Acórdão nº 50008184920218210007 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Décima Câmara Cível, 28-06-2022

Data de Julgamento28 Junho 2022
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Classe processualApelação
Número do processo50008184920218210007
Tipo de documentoAcórdão

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20002179478
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

10ª Câmara Cível

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Apelação Cível Nº 5000818-49.2021.8.21.0007/RS

TIPO DE AÇÃO: Indenização por dano material

RELATOR: Desembargador TULIO DE OLIVEIRA MARTINS

APELANTE: CLAUDIO NEI SZORTIKA (REQUERENTE)

APELADO: COMPANHIA ESTADUAL DE DISTRIBUIÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA - CEEE-D (REQUERIDO)

RELATÓRIO

Adoto inicialmente o relatório da sentença:

A parte autora diz que é produtor rural de fumo e utiliza estufa(s) elétrica(s) para secagem de sua produção. Menciona data(s) e horário(s) em que o fornecimento de energia elétrica foi interrompido pela ré, o que lhe causou prejuízos pela perda total ou parcial da qualidade do produto em secagem, atestada por laudo(s) e quantificado. Requereu assistência judiciária gratuita, pois se trata de pequena produtora rural em agricultura familiar e a condenação da ré ao ressarcimento do prejuízo, juntando procuração e documentos.

Deferida a AJG.

A CEEE-D impugnou a gratuidade de justiça deferida e no mérito alegou: 1) a inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor; 2) que a interrupção de energia se deu por caso fortuito ou força maior; 3) falta de comprovação dos danos sofridos, quer por ausência de documento comprobatório da recusa de recebimento do produto pela fumageira, quer pelo fato do laudo juntado ser meramente estimativo, quer pela possibilidade de ocorrência de fraude. Requereu produção de prova oral e pericial e juntou procuração e documentos.

Sobreveio réplica.

Em despacho saneador foi rechaçada a impugnação à gratuidade de justiça. Afastada a incidência do CDC e delimitada a matéria controvertida e o ônus da prova.

Instadas as partes quanto a produção de provas a parte autora requereu a oitiva de testemunhas. A parte ré requereu a apresentação das notas fiscais da venda do fumo.

Indeferida a oitiva das testemunhas. O autor se manifestou sobre os pedidos da ré.

Sobreveio sentença de improcedência, com fixação de honorários advocatícios em 10% sobre o valor da causa.

Apelou o demandante. Em suas razões apontou cerceamento de defesa pois indeferida prova oral. No mérito, afirmou que comunicou a requerida para que fizesse vistoria nas estufas, o que não foi realizado. Aduziu que se é dever seu adquirir um gerar, a CEEE-D, por sua vez, deve prestar um serviço de melhor qualidade. Postulou a indenização do dano material sofrido. Pediu provimento.

Foram apresentadas contrarrazões.

Foi o relatório.

VOTO

O autor alegou que houve perda da qualidade do fumo produzido, pois em razão de interrupção no fornecimento de energia elétrica as estufas elétricas utilizadas para secagem das folhas pararam de funcionar das 21h30 do dia 11/01/2021 até às 17h40 do dia 14/01/2021, na localidade de Dom Feliciano.

A ré é uma concessionária de serviço público de caráter essencial e, nesta condição, fica obrigada a prestá-lo de modo contínuo, sob pena de ter de reparar os danos causados pelo descumprimento desta obrigação, conforme art. 22 do Código de Defesa do Consumidor:

Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.

Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código.

As normas do Código de Defesa do Consumidor aplicam-se à causa porque o autor, embora seja consumidor intermediário - eis que utiliza a energia elétrica numa atividade profissional sem lhe dar destinação privada -, é vulnerável frente à requerida.

E, de acordo com a teoria finalista mitigada, é possível a proteção especial da pessoa que não é destinatária final de um produto ou serviço, desde que ela apresente algum traço de vulnerabilidade, seja esta de ordem técnica, econômica ou jurídica.

Neste sentido, é a preleção de Cristiano Chaves de Farias, conforme doutrina que segue:

Excepcionalmente haverá uma mitigação da teoria finalista e elações extraconsumo serão objeto de tutela pela Lei nº 8.078/90 quando a concretude do caso denote claramente o traço da vulnerabilidade do consumidor intermediário - normalmente pequenas empresas e profissionais liberais - que adquire bens e serviços, mesmo com o intuito profissional. Fundamental é que na hipótese seja constatada a vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica desse consumidor profissional.

