Acórdão nº 50008652620208210082 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Segunda Câmara Criminal, 23-02-2022

Data de Julgamento23 Fevereiro 2022
ÓrgãoSegunda Câmara Criminal
Classe processualApelação
Número do processo50008652620208210082
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Tipo de documentoAcórdão

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20001666943
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

2ª Câmara Criminal

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Apelação Criminal Nº 5000865-26.2020.8.21.0082/RS

TIPO DE AÇÃO: Decorrente de violência doméstica (art. 129, §§ 9º e 11)

RELATORA: Desembargadora GISELE ANNE VIEIRA DE AZAMBUJA

APELANTE: SEGREDO DE JUSTIÇA

ADVOGADO: CRISTIANO VIEIRA HEERDT (DPE)

APELADO: SEGREDO DE JUSTIÇA

RELATÓRIO

O MINISTÉRIO PÚBLICO ofereceu denúncia em face de JOÃO CARLOS DESENGRINI ZABOT, com 59 anos na época dos fatos, como incurso nas sanções do artigo 129, §9º, combinado com o artigo 61, inciso II, alínea "f", ambos do Código Penal, pela prática do seguinte fato delituoso:

No dia 16 de março de 2020, por volta das 20h10min, na residência do casal, localizada na ERS 332, Linha Pinhal Queimado, s/n.º, interior do Município de Arvorezinha/RS, o denunciado JOÃO CARLOS DESENGRINI ZABOT ofendeu a integridade corporal da vítima Lucimone Abreu de Lima Bedin, sua companheira, causando-lhe as lesões corporais descritas na ficha de atendimento ambulatorial da fl. 08, quais sejam: ferimento corto-contuso no couro cabeludo na região occipital (01cm de comprimento).

Na ocasião, o denunciado, após uma discussão com a vítima, pegou uma cadeira e desferiu na cabeça, braços e ombros da mesma.

O crime foi praticado em situação de violência doméstica e familiar baseada no gênero contra mulher, mais precisamente na relação íntima de afeto, uma vez que a vítima e o denunciado mantinham um relacionamento.

A denúncia foi recebida em 24 de novembro de 2020 (evento 4, DESPADEC1).

Citado pessoalmente (evento 11, CERTGM1), o réu apresentou resposta à acusação por intermédio da Defensoria Pública (evento 14, PET1).

Durante a instrução processual, foi ouvida a vítima e interrogado o acusado (evento 35, TERMOAUD1).

Após regular tramitação do feito, sobreveio sentença de lavra da Juíza de Direito, Dra. Eveline Radaelli Buffon, julgando parcialmente procedente a denúncia, a fim de condenar o acusado como incurso nas sanções do artigo 129, § 9º, do Código Penal, na forma da Lei nº 11.340/2006, à pena de 03 meses de detenção em regime aberto, concedendo-lhe a suspensão condicional da pena pelo período de 02 anos (evento 42, SENT1).

A defesa interpôs recurso de apelação. Em razões, sustentou que não restaram comprovadas as agressões supostamente perpetradas pelo acusado, razão pela qual inexistem elementos aptos a ensejar uma condenação. Pugnou pela absolvição do réu, forte no artigo 386, inciso VII, do Código de Processo Penal (evento 48, RAZAPELA1).

O Ministério Público apresentou contrarrazões (evento 53, CONTRAZAP1) e os autos foram remetidos esta Corte.

Em parecer, o ilustre Procurador de Justiça, Dr. Airton Zanatta, manifestou-se pelo conhecimento e desprovimento do recurso defensivo (evento 7, PARECER1).

Vieram os autos conclusos para julgamento.

É o relatório.

VOTO

Eminentes colegas:

Conheço do recurso uma vez que adequado e tempestivo.

Adianto que a sentença condenatória deve ser confirmada, uma vez que devidamente fundamentada com base nos elementos de decisão constantes dos autos, não comportando reforma.

A materialidade do delito e a autoria restaram evidenciadas pelo registro da ocorrência policial nº 1089/2020/152610 (evento 2, INQ1, fl. 03), pelo termo de declarações (evento 2, INQ1, fl. 05), pela ficha de atendimento ambulatorial (evento 2, INQ1, fls. 08-09), bem como pela prova oral carreada aos autos.

Acerca da prova oral produzida na instrução processual, colaciono, no que importa, trecho da sentença, que bem sintetizou e analisou a prova colhida:

"A vítima Lucimone Abreu de Lima Bedin, em juízo, relatou que chegou em casa e teve uma discussão de casal com o réu, sendo que acabou escorregando e caindo. Disse que ligou para a irmã e pediu para chamar o SAMU para levá-la ao hospital e não se recorda de mais nada. Informou que nunca se separou do réu. Asseverou não saber de onde a enfermeira tirou as informações de que teria recebido cadeiradas do marido. Negou que tenha relatado agressões por parte do marido na Delegacia de Polícia. Afirmou que não houve novas discussões com João Carlos e que, em nenhum momento, foi coagida a prestar depoimentos.

