Acórdão nº 50003696520158210019 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Terceira Câmara Criminal, 07-12-2022

Data de Julgamento07 Dezembro 2022
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Classe processualRecurso em Sentido Estrito
Número do processo50003696520158210019
Tipo de documentoAcórdão
ÓrgãoTerceira Câmara Criminal

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20002947824
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

3ª Câmara Criminal

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Recurso em Sentido Estrito Nº 5000369-65.2015.8.21.0019/RS

TIPO DE AÇÃO: Homicídio qualificado (art. 121, § 2º)

RELATORA: Desembargadora ROSANE WANNER DA SILVA BORDASCH

RECORRENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (AUTOR)

RECORRIDO: ANDERSON SPINDLER RISSI (ACUSADO)

RECORRIDO: SAMUEL CANOSA (ACUSADO)

RELATÓRIO

ANDERSON SPINDLER RISSI e SAMUEL CANOSA foram denunciados como incursos nas sanções do artigo 121, §2°, incisos II (motivo fútil), III (meio cruel) e- IV (recurso que dificultou a defesa da vítima), na forma do artigo 14, inciso II (tentativa), combinado com o artigo 29, caput, todos do Código Penal, do seguinte fato delituoso:

No dia 04 de janeiro de 2015, por volta das 18h30min, em um açude sito na Estrada São João do Deserto, próximo ao n° 10.000, nos arredores da Igreja São João, no Distrito de Lomba Grande, em Novo Hamburgo/RS os denunciados SAMUEL CANOSA e ÂNDERSON SPINDLER RISSI, em acordo de vontades e conjunção de esforços, com agressões diversas, socos e chutes, bem como afogamento, tentaram matar CRISTIAN ALEXANDRE ENGEL DIAS, “Sapiranga”, conforme auto de exame de lesão corporal indireto das fls. 53/55, que refere que 'houve ofensa à integridade corporal e essa foi provocada instrumento contundente', somente não consumando o desiderato criminoso por circunstâncias alheias às suas vontades, já que a vítima foi socorrida por terceiros, vindo a receber pronto e eficaz atendimento médico-hospitalar.

Na ocasião, a vítima se encontrava na Praça do Triângulo, no Centro de São Leopoldo, pedindo esmolas, quando os acusados, prestando apoio moral e segurança à ação delituosa de forma recíproca, com animus necandi, agrediram-na com socos e chutes, reduzindo-lhe a capacidade de reação ou fuga, após o que, levaram-na de carro até o açude existente na Estrada São João do Deserto, onde a jogaram, já machucada, com a finalidade de matá-la por afogamento. A vítima foi socorrida pelos moradores locais e, posteriormente, pela Brigada Militar, que a conduziu para atendimento médico-hospitalar no Hospital de Novo Hamburgo

Os acusados cometeram o delito impelidos por motivo fútil, tão só porque acreditavam que a vítima estivesse roubando um estabelecimento comercial, para o qual a empresa de segurança em que os denunciados trabalhavam prestava serviços.

Os acusados cometeram o delito com emprego de meio cruel, já que agrediram a vítima com socos e chutes, em diversas partes do corpo, após o que, jogaram-na em um açude, a fim de causar seu afogamento, causando-lhe indescritível e desnecessário sofrimento.

Os acusados cometeram o delito valendo-se de recurso que dificultou a defesa da vítima, visto que, em superioridade numérica, agrediram-na de diversas maneiras, em várias partes do corpo, deixando-a incapaz de oferecer resistência e de reagir, após o que, ainda com vida, jogaram-na em um açude, com a finalidade de causar-lhe o afogamento.

Os acusados participaram do crime ao planejá-lo e ajustá-lo entre si, auxiliando-se mutuamente na execução de todas as fases do delito, agredindo a vítima com socos e chutes, bem como a jogando, ainda com vida, em um açude, além de prestarem apoio moral e segurança na prática delitiva de forma recíproca, solidarizando-se na empreitada criminosa

A denúncia foi recebida em 25 de fevereiro de 2016 e, após regular processamento do feito, sobreveio a decisão que desclassificou a imputação feita aos acusados, declinando da competência do Tribunal do Júri, nos seguintes termos (evento 91, SENT1):

Em face do exposto, com fulcro no artigo 419 do Código de processo Penal, DESCLASSIFICO o fato descrito na denúncia para outro de competência do juiz singular em relação aos denunciados ANDERSON SPINDLER RISSI e SAMUEL CANOSA.

Irresignada, a Acusação interpôs recurso em sentido estrito.

Em suas razões, alegou que as provas anexadas aos autos são suficientes e apresentam indícios sobre a autoria e materialidade do delito descrito na denúncia por parte dos recorridos. Destacou que cabe ao órgão colegiado popular análise sobre a existência do dolo, conflito de versões e apreciação das qualificadoras. Requereu a reforma da decisão que desclassificou a imputação de tentativa de homicídio para outro crime que não doloso, pronunciando os recorridos. (evento 105, RAZRECUR1).

Foram apresentadas contrarrazões, pugnando pela manutenção da decisão como proferida (evento 113, PET1).

O Ministério Público, nesta instância, opinou pelo conhecimento e provimento do recurso (evento 9, PARECER1).

É o relatório.

VOTO

O presente recurso é tempestivo e preenche os pressupostos de admissibilidade.

Não havendo preliminares, passo ao exame do mérito.

