Acórdão nº 50012060920198210043 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Segunda Câmara Criminal, 23-02-2022

Data de Julgamento23 Fevereiro 2022
ÓrgãoSegunda Câmara Criminal
Classe processualApelação
Número do processo50012060920198210043
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Tipo de documentoAcórdão

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20001665942
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

2ª Câmara Criminal

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Apelação Criminal Nº 5001206-09.2019.8.21.0043/RS

TIPO DE AÇÃO: Leve (art.129, caput)

RELATORA: Desembargadora GISELE ANNE VIEIRA DE AZAMBUJA

APELANTE: SEGREDO DE JUSTIÇA

ADVOGADO: CRISTIANO VIEIRA HEERDT (DPE)

APELADO: SEGREDO DE JUSTIÇA

RELATÓRIO

O MINISTÉRIO PÚBLICO ofertou denúncia em desfavor de VALDIR ALMEIDA DE OLIVEIRA, com 41 anos na época dos fatos, como incurso nas sanções do artigo 129, §9º, do Código Penal, na forma da Lei nº 11.340/2006, pela prática dos seguintes fatos delituosos:

No dia 27 de abril de 2019, por volta das 15h40min, na Rua das águas, nº 215, Bairro São José, Município de Roque Gonzales/RS, o denunciado VALDIR ALMEIDA DE OLIVEIRA ofendeu a integridade corporal da vítima Gilzane dos Santos Seib, sua companheira, consistente em agredi-la com socos na cabeça, causando-lhe um "galo" na região da nuca, consoante boletim de ocorrência da fl. 03 e Termo de Declaração da fl. 05.

Na ocasião, o denunciado VALDIR, por motivo não constante nos autos e agindo com violência contra a mulher, agrediu a vítima Gilzane dos Santos Seil, sua companheira, com socos na cabeça, causando a lesão corporal acima descrita.

A denúncia foi recebida em 02 de outubro de 2019 (evento 3, PROCJUDIC1, fl. 32).

O réu foi citado pessoalmente (evento 3, PROCJUDIC1, fl. 37) e ofereceu resposta à acusação por intermédio da Defensoria Pública (evento 3, PROCJUDIC1, fls. 39-40).

Após regular tramitação do feito, sobreveio sentença do Juiz de Direito, Dr. Ramiro Baptista Kalil, julgando procedente a denúncia, a fim de condenar o réu como incurso nas sanções do artigo 129, § 9º, do Código Penal, com incidência da Lei nº 11.340/2006, à pena de 03 (três) meses de detenção. Concedido o sursis pelo prazo de 02 (dois) anos, consistente em prestação de serviços à comunidade e comparecimento bimestral em juízo para informar e justificar suas atividades (evento 3, PROCJUDIC2, fls. 18-26).

A sentença foi publicada em 24 de novembro de 2020 (evento 3, PROCJUDIC2, fl. 27).

A defesa interpôs recurso de apelação. Em suas razões, requereu a reforma da sentença para absolver o acusado por insuficiência probatória quanto ao fato denunciado. Defendeu que a prova não pode estar alicerçada unicamente na palavra da vítima. Sustentou que o acusado teria empurrado a vítima apenas para cessar as agressões perpetradas por ela, e que teria se machucado quando bateu a cabeça em um bidê. Postulou a absolvição do réu, por força no artigo 386 do Código de Processo Penal (evento 3, PROCJUDIC2, fls. 33-37).

O Ministério Público apresentou contrarrazões (evento 3, PROCJUDIC2, fls. 44-50 e evento 3, PROCJUDIC3, fl. 01) e os autos foram remetidos a esta Corte.

Em parecer, o ilustre Procurador de Justiça, Dr. Eduardo Bernstein Iriart, manifestou-se pelo conhecimento e desprovimento do recurso defensivo (evento 7, PARECER1).

Vieram os autos conclusos para julgamento.

É o relatório.

VOTO

Eminentes Colegas:

Conheço do recurso uma vez que adequado e tempestivo.

Adianto que a sentença condenatória deve ser confirmada, uma vez que devidamente fundamentada com base nos elementos de decisão constantes dos autos, não comportando reforma.

A materialidade e a autoria delitivas restaram evidenciadas pelo registro do boletim de ocorrência nº 204/2019/152919 (fls. 09-10, evento 3, PROCJUDIC1), pelo termo de declaração da vítima (fl. 11, evento 3, PROCJUDIC1), bem como pela prova oral carreada aos autos.

Acerca da prova oral produzida na instrução processual, colaciono, no que importa, trecho da sentença, que bem sintetizou a prova colhida:

A vítima Gilzane dos Santos narrou que na data do fato o réu voltou do seu trabalho embriagado, ocasião que começou a proferir xingamentos em razão do estado de embriaguez deste. Mencionou que o réu tomou um banho e foi para o quarto, momento foi atrás e ameaçou de quebrar o celular do réu. Disse que neste instante o réu proferiu um soco na cabeça. Após o fato referiu que ficou um tempo separada do réu, porém, disse que atualmente reataram o relacionamento, sendo que não houve outros fatos. Confirmou que ficou com um galo na nuca em razão do soco que levou do réu. Indagada pela defesa, respondeu que o réu proferiu o soco em razão de estar bravo e que este não deu o soco com o objetivo de se defender. Mencionou que apenas rasgou a camiseta do réu, momento que este proferiu o soco.

