Acórdão nº 50005860920198210039 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Décima Primeira Câmara Cível, 23-06-2022

Data de Julgamento23 Junho 2022
ÓrgãoDécima Primeira Câmara Cível
Classe processualApelação
Número do processo50005860920198210039
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Tipo de documentoAcórdão

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20002309839
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

11ª Câmara Cível

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Apelação Cível Nº 5000586-09.2019.8.21.0039/RS

TIPO DE AÇÃO: Acidente de trânsito

RELATOR: Desembargador AYMORE ROQUE POTTES DE MELLO

APELANTE: LETHICIA MADALENA PEREIRA (AUTOR)

APELADO: SOUL SOCIEDADE DE ONIBUS UNIAO LTDA (RÉU)

RELATÓRIO

Trata-se de recurso de apelação interposto por LETHICIA MADALENA PEREIRA em combate à sentença (evento 82, SENT1) proferida nos autos da ação de indenização (processo nº 5000586-09.2019.8.21.00390) que move contra SOUL SOCIEDADE DE ÔNIBUS UNIÃO LTDA perante a 1ª Vara Cível da Comarca de Viamão.

Adoto o relatório da sentença recorrida, verbis:

Lethicia Madalena Pereira ajuizou ação indenizatória em face de Soul Sociedade de Ônibus – LTDA. Relatou que, em 21/06/2016, por volta das 18h, na Avenida França, Parque Índio Jari, nesta cidade de VIAMÃO-RS, a filha da Autora – KAMILLY VITÓRIA PEREIRA RIBEIRO -, nascida em 31/05/1996, foi vítima de atropelamento por ônibus de placas IXF6050, pertencente à ré. Narrou que a vítima estava em frente a parada de ônibus, retornando para sua residência, quando foi atingida pelo coletivo. Disse que a criança foi atendida pelo SAMU e encaminhada ao Hospital de Viamão, onde teve seu quadro agravado, pelo que foi transferida ao Pronto Socorro de Porto Alegre. Contou que, no dia seguinte, 22/07/2016, a vítima veio a óbito em razão dos ferimentos decorrentes do acidente. Informou ter necessitado de acompanhamento psicológico por quase um ano e que mantém regularidade nas consultas com psicóloga. Defendeu a responsabilidade da ré que restou demonstrado o dever de indenizar, em razão da prática do ato ilícito. Sustentou ser caso de reconhecimento de responsabilidade objetiva. Discorreu acerca dos danos morais experimentados. Afirmou estarem demonstrados o dano e o nexo causal. Postulou a condenação da ré ao pagamento de indenizações pelos prejuízos morais, além de lucros cessantes. Pediu a gratuidade justiça. Juntou documentos (evento 1).

Foi deferida a AJG (evento 5).

Realizada audiência de mediação, esta restou inexitosa (evento 13).

Citada, a demandada apresentou contestação (evento 15). Defendeu a aplicação da teoria da responsabilidade subjetiva e a necessidade de demonstração de culpa do motorista do coletivo. Sustentou a inexistência de prova de culpa do motorista e a ausência de nexo causal. Alegou que o condutor do ônibus estava agindo de acordo com as normas de trânsito, trafegando em baixa velocidade, quando foi surpreendido pela vítima que se atravessou na frente do veículo, a qual deu causa ao acidente. Disse não ter sido cometido ato ilícito e defendeu a culpa exclusiva da vítima. Asseverou a ausência do dever de indenizar. Levantou a falha no dever de guarda. Referiu a impossibilidade de condenação em lucros cessantes, por não ser possível presumir que a vítima, quando atingisse idade laborativa, viesse a contribuir com o sustento da genitora ou, ainda, que a própria genitora seria dependente econômica da falecida. Discorreu acerca da compensação da indenização paga pelo seguro DPVAT. Requereu a improcedência da demanda.

Houve réplica (evento 19).

Realizada audiência, foi colhido o depoimento pessoal da autora e ouvidas duas testemunhas e encerrada a instrução (evento 74).

Foram apresentados memoriais pelas partes (eventos 75 e 80).

Vieram os autos conclusos.

O dispositivo da sentença recorrida está redigido nos seguintes termos, verbis:

Diante do exposto, forte no art. 487, inciso I, do Código de Processo Civil julgo IMPROCEDENTE a demanda indenizatória ajuizada por Lethicia Madalena Pereira em face de Soul Sociedade de Ônibus – LTDA.

Em razão da sucumbência, condeno a autora ao pagamento de custas e despesas processuais e de honorários advocatícios em favor do patrono da demandada, os quais arbitro em 10% do valor da causa, atualizado pelo IGP-M, desde o ajuizamento. Suspensa a exigibilidade, ante a gratuidade de justiça concedida.

Nas razões do recurso (evento 87, APELAÇÃO1), a autora sustenta que o coletivo não estava trafegando em velocidade compatível com a via. Salienta que o motorista avistou as crianças do outro lado da via e, ainda assim, não evitou o acidente. Pugna pela procedência da pretensão deduzida na exordial. Assim, requer o provimento do recurso.

Nas contrarrazões (evento 90, CONTRAZAP1), a ré requer o desprovimento do recurso.

