Acórdão nº 50012372120188210057 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Terceira Câmara Criminal, 23-06-2022

Data de Julgamento23 Junho 2022
ÓrgãoTerceira Câmara Criminal
Classe processualApelação
Número do processo50012372120188210057
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Tipo de documentoAcórdão

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20002248373
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

3ª Câmara Criminal

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Apelação Criminal Nº 5001237-21.2018.8.21.0057/RS

TIPO DE AÇÃO: Homicídio qualificado (art. 121, § 2º)

RELATOR: Desembargador LUCIANO ANDRE LOSEKANN

APELANTE: MARION SOARES DE SOARES (ACUSADO)

APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (AUTOR)

RELATÓRIO

Perante o Tribunal do Júri da Comarca de Lagoa Vermelha, o Ministério Público ofereceu denúncia contra MARION SOARES DE SOARES, dando-o como incurso nas sanções do art. 121, §2°, incisos III e VI, do Código Penal, e art. 12, caput, da Lei nº 10.825/03, combinado com o art. 61, inciso I, na forma do art. 69, caput, ambos do Código Penal, pela prática dos seguintes fatos delituosos:

‘FATO 01:

No dia 07 de dezembro de 2018, por volta das 16 horas, no quarto nº 10 da Pousada dos Viajantes, localizado na Rua Paim Filho, nº 643, Centro, no município de Lagoa Vermelha/RS, o denunciado MARION SOARES DE SOARES, fazendo uso de uma faca, apreendida conforme auto de apreensão da fl. 55 do IP, com emprego de meio cruel, matou JULIANA COELHO PADILHA, com quem mantinha um relacionamento amoroso, causando-lhe as lesões descritas no auto de necropsia que segue anexo, o qual consigna como causa mortis choque hipovolêmico decorrente de lesão de esgorjamento que provocou lesão de grandes vasos da região cervical e morte por perda hipovolêmica.

Na ocasião, o denunciado e a vítima estavam no interior do quarto da Pousada dos Viajantes, momento em que MARION SOARES DE SOARES desferiu golpes de faca contra a vítima.

O crime foi cometido com emprego de meio cruel, visto que a vítima foi atingida por um golpe de faca na região cervical produzindo lesão de esgorjamento, causando-lhe sofrimento intenso.

O crime foi cometido contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, pois o denunciado manteve relacionamento amoroso com a vítima, sendo o crime cometido no âmbito da violência doméstica.

O réu é reincidente conforme certidão judicial criminal das fls. 35/38 do IP.

FATO 02:

Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar descritas no Fato 01, o denunciado MARION SOARES DE SOARES possuía e mantinha sob sua guarda 01 cartucho, calibre 38, marca CBC, intacto, munição de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar (auto de apreensão da fl. 55 do IP).

Na data acima referida, após a ocorrência do fato 01, em busca realizada no local do crime, ou seja, no interior do quarto 10 da Pousada dos Viajantes, foi localizada a munição de arma de fogo acima descrita.'

A denúncia foi recebida em 06/02/2019 (fls. 43/45 do evento 3, PROCJUDIC2).

Citado (fls. 10/12 do evento 3, PROCJUDIC3), o réu apresentou resposta à acusação por meio de advogado particular (fls. 29/41 do evento 3, PROCJUDIC3).

Afastadas as hipóteses de absolvição sumária, determinou-se o prosseguimento do feito (fls. 48/50 do evento 3, PROCJUDIC3 e fls. 01/02 do evento 3, PROCJUDIC4).

Durante a instrução, foram ouvidas oito testemunhas, interrogando-se o réu (fls. 29/31 do evento 3, PROCJUDIC5, fls. 04/06 do evento 3, PROCJUDIC6 e fls. 18/20 do evento 3, PROCJUDIC7). Anexados os termos de degravação às fls. 04/21 do evento 3, PROCJUDIC14, fls. 13/50 do evento 3, PROCJUDIC15 e fls. 01/13 do evento 3, PROCJUDIC16.

Sobreveio sentença, publicada, presumivelmente, em 30/07/2020, que pronunciou o réu MARION SOARES DE SOARES como incurso nas iras do art. 121, §2º, incisos III e VI, do Código Penal, e art. 12, caput, da Lei nº 10.826/03, combinado com o art. 61, inciso I, na forma do art. 69, ambos do Código Penal, para submetê-lo ao julgamento pelo Tribunal do Júri (fls. 30/50 do evento 3, PROCJUDIC8 e fls. 01/17 do evento 3, PROCJUDIC9).

Em 06/12/2021, o réu foi submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri da Comarca, que o CONDENOU como incurso nas sanções do art. 121, caput, do Código Penal, ABSOLVENDO-O das imputações relativas ao 2º fato descrito na denúncia (fls. 30/50 do evento 3, PROCJUDIC19 e fls. 01/05 do evento 3, PROCJUDIC20), sendo-lhe aplicada pena corporal, pelo primeiro fato, de 13 anos de reclusão, em regime inicial fechado.

Irresignadas, as partes interpuseram recursos de apelação (fls. 06 e 08 do evento 3, PROCJUDIC20).

O Ministério Público, em suas razões, rebela-se contra o afastamento das qualificadoras do feminicídio e do meio cruel, afirmando que a decisão do Conselho de Sentença foi contrária à prova dos autos, pelo que pretende a submissão do acusado a novo júri (fls. 24/34 do evento 3, PROCJUDIC20).

