Acórdão nº 50011147020188210009 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Sétima Câmara Criminal, 16-02-2023

Data de Julgamento16 Fevereiro 2023
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Classe processualApelação
Número do processo50011147020188210009
Tipo de documentoAcórdão
ÓrgãoSétima Câmara Criminal

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20003171342
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

7ª Câmara Criminal

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Apelação Criminal Nº 5001114-70.2018.8.21.0009/RS

PROCESSO ORIGINÁRIO: Nº 5001114-70.2018.8.21.0009/RS

TIPO DE AÇÃO: Estupro de vulnerável CP art. 217-A

RELATOR: Desembargador LUIZ MELLO GUIMARAES

RELATÓRIO

O Ministério Público ofereceu denúncia contra L. C C,, já qualificado, dando-o como incurso nas sanções do artigo 217-A, caput, combinado com o artigo 226, Inciso II, ambos do Código Penal.

Narrou a denúncia que:

Em data e horário não especificados, no transcorrer do ano de 2018, antes do dia 14 de setembro de tal ano, na rua Polidoro Albuquerque, Bairro Floresta, em Carazinho, o deni/nciado L. C. DA C praticou ato libidinoso com /a vítima N. O. da C, sua sobrinha, com idades entre 07 e 08 anos (Certidão de NáscinTento da fl. 26 do IP).

Na oportunidade, o denunciado, valendo-se condição e autoridade de tio paterno da vítima, com o objetivo de satisfazer a própria lascívia, em ocasião em que se viu a sós com ela na residência de sua genitora (avó da vítima), aproximou-se da menina, que se encontrava sobre um sofá, e acariciou os seus mamilos, apertando-os, bem como as suas nádegas e ânus, em que o denunciado esfregou o dedo, tudo por sobre as vestes da infante.

Em vezes diversas, em que a vítima trocava de roupa no quarto da avó, o denunciado postou-se por detrás da cortina (que fazia as vezes de porta), observando-a.

A denúncia foi recebida e, após regular instrução, sobreveio sentença absolvendo o réu.

Inconformado, o Ministério Público apelou.

Nas razões, afirmou haver provas suficientes da autoria e da materialidade do delito. Argumentou que em casos da ausência de testemunhas que confirmem o fato, o depoimento da vítima deve ter elevado valor probatório. Destacou que a infante possui descrições concisas em relação ao ocorrido, mas não há indício de influência ou mentira na sua narrativa. Teceu argumentação, pedindo a reforma da sentença para condenar o réu nos termos da denúncia.

Apresentadas contrarrazões.

Nesta instância, a douta Procuradoria de Justiça opina pelo provimento do recurso.

É o relatório.

VOTO

Adianto que o apelo merece acolhida.

E inicio referindo que os depoimentos prestados por vítimas de delitos sexuais são, sim, importantes meios probatórios, premissa que deve sempre ser considerada porque, diferente do que disserta a sentença, não caracteriza presunção "sem fundamento lógico racional", tampouco decorre de "juízo prévio", determinado simplesmente "pela condição do depoente ou das circunstâncias do fato investigado".

Com efeito, a maioria das vítimas de crimes sexuais, notoriamente, é atacada em ambientes ermos ou extremamente reservados, sem a presença de testemunhas; e, muitas vezes, o delito não deixa qualquer vestígio material. Então, suas declarações, corriqueiramente, podem ser toda prova disponível para a punição do criminoso, daí se evidenciando que a presunção (relativa) de veracidade de que se está tratando não é irracional ou infundada.

De mais a mais, como deveria ser de conhecimento, a questão vai muito além da importância jurídico-probatória de um depoimento abstratamente considerado; trata-se, na verdade, de uma política baseada em noção de solidariedade coletiva e, consequentemente, justiça social, pois voltada a criar um ambiente menos opressor e mais seguro para as vítimas de crimes sexuais denunciarem seus agressores, minimizando a possibilidade de serem desacreditadas por conclusões equivocadas de uma sociedade que, infelizmente, ainda tem muito arraigados a cultura do estupro, a misoginia e valores como a culpabilização da própria vítima.

De fato, conferir a devida importância que os depoimentos das vítimas possuem em delitos contra a dignidade sexual é assegurar a essas que denunciar o agressor é de extrema importância, mesmo quando o seu relato for toda a prova de que dispuserem, com isso diminuindo a impunidade desse tipo de crime que, além de extremamente injusta, resulta em grave prejuízo à segurança coletiva.

E, sabidamente, não se trata de conferir um valor de prova absoluta e irrefutável; primeiro, porque esse tipo de prova não existe no ordenamento jurídico brasileiro, e segundo porque, havendo mínimo indicativo de inveracidade ou má-fé em qualquer declaração testemunhal, a perda de seu valor como fator de convencimento do Juízo é um efeito automático.

Assim, como costumo dizer nos julgamento de crimes sexuais por mim relatados, quando se está diante de vítima que identifica de forma segura o seu agressor, apresentando, para além disso, relato coerente e verossímil sobre os fatos, o respectivo depoimento tem força probante suficiente para amparar, até mesmo isoladamente, um decreto condenatório, que nesse caso só poderá ser obstado por efetiva prova em sentido contrário, ou por alguma evidência que demonstre, no mínimo, a possibilidade de haver um interesse escuso na condenação do acusado.

E é precisamente nesses termos, por essa premissa, que o recurso em tela merece prosperar.

Com efeito, como será visto a seguir, os elementos angariados nos autos dão conta da situação de uma vítima que, criança, foi alvo de diversos episódios de abuso sexual, em incontáveis ocasiões, entre os 05 (cinco) e os 08 (oito) anos de idade, um período muito superior ao descrito na denúncia - que, infelizmente, não foi aditada para retratar essa triste realidade -, e restou calada durante tanto tempo, como inúmeras vezes acontece, por temer o agressor (seu próprio tio), bem como pelo constrangimento que um crime contra a dignidade sexual acarreta, especialmente quando sofrido em tenra idade.

Assim, a sentença a quo efetivamente merece reforma, pois os seus lamentáveis fundamentos, nitidamente equivocados, não subsistem, impondo-se a condenação do acusado ainda que (infelizmente) pelo único episódio retratado na exordial acusatória.

E para fundamentar minha decisão basta asseverar que, em todas as oportunidades nas quais foi ouvida, a ofendida relatou ter sido sexualmente abusada pelo réu, confirmando o fato narrado na denúncia, sendo que em nenhuma dessas vezes, assim como em qualquer outra oportunidade nos autos, indicou dúvida sobre a ocorrência das agressões ou sobre a identidade do agressor, tampouco demonstrou eventual inclinação a promover uma injustiça contra esse, que é seu tio.

Sobre o teor das manifestações da criança, transcrevo a síntese feita na própria sentença - in verbis:

[...] A vítima foi ouvida por depoimento especial, tendo ela narrado que seu tio L., quando ela estava na casa da avó, apertava suas tetas, mexia na sua bunda e a olhava quando estava se vestindo no quarto. Relatou que estava na casa da avó M., mãe do L., sendo que ele também mora na casa, não soube dizer há quanto tempo isso teria acontecido. Disse que era de tardinha em um feriado e ela não teve aula no dia. Posteriormente explicou que era um domingo. Contou que estava no sofá vendo televisão, quando seu tio sentou ao lado dela e passou a apertar suas tetas e a passar o dedo na sua bunda. Disse que não sentou no colo dele. Afirmou que o tio a tocou por cima de suas roupas. Referiu que isso só aconteceu dessa vez. Disse que estava sozinha na casa com seu tio, sua vó tinha saído para ir ao mercado e o marido da avó estava trabalhando. Afirmou que pediu para L. parar e ele parou. Disse que depois que ele parou, não falou nada e nem a ameaçou para que não contasse nada para ninguém. Declarou que está estudando no segundo ano e quando este fato teria acontecido também estava no segundo ano. Confirmou que teria dito para sua mãe que tinha medo que seu tio a estuprasse. Explicou que não sabe o que significa isso, mas ouviu na televisão, dizendo que viu que os homens pegam as crianças e matam. Explicou que na televisão estavam dizendo que "um tio deixou uma criança de 12 anos só de calcinha e estuprou". Afirmou que trocava de roupas no quarto da avó e seu tio ficava lhe olhando pelo canto da cortina que serve de porta do quarto. Disse que sua vó estava junto e pediu pra ela mandar ele pra lá e ela mandou e ele foi. Contou que isso aconteceu um monte de vezes. Não soube dizer se isso aconteceu antes ou depois de seu aniversário, que é dia 11 de setembro, mas disse que contou para a sua mãe antes do seu aniversário. Referiu que foi até a casa da avó em um sábado próximo ao seu aniversário porque ela fez uma festinha e lá estavam um monte de seus amiguinhos. Disse que também estavam seu pai, sua madrasta, sua vó, o companheiro da avó e seu tio. Afirmou que lá perto da casa da avó mora uma amiga e toda vez que vai pra lá elas brincam juntas, na casa dela e na casa da sua vó.

No relatório de acompanhamento do CREAS, constou que:

(...)

Ao longo do acompanhamento, N. relatou sobre os atos abusivos praticados pelo tio. Inicialmente, ainda um pouco tímida, disse que mesmo havia passado a mão em seu corpo, a que ela teria corrido para o banheiro. Posteriormente, afirmou que não tinha relatado tudo por ter vergonha, acrescentou mais detalhes. Disse que o tio também tocava quando lhe dava banho, colocando o dedo em seus genitais ("na frente e atrás"), e que os toques em seu corpo não se restringiram aos momentos em que o tio lhe deu banhos, ocorrendo várias vezes, quando a avó se ausentava da casa. N. diz que as vezes pedia para ir junto com a avó ao mercado, mas esta não lhe atendia. A criança afirma lembrar que os fatos iniciaram quando tinha cerca de cinco anos de idade. Diz estar certa disto em virtude da lembrança de como era o corte de seu cabelo na época. Embora não saiba precisar quantas vezes os atos ocorreram, N. mencionou os toques do tio em diferentes idade (quanto tinha 5, 7 e 8 anos), declarando que os atos se repetiram, chegando a machucá-la. N. recorda...

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