No caso concreto, com a devida vênia à julgadora da origem, entendo que a fundamentação declinada para desclassificar a imputação feita aos acusados (Anderson Spindler Rissi e Samuel Canosa) não deve prosperar, devendo ficar a resolução da referida controvérsia para o Tribunal do Júri.

A desclassificação da conduta exige demonstração inequívoca da ausência de animus necandi, a justificar a antecipação do julgamento do mérito, em detrimento à sujeição dos acusados ao competente julgamento pelo Tribunal do Júri. Não é a hipótese dos autos, como será analisado adiante.

Embora a decisão faça referência à ausência da intenção de matar, consoante reiterada jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o julgamento acerca do animus necandi, assim como sobre a possibilidade de desclassificação do delito, são questões afeitas à competência do Tribunal do Júri, visto que o dolo, no caso concreto, não pode ser descartado neste momento.

Nessa direção, cito o seguinte precedente:

PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO, ROUBO MAJORADO, SEQUESTRO E CÁRCERE PRIVADO, RECEPTAÇÃO, ADULTERAÇÃO DE SINAL IDENTIFICADOR DE VEÍCULO AUTOMOTOR E ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA. NULIDADES. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. INCIDÊNCIA DAS SÚMULAS N. 282 E 356/STF. DESCLASSIFICAÇÃO OPERADA PELO JUÍZO DE PRIMEIRO GRAU. PRONÚNCIA REALIZADA PELA CORTE DE ORIGEM. CONTROVÉRSIA SOBRE O ELEMENTO SUBJETIVO. AUSÊNCIA DE EXAME OU PROVA PERICIAL PARA SE PERQUIRIR SOBRE A PRESENÇA DE ANIMUS NECANDI. DESNECESSIDADE, NA ESPÉCIE. SUBMISSÃO DO RECORRENTE A PLENÁRIO DE JÚRI. (...) 3. Em relação à alegação de ausência animus necandi, consoante reiterados pronunciamentos deste Tribunal de Uniformização Infraconstitucional, o deslinde da controvérsia sobre o elemento subjetivo do crime fica reservado ao Tribunal do Júri, juiz natural da causa, onde a defesa poderá exercer amplamente a tese contrária à imputação penal. 4. "Embora o art. 419 do Código de Processo Penal autorize que o juiz se convença da existência de crime diverso e possa desclassificar a conduta para outro delito, tal decisão somente poderá ser adotada ante a certeza de que a conduta praticada configura outro delito. Caso contrário, havendo dúvidas quanto à tese defensiva, caberá ao Tribunal do Júri dirimi-la" (AgRg no REsp n. 1.128.806/SP, relator Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 16/6/2015, DJe 26/6/2015). (...) 6. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, desprovido. (REsp n. 1.918.544/SP, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, DJe de 26/11/2021.) (Grifou-se)

Em resumo, há questões controvertidas, cuja valoração cabe apenas aos juízes naturais da causa, sendo inadequado operar a desclassificação do delito neste momento.

No caso em análise, a materialidade e a autoria restaram evidenciados pelo Laudo de Lesão Corporal (evento 3, PROCJUDIC1 fl. 19), pelo prontuário médico (evento 3, PROCJUDIC2 fls. 06/16), laudos periciais (evento 3, PROCJUDIC4 - fl. 17 e 27) e pela prova oral produzida e apreciada pela Em. julgadora, Dra. Angela Roberta Paps Dumerque. Transcrevo parcialmente:

[...]

A irmã da vítima, Daniela Engel Dias, referiu que não presenciou o fato. Seu irmão é usuário de drogas e morador de rua, e as vezes incomodava pessoas pedindo esmola. Acha que a vítima pode ter dito algo para os agressores que eles não gostaram, e por isso o agrediram. Na data do ocorrido buscou seu irmão em São Leopoldo, ele estava na rua e estava bem machucado, levou-o para sua casa e ele lhe contou que apanhou muito e que o agressor teria dito que não o mataria porque tinha um parente ou conhecido da mesma idade de Cristian. Não levou a vítima para receber atendimento médico. O ofendido tinha ferimentos causados por arame nos braços e um hematoma no olho. Acha que talvez os agressores eram seguranças, mas não sabe. Não lembra se seu irmão mencionou que tentaram afogá-lo. Não sabe se Cristian cometia furtos. (evento 12, VÍDEO1 )

A testemunha Cristiano da Silva Haubrich relatou que estava andando de bicicleta com sua esposa e havia uma carreta de bois na sua frente e que um carro da empresa de segurança Naja os ultrapassou em alta velocidade. Posteriormente parou para beber água e viu o mesmo veículo, um Clio preto, retornando, e viu que havia duas pessoas tripulando o automóvel. Mais a frente viu um rapaz todo molhado pedindo socorro, ele havia saído do açude e tinha ferimentos nos braços e no rosto. Ficou assustado e passou reto, no chão viu a marca de retorno de um carro, não sabe se da Naja ou de outro veículo. Ouviu gritos e voltou para onde o ofendido estava, ele estava deitado, sendo socorrido por cerca de três pessoas, e disse que foi espancado e levado para lá. O rapaz disse que estava pedindo dinheiro, seguranças da Naja falaram para ele sair do local, mas como ele não saiu o espancaram. Acionaram a Brigada Militar.

A testemunha Elio Augusto Muller declarou que seu pai possui uma propriedade na Estrada São João do Deserto. Na propriedade há um...

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