A Defesa, por sua vez, aduziu haver erro ou injustiça no tocante à aplicação da pena, com fundamento no art. 593, inciso III, alínea "c" do CPP. Ainda, argumentou que a pena aplicada contrariou a decisão dos jurados, visto que houve o uso indevido de duas qualificadoras afastadas pelo Conselho de Sentença para valorar desfavoravelmente os motivos e circunstâncias do delito. Requereu, ainda, a revogação da prisão preventiva, pugnando pela aplicação de medidas cautelares diversas da prisão (fls. 11/21 do evento 3, PROCJUDIC20).

Contrarrazões apresentadas às fls. 36/40 do evento 3, PROCJUDIC20 pelo Ministério Público, e às fls. 40/48 do evento 3, PROCJUDIC20 pela defesa.

Neste grau de jurisdição, o Ministério Público emitiu parecer por meio da ilustre Procuradora de Justiça, Dra. Ana Rita Nascimento Schinestsck, manifestando-se pelo desprovimento do recurso defensivo e provimento do recurso ministerial, com a anulação da decisão do Tribunal do Júri, devendo o acusado MARION ser submetido a novo Júri (evento 7, PARECER1).

É o relatório.

VOTO

Conheço dos recursos interpostos, uma vez que satisfazem os requisitos intrínsecos (adequação legal, legitimação e interesse) e extrínsecos (tempestividade e regularidade formal) de admissibilidade.

Não havendo preliminares a enfrentar, passo a analisar o mérito recursal, iniciando pelo recurso ministerial, pois o acolher de suas razões importa em prejuízo na análise das questões debatidas pela defesa, que se voltam contra aspectos da dosimetria da pena.

Pois bem.

Requer o Ministério Público, de proêmio, seja o réu submetido a novo julgamento pelo Tribunal do Júri por ser a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos, nomeadamente por terem eles, durante a votação dos quesitos, excluído as qualificadoras do meio cruel e do feminicídio.

Impende destacar que o art. 5º, alínea “c”, inciso XXXVIII, da Constituição Federal, confere ao Júri a soberania dos seus veredictos. Todavia, tal soberania pode - e deve - ser relativizada se a decisão não encontra apoio na prova dos autos.

Segundo SANCHES CUNHA e BATISTA PINTO, por sentença contrária à prova dos autos entende-se aquela que “não tem apoio em prova nenhuma, é aquela proferida ao arrepio de tudo quanto mostram os autos, é aquela que não tem a suportá-la, ou justificá-la, um único dado indicativo do acerto da conclusão adotada.”1

Lado outro, se a decisão encontra respaldo na prova produzida, aderindo ao menos a uma das versões existentes no contexto probatório, deve ser mantida, em nome da soberania dos veredictos, levando-se em conta, também, que os jurados deliberam segundo a sua íntima convicção, sem a necessidade de fundamentar suas decisões.

De se repetir que somente a decisão totalmente avessa à prova dos autos é que comporta novo julgamento com base no art. 593, inciso III, alínea “d”, do Código de Processo Penal.

Feitas essas considerações preliminares e volvendo ao caso concreto, irresigna-se o Ministério Público quanto ao não reconhecimento das qualificadoras do meio cruel e do feminicídio.

Analiso a segunda delas, em primeiro plano.

A qualificadora do feminicídio, prevista no artigo 121, § 2º, inciso VI, do Código Penal, incide nos casos em que o homicídio é praticado contra mulher em razão da condição do sexo feminino. A explicar em que consistiria esse motivo, o art. 121, § 2º-A, refere tratar-se de (I) violência doméstica e familiar; ou (II) menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Feitas tais considerações, de referir que se trata, aqui, de qualificadora de natureza objetiva, conforme consistente e reiterada jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a exemplo da ementa a seguir transcrita:

AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO. SENTENÇA DE PRONÚNCIA. MEIO QUE DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA E FEMINICÍDIO. PLEITO DE AFASTAMENTO DAS QUALIFICADORAS. ALEGADA AUSÊNCIA DE CONGRUÊNCIA LÓGICA COM OS TERMOS DA ACUSAÇÃO. TESE DEFENSIVA NÃO DEBATIDA NAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS SOB ESSE PRISMA. SÚMULAS 282 E 356/STF. INEXISTÊNCIA DE PROVA ACERCA DA MOTIVAÇÃO RELACIONADA À CONDIÇÃO DE SER MULHER. IRRELEVÂNCIA. ÂNIMO DO AGENTE. ANÁLISE DISPENSÁVEL DADA A NATUREZA OBJETIVA DO FEMINICÍDIO. PRECEDENTES. ALEGAÇÃO DE EXCESSO DE LINGUAGEM. NÃO OCORRÊNCIA.
1. A ausência de debate no acórdão sob o prisma trazido nas razões do especial atrai, à espécie, a incidência das Súmulas 282 e 356/STF, ante a falta de prequestionamento, não bastando, para afastar referido óbice, a alegação no sentido de que sempre se insurgiu contra a sua manutenção, e sob o mesmo fundamento (fl. 196), uma vez que o prequestionamento consiste na apreciação da questão pelas instâncias ordinárias, englobando aspectos presentes na tese que embasa o pleito apresentado no recurso especial (AgRg no REsp n. 1.795.892/RN, Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, DJe 27/9/2019).
2. A jurisprudência desta Corte de Justiça firmou o entendimento segundo o qual o feminicídio possui natureza objetiva, pois incide nos crimes praticados contra a mulher por razão do seu gênero feminino e/ou sempre que o crime estiver atrelado à violência doméstica e familiar propriamente dita, assim o animus do agente não é objeto de análise (AgRg...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT