em vista os bens e valores envolvidos. Os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbote), como também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote). Os mandatos constitucionais de criminalização, portanto, impõem ao legislador, para o seu devido cumprimento, o dever de observância do princípio da proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente. 1.2...

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