Na fase policial a vítima narrou (fl.03):

"[...] refere que na data e hora mencionadas foi agredida por seu companheiro Valdir Almeida de Oliveira, que desferiu-lhe socos na cabeça. Relata que não passou por exame médico, mas que possui um "galo" na região da nunca [...]".

Bervely Bassani, Policial Civil, ouvida na condição de testemunha, relatou que recorda vagamente do fato ocorrido. Mencionou que o acusado estava com a camiseta rasgada na data e que não presenciou o fato.

Valdir Almeida de Oliveira, em seu interrogatório, negou o fato narrado na denúncia. Aduziu que foi a vítima que o segurou em sua camiseta, ocasião que apenas proferiu um empurrão na vítima que caiu sobre um bidê. Disse que foi a policial quem orientou a vítima a dizer que foi um soco, e então a vítima realizou o registro. Disse que o policial levou pra dentro da residência e que os policiais não deixaram apresentar a sua versão.

Destarte, os elementos probatórios contidos nos autos denotam, sem qualquer dúvida, que o acusado ofendeu a integridade física de Gilzane, incidindo nas sanções do artigo 129, § 9º, do CP.

Não obstante a tese defensiva de que a prova é baseada unicamente na palavra da vítima, o caso dos autos se trata de condenação por crime de lesão corporal em situação de violência doméstica e familiar contra a mulher. Logo, por mais que as partes tenham se reconciliado, não é possível reconhecer a irrelevância jurídica da conduta descrita na denúncia, mormente porquanto a ação penal é pública e incondicionada. Portanto, a persecução penal independe da vontade da ofendida.

Conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça, o sistema inerente à Lei Maria da Penha impõe do intérprete e aplicador do Direito um olhar diferenciado para a problemática da violência doméstica, com a perspectiva de que todo o complexo normativo ali positivado tem como mira a proteção da mulher vítima de violência de gênero no âmbito doméstico, familiar ou de uma relação íntima de afeto, como corolário do mandamento inscrito no artigo 226, § 8º, da Constituição da República (RHC 74.395/MG, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 18/02/2020, DJe 21/02/2020).

Nessa toada, a lesão corporal que o acusado provocou na companheira ao agredí-la, denota justamente a problemática da violência doméstica, e ao Juiz cabe ter em mira a proteção da mulher sob o sistema inerente à Lei Maria de Penha, como corolário do mandamento constitucional previsto no art. 226, § 8º, in verbis:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

Com efeito, se a família deve ter especial proteção do Estado, inclusive mediante mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares, o Julgador pode e deve utilizar esses mecanismos para proteger a mulher vítima da violência doméstica.

Guilherme de Souza Nucci, in Código Penal Comentado, 20ª edição, 2020, págs. 656-657, ao tratar do artigo 129, § 9º, do CP, alude:

“A mulher agredida deve ser protegida e não mais lhe cabe decidir se processa ou não o agente da lesão corporal; o interesse é público e o bem tutelado, nesse cenário, indisponível”.

Nesse norte, tamanha é a proteção da mulher a fim de coibir que seja vítima de violência doméstica e familiar que, após a Lei Maria da Penha (Lei n.º 11.340/2006), o Supremo Tribunal Federal, em julgamento proferido na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 4.424/DF, firmou entendimento no sentido da desnecessidade de representação da vítima nos crimes de lesão corporal praticados contra a mulher no âmbito familiar, por se tratar de ação penal pública incondicionada, justo para não esvaziar a proteção assegurada às mulheres.

Assim, a tese da defesa no sentido de que a condenação se baseou tão-somente na palavra da vítima, circunstância que não poderia ensejar uma condenação, não vinga minimamente.

E, como corolário lógico desse sistema inerente à proteção da mulher vítima de violência no âmbito doméstico, é que a palavra da vítima possui especial relevância, até porque, como se sabe à saciedade, nos crimes praticados no ambiente familiar, dificilmente há testemunhas presenciais, senão os próprios envolvidos.

Sobre o tema, colaciono precedente do Superior Tribunal de Justiça:

PENAL. HABEAS COUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. INADEQUAÇÃO.AMEAÇA. LEI MARIA DA PENHA. ABSOLVIÇÃO. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA. NECESSIDADE DE REVOLVIMENTO FÁTICO-PROBATÓRIO. WRIT NÃO CONHECIDO. 1. Esta Corte - HC 535.063/SP, Terceira Seção, Rel. Ministro Sebastião Reis Junior, julgado em 10/6/2020 - e o Supremo Tribunal Federal - AgRg no HC 180.365, Primeira Turma, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 27/3/2020; AgR no HC 147.210, Segunda Turma, Rel.Min. Edson Fachin, julgado em 30/10/2018 -, pacificaram orientação no sentido de que não cabe habeas corpus substitutivo do recurso legalmente previsto para a hipótese, impondo-se o não conhecimento da impetração, salvo quando constatada a existência de flagrante ilegalidade no ato judicial impugnado. 2. O habeas corpus não se presta para a apreciação de alegações que buscam a absolvição do paciente, em virtude da necessidade de revolvimento do conjunto fático-probatório,...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT