Acórdão nº 50006324220138210157 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Terceira Câmara Criminal, 19-05-2022

Data de Julgamento19 Maio 2022
ÓrgãoTerceira Câmara Criminal
Classe processualApelação
Número do processo50006324220138210157
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Tipo de documentoAcórdão

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20002133676
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

3ª Câmara Criminal

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Apelação Criminal Nº 5000632-42.2013.8.21.0157/RS

TIPO DE AÇÃO: Crimes de Tráfico Ilícito e Uso Indevido de Drogas (Lei 11.343/06)

RELATOR: Desembargador LUCIANO ANDRE LOSEKANN

APELANTE: SEGREDO DE JUSTIÇA

APELANTE: SEGREDO DE JUSTIÇA

APELADO: SEGREDO DE JUSTIÇA

RELATÓRIO

Inicialmente, aproveito o relatório da sentença de lavra da Dra. Lizandra dos Passos, eminente Juíza de Direito, para evitar infrutífera repetição:

Acresço que a sentença, presumidamente publicada em 08.11.2019, julgou PARCIALMENTE PROCEDENTE a ação penal para CONDENAR JOAO ELIEL PINHEIRO CORNEAU DE LIMA como incurso nas sanções do art. 33, §4º, da Lei Antidrogas, à pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de reclusão, em regime aberto e, bem assim, ao pagamento de 500 dias-multa, à razão de 1/30 do salário mínimo vigente à época do fato, substituída a pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos consistentes em prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária de um salário mínimo.

Contra o decidir, apela o Ministério Público.

Em suas razões, busca o afastamento da minorante do art. 33, §4º, da Lei 11.343/06 ou, subsidiariamente, a aplicação da redutora em fração mínima (1/6).

A defesa também apelou da sentença.

Em suas respectivas razões, requer a absolvição do réu por insuficiência de provas da traficância. Subsidiariamente, busca a desclassificação do delito de tráfico para o de posse para consumo pessoal ou a aplicação da redutora do tráfico privilegiado em patamar máximo (2/3). Requer, ainda, a redução da multa pela incidência da minorante e o deferimento da gratuidade judiciária.

Nesta instância, em parecer, a i. Procuradora de Justiça, Dra. Christianne Pilla Caminha, opinou pelo conhecimento dos recursos, ao efeito de prover-se o apelo ministerial e desprover-se o apelo da defesa.

É o relatório.

VOTO

Conheço dos recursos interpostos, porquanto satisfazem os requisitos intrínsecos (adequação legal, legitimação e interesse) e extrínsecos (tempestividade e regularidade formal) de admissibilidade.

Analiso, inicialmente, a alegação defensiva de ocorrência de violação de domicílio, nulidade que gera a imprestabilidade da prova material do crime imputado ao apelante João Eliel.

Do apurado na instrução processual, os policiais relataram que receberam informação (apócrifa) de que haveria prática de tráfico de drogas na residência do acusado. Sem qualquer investigação preliminar - o que foi confirmado pelos policiais na audiência de instrução - dirigiram-se ao domicílio do réu, afirmando ter visualizado, coincidentemente, dois indivíduos, tendo um fugido sem ser pego, enquanto o réu "correu" para dentro da residência e lá foi abordado e com ele encontradas as drogas descritas na denúncia.

Demonstrou-se claramente, na instrução processual, e como bem analisou a magistrada a quo, que a casa era do acusado, que a abordagem se deu sem visualização de qualquer ato de traficância e porque o réu e o outro indivíduo teriam "corrido" após ver os policiais, bem como que o acusado foi abordado no interior da residência, precisamente na sala da residência. Transcrevo, a respeito do ingresso em domicílio, o teor da denúncia e da ocorrência policial, que ilustram, à suficiência, os fatos objeto do processo:

No contexto apresentado, ressalta-se que, de fato, não havia qualquer mandado de busca e apreensão ou investigação preliminar que fundamentasse a percepção ex ante da prática de traficância pelo acusado.

Postas tais informações, de se recordar que a questão da violação de domicílio em crimes permanentes, notadamente no de tráfico de drogas, é das mais tormentosas, na medida em que o tema se situa em zona gris entre legalidade ou ilegalidade do flagrante realizado e, por derivação, da prova da materialidade do delito, mormente porque o controle da legalidade da atuação policial é feito a posteriori pelo juízo encarregado de julgar o processo.

Não basta dizer, como comumente ocorre, que em se tratando de crime permanente, a execução do delito se protrai no tempo, de modo que o estado de flagrância e a ofensa ao bem jurídico só cessa por vontade do agente e, a partir daí, legitima-se, tout court, a atuação policial.

A questão é bem mais profunda, pois diz com a existência de ofensa, ou não, à garantia constitucional – direito fundamental, leia-se - da inviolabilidade de domicílio, prevista no art. 5º, inciso XI da Constituição Federal. Em outras palavras, trata-se de responder a indagação de se é válida a prova de tráfico de drogas obtida mediante busca e apreensão em residência sem mandado judicial e, sob o prisma constitucional, se a mera suspeita ou até mesmo a simples curiosidade de crime permanente, sem a certeza prévia da ocorrência de flagrante, seria uma restrição constitucional admissível ao direito fundamental à inviolabilidade do domicílio.

Pois bem.

Como se sabe, a matéria já foi longamente debatida no Supremo Tribunal Federal (STF) por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário 603.616/RO, representativo da controvérsia e que possibilitou o reconhecimento de Repercussão Geral. Ao final do julgamento, realizado em 5/11/2015, firmou-se a seguinte tese: A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados.”

Por ocasião do julgamento realizado pelo STF, o Ministro Relator, Gilmar Mendes, em erudito voto, após historiar sobre a origem do direito fundamental à inviolabilidade de domicílio e discorrer como é o tratamento constitucional da matéria em diferentes países, procurou fixar critérios mínimos (“lastros mínimos para medidas invasivas”, como dito no aresto) para a admissão da entrada em domicílio em crimes permanentes e, bem assim, para o chamado controle a posteriori, feito por terceiro imparcial (o juiz do processo), a fim de delimitar quando e como a atuação policial em casos tais, especialmente no tráfico de drogas, é legítima ou, ao revés, desborda da legalidade, com inevitáveis reflexos sobre a licitude da prova colhida nesses momentos.

Permito-me transcrever, por oportuno, trecho do voto do Ministro Relator, pois absolutamente pertinentes ao caso em testilha:

“O controle judicial da investigação criminal serve para compatibilizar os direitos de liberdade com os interesses da segurança pública. Esse controle pode ser a priori – antes da adoção da medida que afeta direitos fundamentais – ou a posteriori – após a adoção da medida. No controle prévio, a adoção da medida deve ser precedida da expedição de uma ordem judicial. O juiz, terceiro imparcial, analisa a presença dos requisitos da medida e, se for o caso, autoriza sua realização.

No controle a posteriori¸ a legislação permite aos agentes da administração desde logo atuar, realizando a medida invasiva. Apenas depois de sua concretização, o terceiro imparcial verifica se os agentes da administração agiram de acordo com o direito, analisando se estavam presentes os pressupostos da medida e se sua execução foi conforme o direito.

O controle a posteriori pode ser adotado, mesmo em medidas invasivas, se houver razões suficientes para tanto. É o que ocorre no caso da prisão em flagrante – art. 5º, LXI, da CF. Trata-se de exceção à exigência de prévia ordem escrita da autoridade judiciária para a prisão, fundada na urgência em fazer cessar a prática de crime e na evidência de sua autoria. No entanto, é indispensável o controle da medida a posteriori, mediante imediata comunicação ao juiz, que analisa a legalidade da prisão em flagrante – art. 5º, LXII, da CF.

No caso da inviolabilidade domiciliar, em geral, é necessário o controle judicial prévio – expedição de mandado judicial de busca e apreensão. O juiz analisa a existência de justa causa para a medida – na forma do art. 240, §1º, do CPP, verifica se estão presentes as “fundadas razões” para a medida – e, se for o caso, determina a expedição do mandado de busca e apreensão.

No entanto, é a própria Constituição que elenca exceções – entre elas o flagrante delito – nas quais dispensa o mandado judicial para ingresso forçado em casa. Em crimes permanentes, o agente está permanentemente em situação de flagrante delito. Assim, seria de difícil compatibilização com a Constituição exigir controle judicial prévio para essas hipóteses.

Da mesma forma, a cláusula que limita o ingresso ao período do dia é aplicável apenas aos casos em que a busca é determinada por ordem judicial. Nos demais casos – flagrante delito, desastre, ou para prestar socorro – a Constituição não faz exigência quanto ao período do dia. Talvez porque, nessas hipóteses, presume-se urgência no ingresso na casa.

Essa urgência é presumida independentemente de o crime envolver violência ou grave ameaça à pessoa.

Nas hipóteses em que a Constituição dispensa o controle judicial prévio, resta o controle a posteriori. Pelo entendimento atualmente aceito na jurisprudência, se a situação de flagrante se confirma, qualquer controle subsequente à medida é dispensado. Não se exige das autoridades policiais maiores explicações sobre as razões que levaram a ingressar na casa onde a diligência foi realizada.

Assim, voltando ao exemplo da droga mantida em depósito em residência, se o policial obtém, mediante denúncia anônima, a informação de que a droga está naquela casa, não poderá pedir mandado judicial, porque ninguém se responsabilizou validamente pela declaração – art. 5º, IV, CF. No entanto, poderá forçar a entrada na casa...

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