Acórdão nº 50009535820198210160 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Oitava Câmara Cível, 05-05-2022

Data de Julgamento05 Maio 2022
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Classe processualApelação
Número do processo50009535820198210160
Tipo de documentoAcórdão
ÓrgãoOitava Câmara Cível

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20001933483
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

8ª Câmara Cível

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Apelação Cível Nº 5000953-58.2019.8.21.0160/RS

TIPO DE AÇÃO: Abandono Intelectual

RELATOR: Desembargador LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS

APELANTE: SEGREDO DE JUSTIÇA

APELADO: SEGREDO DE JUSTIÇA

RELATÓRIO

Cuida-se de apelação cível interposta por MATEUS C. e MEIRIELE E. em face da sentença que julgou procedente a representação movida pelo CONSELHO TUTELAR por infração administrativa em razão de os filhos não estarem matriculados em escola (fls. 33-36, doc. 02, evento 03, ou fls. 61-62v. dos autos físicos originários, nº 160/5.19.000063-7).

Sustentam que: (1) foram representados por infração administrativa em razão dos filhos MISAEL e MADELAINE, de 12 e 04 anos de idade, não estarem matriculados em escola; (2) houve equívoco na decisão, pois a filha frequenta a escola; (3) levaram aos autos documentos que comprovam a qualificação para realizar ensino domiciliar; (4) o homeschooling é comum em muitos países, sendo admitido em leading case pelo Min. Luís Roberto Barroso, apesar de vencido na tese; (5) durante a pandemia crianças e adolescentes foram afastados da escola e o ensino passou a ser domiciliar, sem configurar qualquer ilícito; (6) considerada a possibilidade de realização de homeschooling, o direito à liberdade quanto à educação no meio familiar e, de acordo com as crenças religiosas dos genitores, nenhuma infração foi por eles cometida; (7) fazem parte da Associação Nacional de Ensino Domiciliar, que presta apoio ao exercício do ensino pelos pais, havendo nos autos documento certificando a especialização pela genitora; (8) foi comprovado que o ensino vem sendo efetivamente realizado, sendo que o ensino escolar afronta os princípios religiosos da família, tendo ocorrido episódio de violência e bullying contra o filho; (9) a decisão familiar foi tomada após quatro anos de estudo e preparação; (10) MISAEL, que frequentou até o 5º ano na escola, acompanha o conteúdo curricular em casa; (11) são ensinadas todas as disciplinas regulares, e o filho tem contato com crianças e adolescentes participando de grupos de coral e da Igreja, sendo garantido aos filhos desenvolvimento em ambiente sadio e de qualidade; (12) o grande infrator é o Estado, que submete crianças e adolescentes a ambientes de violência e baixo aprendizado; (13) a família é pobre, não sendo eficiente a aplicação de multa, que só aumentará a vulnerabilidade econômica; (14) não havendo dolo ou culpa no agir dos pais, é incabível a aplicação da multa. Requerem a reforma da sentença para julgar improcedente o pedido, com isenção da penalidade pecuniária.

Sem contrarrazões, o Ministério Público, nesta instância, opinou pelo não provimento (evento 07).

É o relatório.

VOTO

Como se constata do processo de origem, em junho de 2019 o CONSELHO TUTELAR de Vera Cruz comunicou ao juízo que os infantes MISAEL e MADELAINE não estavam frequentando estabelecimento de ensino, promovendo, por essa razão, representação em relação aos pais, MARCIO e MEIRIELE.

Foi narrado que, em visita à residência, a genitora disse que não mandaria os filhos para a escola, uma vez que daria aula para eles em casa.

Olvidam-se os apelantes que a educação formal a ser prestada a crianças e adolescentes é um direito constitucional, havendo ampla regramento do tema, inclusive prevendo as obrigações a serem atendidas pelos entes federados, para sua plena efetividade.

Nesse contexto, a conduta dos representados, que, como asseveram, não pretendem colocar os filhos na escola, configura, sem dúvida, a infração administrativa tipificada no art. 249 do ECA (Descumprir, dolosa ou culposamente, os deveres inerentes ao poder familiar ou decorrente de tutela ou guarda, bem assim determinação da autoridade judiciária ou Conselho Tutelar).

De notar que MISAEL, nascido em 13-07-2007, está atualmente com 14 anos, sendo que o ofício da Secretaria Municipal de Educação, datado de março de 2019, noticiava que ele não fora matriculado para aquele ano escolar (fl. 04, doc. 01, evento 03) - ou seja, a situação de infrequência escolar se estabeleceu antes da pandemia de Covid-19.

E, em que pesem os argumentos dos recorrentes, e a documentação juntada aos autos, emprestando verossimilhança aos alegados esforços maternos na área de ensino, sustentando, assim, ser possível prestar qualificado ensino domiciliar à prole, impõe-se destacar que o chamado homeschooling não está regulamentado no Brasil - sendo que tal circunstância resultaria em prejuízo aos filhos, pois não poderão contar com documentos hábeis a suprir as certificações de conclusão de curso nos diferentes níveis do ensino regulamentar.

Outrossim, nada impede que a genitora continue prestando assistência aos filhos nas suas tarefas escolares, complementando seu aprendizado para a desejada melhora na qualidade do ensino.

No mais, para evitar a repetição de termos, integro a esta fundamentação excerto do minucioso parecer da em. Procuradora de Justiça DENISE MARIA DURO:

(...) convém frisar que o debate relativo aos limites da liberdade dos pais na escolha dos meios pelos quais irão prover a educação dos filhos apresentou repercussão geral, reconhecida nos autos do Recurso Extraordinário 888.815/RS. No julgamento do aludido RE, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela impossibilidade da prática do chamado homeschooling, eis que inexistente legislação regulamentadora dos preceitos e regras aplicáveis a essa modalidade de ensino:

CONSTITUCIONAL. EDUCAÇÃO. DIREITO FUNDAMENTAL RELACIONADO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E À EFETIVIDADE DA CIDADANIA. DEVER SOLIDÁRIO DO ESTADO E DA FAMÍLIA NA PRESTAÇÃO DO ENSINO FUNDAMENTAL. NECESSIDADE DE LEI FORMAL, EDITADA PELO CONGRESSO NACIONAL, PARA REGULAMENTAR O ENSINO DOMICILIAR. RECURSO DESPROVIDO. 1. A educação é um direito fundamental relacionado à dignidade da pessoa humana e à própria cidadania, pois exerce dupla função: de um lado, qualifica a comunidade como um todo, tornando-a esclarecida, politizada, desenvolvida (CIDADANIA); de outro, dignifica o indivíduo, verdadeiro titular desse direito subjetivo fundamental (DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA). No caso da educação básica obrigatória (CF, art. 208, I), os titulares desse direito indisponível à educação são as crianças e adolescentes em idade escolar. 2. É dever da família, sociedade e Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, a educação. A Constituição Federal consagrou o dever de solidariedade entre a família e o Estado como núcleo principal à formação educacional das crianças, jovens e adolescentes com a dupla finalidade de defesa integral dos direitos das crianças e dos adolescentes e sua formação em cidadania, para que o Brasil possa vencer o grande desafio de uma educação melhor para as novas gerações, imprescindível para os países que se querem ver desenvolvidos. 3. A Constituição Federal não veda de forma absoluta o ensino domiciliar, mas proíbe qualquer de suas espécies que não respeite o dever de solidariedade entre a família e o Estado como núcleo principal à formação educacional das crianças, jovens e adolescentes. São inconstitucionais, portanto, as espécies de unschooling radical (desescolarização radical), unschooling moderado (desescolarização moderada) e homeschooling puro, em...

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