Após, subiram os autos a esta Corte. Distribuídos, vieram conclusos em 18/03/2022, sendo incluídos na pauta da sessão virtual de julgamento de 23/06/2022.

É o relatório.

VOTO

A. EM PRELIMINAR.

O recurso é típico, próprio, tempestivo (eventos 83 e 87 - origem) e não está preparado, pois a autora-apelante é beneficiária da gratuidade da justiça (evento 5 - origem).

B. NO MÉRITO.

1. Cuida-se de acidente de trânsito ocorrido no dia 21/07/2016, por volta das 18h20min, na Avenida França, em Viamão/RS, em que KAMILLY VITÓRIA PEREIRA RIBEIRO, filha da autora, foi atropelada pelo ônibus de propriedade da ré.

2. Nessa senda, saliento desde logo que a responsabilidade civil da empresa de ônibus, concessionária de serviço público, é objetiva em relação a terceiros usuários e não-usuários do serviço, a teor do que dispõe o art. 37, § 6º, da CRFB, verbis:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Podecom res da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
(...)
§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Nesse sentido, chamo à colação o seguinte paradigma jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, verbis:

CONSTITUCIONAL. RESPONSABILIDADE DO ESTADO. ART. 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO. PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO PRESTADORAS DE SERVIÇO PÚBLICO. CONCESSIONÁRIO OU PERMISSIONÁRIO DO SERVIÇO DE TRANSPORTE COLETIVO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA EM RELAÇÃO A TERCEIROS NÃO-USUÁRIOS DO SERVIÇO. RECURSO DESPROVIDO.
I - A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público é objetiva relativamente a terceiros usuários e não-usuários do serviço, segundo decorre do art. 37, § 6º, da Constituição Federal.

II - A inequívoca presença do nexo de causalidade entre o ato administrativo e o dano causado ao terceiro não-usuário do serviço público, é condição suficiente para estabelecer a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica de direito privado.

III - Recurso extraordinário desprovido.

(RE 591874, Relator(a): Min.
RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 26/08/2009, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-237 DIVULG 17-12-2009 PUBLIC 18-12-2009 EMENT VOL-02387-10 PP-01820 RTJ VOL-00222-01 PP-00500 - grifei)

Neste viés, CRISTIANO CHAVES DE FARIAS, FELIPE BRAGA NETTO e NELSON ROSENVALD, ao definirem "quem são as pessoas jurídicas de direito privado que atraem a responsabilidade objetiva do art. 37, § 6º, da CF", referem que "a ampla dicção constitucional abrange quaisquer pessoas jurídicas, seja qual for o vínculo que as ligue ao Estado. Não importa, nesta trilha, que se trate de concessão, permissão, delegação, ou de outras figuras forjadas no direito administrativo. Havendo a prestação de serviços públicos, incide a cláusula constitucional da responsabilidade objetiva, com lastro no risco administrativo" (FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; ROSENVALD, Nelson. Novo Tratado de Responsabilidade Civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 1200).

Neste contexto, a responsabilidade objetiva da concessionária de serviço público, tendo em vista a teoria do risco, apenas será afastada quando a culpa for exclusiva da vítima ou decorrer de caso fortuito, força maior ou fato de terceiro, cuja incumbência da prova compete à ré, nos termos do art. 373, inc. II, do CPC.

Sendo assim, para a responsabilização da ré, necessária a comprovação do nexo de causalidade entre o agir do motorista do coletivo e o dano causado, prescindindo da prova da culpa pelo evento infortunístico.

3. No caso sub judice, analisando as provas produzidas no caderno processual integrado, entendo que a controvérsia merece solução diversa daquela dada pelo Juízo a quo.

O condutor do ônibus, em Juízo, relata que estava trafegando na via, já estava escuro e na calçada do sentido contrário estavam três crianças, tendo uma delas atravessado de inopino a pista. Refere que freou, mas não conseguiu evitar o atropelamento. Alega que, com a batida, a vítima caiu junto ao meio fio. Aduz que estava numa velocidade inferior a 40km/h e que havia movimento no local.

A testemunha DÉBORA DA SILVA FERNANDES, em Juízo, relata que estava na parada de ônibus, no sentido contrário ao que vinha o coletivo. Aduz que as crianças estavam caminhando no mesmo sentido do ônibus, mas do outro lado da via, no mesmo lado em que estava, na parada. Alega que, quando o ônibus estava vindo, a vítima atravessou a via correndo. Salienta que já estava escuro. Refere que foi muito rápido e que o motorista tentou desviar, mas não conseguiu evitar o atropelamento. Esclarece que, com o impacto, a vítima bateu contra o meio fio da calçada, cerca de um ou dois passos de distância.

Assim, a prova dos autos evidencia que a filha da autora atravessou correndo, de inopino, a pista de rolamento, saindo da calçada da esquerda em direção ao outro lado da via, no momento em que o veículo se aproximava, o que surpreendeu o motorista, tendo a conduta de KAMILLY VITÓRIA PEREIRA RIBEIRO sido determinante para a ocorrência do evento lesivo.

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