(FARIAS. Cristiano Chaves de. Curso de direito civil: obrigações. 10 ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed. JuPodivm, 2016. p. 71.)

No caso, o demandante é pequeno agricultor rural que exerce sua atividade em regime de economia familiar, sendo evidente, portanto, sua vulnerabilidade econômica e técnica pelo desconhecimento sobre os serviços prestados pela ré.

Por outro lado, não pode ser tratado exatamente como o são os consumidores que utilizam a energia elétrica em suas residências, porque não deixa de ser empresário, e como tal, deve também assumir os riscos da sua atividade.

Atento a isto e após aprofundado estudo de causa, é que integrantes do 5º Grupo Cível do qual esta Câmara faz parte, decidiram que, a depender do tempo da interrupção, a indenização pela perda do fumo poderá não ser integral. Explico.

Considerando a frequência com que ocorrem chuvas e fortes ventos, bem como a inevitabilidade de que tais condições climáticas atinjam a rede de energia, resta impraticável a continuidade ininterrupta da prestação do serviço, o que significa que, vez ou outra, haverá queda de luz nas unidades consumidoras.

Embora não deixe de ser uma falha da ré, trata-se de uma falha previsível da qual é possível precaver-se através da aquisição de um gerador com chave automática. E, apesar de não se poder exigir do consumidor comum que adquira um aparelho deste tipo, há uma série de fatores que permitem exigi-lo do fumicultor.

Primeiro, inobstante sua vulnerabilidade técnica em relação ao serviço da ré, o produtor de fumo conhece o seu trabalho e sabe que as folhas de fumo são sensíveis, e que apenas duas horas de interrupção da energia elétrica são suficientes para acarretar perda total do produto que estava na estufa elétrica.

Outrossim, conforme estudo realizado, o preço do gerador no-break - equipamento que poderia suprir a falta de energia em curtos espaços de tempo -, revela-se módico quando comparado ao prejuízo material ocasionado pela perda da qualidade do fumo.

É, pois, mais econômico ao produtor investir na prevenção do dano adquirindo um gerador próprio de valor relativamente baixo do que sofrer o prejuízo e buscar reparação na via judicial, até porque é grande a probabilidade de o fato vir a se repetir, dada a previsibilidade das pequenas interrupções.

O preceito do duty to mitigate the loss, que decorre do princípio da boa-fé objetiva, informa que o credor, tendo condições para tanto, deve adotar as medidas necessárias a mitigar suas perdas. E esse é o caso do autor, que poderia evitar a perda do fumo com a compra de um gerador para cobrir curtas interrupções.

Acerca do tema, trago à colação as lições de Cristiano Chaves, que aborda a matéria com o brilhantismo que lhe é particular:

Outra modalidade específica do abuso do direito (ato ilícito objetivo) é o duty to mitigate the loss ou, em vernáculo, o dever do credor de minorar as suas próprias perdas.

Não há dúvidas de que o credor tem diversos direitos, dentre os quais, exigir o cumprimento integral da obrigação e o respectivo atendimento de seu interesse creditício. Todavia, se o credor se comporta de maneira excessiva, comprometendo e agravando a situação jurídica do devedor, estará caracterizado o abuso do direito.

É aplicação efetiva e direta da boa-fé objetiva, impondo um comportamento ético ao credor, consistente em não prejudicar devedor. Nesse passo, o Enunciado 169 da Jornada de Direito Civil é de clareza meridiana ao reconhecer que "o princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo".

(FARIAS. Cristiano Chaves de. Curso de direito civil: obrigações. 10 ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed. JuPodivm, 2016. p.)

Ao ficar inerte diante de um risco conhecido, o autor demonstrou negligência, ou seja, agiu com culpa, concorrendo juntamente com a ré para a causação dos danos. E esta culpa admite que seja reduzida a indenização a ser paga pela concessionária requerida, a depender do tempo da interrupção.

Assim, convencionou-se neste 5º Grupo Cível que se o prazo interruptivo é inferior a 24 horas, a parte autora deve arcar com 2/3 dos danos materiais, enquanto que a fornecedora de energia elétrica suportará 1/3 do prejuízo.

Contudo, para os casos em que a interrupção superar as 24 horas, considerando que o produtor de fumo precisaria de geradores mais potentes e grandes reservas de combustível para cobrir longos períodos...

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