O réu João Carlos Desengrini Zabot, em seu interrogatório judicial, relatou que houve uma discussão no dia, sendo que Lucimone resvalou e caiu. Disse que as declarações constantes no Inquérito Policial são inverídicas, pois é analfabeto. Informou que saiu do local depois que Lucimone caiu, pois achou que ela não teria se machucado. Salientou que não houve a leitura do depoimento prestado na Delegacia de Polícia.

Em sede policial, todavia, a vítima Lucimone destacou que João Carlos vive lhe ofendendo, chamando-a de puta, vagabunda, chinelona e outras ofensas, além de ameaçá-la de morte, com três tiros na cabeça. Destacou que foram até a lancheria do casal e que, após João Carlos ingerir bebida alcóolica, passou a ofendê-la na frente dos clientes. Após isso, em casa, novamente foi ofendida por ele e que ele pegou uma cadeira e lhe deu três cadeiradas, acertando-a na cabeça, braços e ombros, trancando-a em casa. Asseverou que em face da conduta dele o SAMU foi chamado e a Brigada Militar também compareceu no local, mas João Carlos já havia desaparecido. Mencionou que foi levada ao hospital e que necessitou fazer pontos nas lesões.

A seu turno, João Carlos, em sede inquiritorial, destacou que Lucimone é alcoólatra e que no dia dos fatos ela tentou golpeá-lo com uma faca, razão pela qual pegou uma cadeira para se defender dos golpes. Disse que após o ocorrido saiu de casa para escapar dela, que estava descontrolada e, após dar algumas voltas de carro, retornou para ver se Lucimone estava bem, oportunidade em que a viu chorando e com a cabeça sangrando, a qual lhe disse para fugir para que a polícia não lhe prendesse. Negou as agressões".

Como se pode ver, durante a instrução processual, a ofendida sustentou que teria tido uma discussão com o apelante, tendo escorregado e caído, além de ter mencionado que nunca se separou do réu e que não sabe quem prestou informações de que teria recebido cadeiradas do marido.

Neste particular, em que pese tenha a vítima modificado seu depoimento, tal não se reveste de aptidão para absolver o acusado, mormente quando a condenação está amparada também em outros elementos de decisão constantes dos autos. Ademais, a versão inicial dos fatos relatados pela vítima na fase investigatória vem corroborada pela ficha de atendimento ambulatorial, que dá conta das lesões sofridas pela ofendida.

No ponto, importa destacar que na fase policial a vítima afirmou que o réu lhe agrediu com cadeiradas na cabeça, ombros e braços, bem como proferiu diversas ofensas, consoante se denota da ocorrência policial (evento 2, INQ1, fl. 03). Tais lesões são compatíveis com a ficha de atendimento ambulatorial, que descreve que a ofendida apresentava ferimento corto-contuso no couro cabeludo, descrevendo ainda possuir dor na cabeça e no membro superior esquerdo (evento 2, INQ1, fl. 08).

Ademais, também na fase policial, o próprio apelante confirmou que pegou a cadeira para se defender de supostas investidas da ofendida.

Nessas circunstâncias, importa ressaltar que inexistem nos autos elementos que evidenciem que a vítima teria razões para fazer falsas imputações de conduta criminosa ao apelante.

Destarte, os elementos probatórios contidos nos autos denotam, sem qualquer dúvida, que o acusado ofendeu a integridade física de Lucimone, incidindo nas sanções do artigo 129, § 9º, do CP.

Outrossim, não obstante a tese defensiva, o caso dos atos se trata de condenação por crime de lesão corporal em situação de violência doméstica e familiar contra a mulher. Logo, por mais que a convivência como casal tenha permanecido, não é possível reconhecer a irrelevância jurídica da conduta descrita na denúncia, mormente porquanto a ação penal é pública e incondicionada. Portanto, a persecução penal independe da vontade da vítima.

Conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça, o sistema inerente à Lei Maria da Penha impõe do intérprete e aplicador do Direito um olhar diferenciado para a problemática da violência doméstica, com a perspectiva de que todo o complexo normativo ali positivado tem como mira a proteção da mulher vítima de violência de gênero no âmbito doméstico, familiar ou de uma relação íntima de afeto, como corolário do mandamento inscrito no artigo 226, § 8º, da Constituição da República (RHC 74.395/MG, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 18/02/2020, DJe 21/02/2020).

Nessa toada, a lesão corporal que o acusado provocou na ofendida ao agredi-la, denota justamente a problemática da violência doméstica, e ao Juiz cabe ter em mira a proteção da mulher sob o sistema inerente à Lei Maria de Penha, como corolário do mandamento constitucional previsto no art. 226, § 8º, in verbis:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

Com efeito, se a família deve ter especial proteção do Estado, inclusive mediante mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares, o Julgador pode e deve utilizar esses mecanismos para proteger a mulher vítima da violência doméstica.

Guilherme de Souza Nucci, in Código Penal Comentado, 20ª edição, 2020, págs. 656-657, ao tratar do artigo 129, § 9º, do CP, alude: A mulher agredida deve ser protegida e não mais lhe cabe decidir se processa ou não o agente da lesão corporal; o interesse é público e o bem tutelado, nesse cenário, indisponível”.

Nesse norte, tamanha é a proteção da mulher a fim de coibir que seja vítima...

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