Acórdão nº 50013971220188210036 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Oitava Câmara Criminal, 31-05-2022

Data de Julgamento31 Maio 2022
ÓrgãoOitava Câmara Criminal
Classe processualApelação
Número do processo50013971220188210036
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Tipo de documentoAcórdão

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20002156994
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

8ª Câmara Criminal

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Apelação Criminal Nº 5001397-12.2018.8.21.0036/RS

TIPO DE AÇÃO: Furto Qualificado (Art. 155, § 4º)

RELATOR: Desembargador LEANDRO FIGUEIRA MARTINS

APELANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (AUTOR)

APELADO: CARLOS ALEXANDRE DORNELES (RÉU)

RELATÓRIO

O MINISTÉRIO PÚBLICO ofereceu denúncia contra CARLOS ALEXANDRE DORNELES, afirmando estar incurso nas sanções do artigo 155, §§ 1º e 4º, inciso II, do Código Penal (CP), pela prática do seguinte fato descrito na peça inicial (processo 5001397-12.2018.8.21.0036/RS, evento 4, PROCJUDIC1, fls. 2/4):

"No dia 13 de junho de 2018, por volta das 22h30min, na rua Ely Ortiz, nº 110, Bairro Fontes, em Soledade, o denunciado CARLOS ALEXANDRE DORNELES subtraiu, para si ou para outrem, durante o repouso noturno e mediante abuso de confiança, coisas alheias móveis consistentes em 01 (um) aparelho celular, de cor preta, operadora Claro, 01 (um) relógio marca Oriente, cor dourada, 01 (um) machado de cor preta e 01 (um) cadeado grande, objetos de propriedade da vítima Pedro Zaloar dos Santos Dorneles, pai do denunciado.

Na oportunidade, o denunciado CARLOS ALEXANDRE DORNELES, aproveitando-se da menor vigilância decorrente do horário de repouso noturno e abusando da confiança de seu pai, com quem residia, subtraiu da residência os objetos supradescritos.

Os objetos subtraídos foram avaliados em R$ 1.519,00 (um mil quinhentos e dezenove reais), segundo auto de avaliação indireta (fl. 11 do I.P.).

A vítima é pessoa idosa".

Em 06/11/2018, a denúncia, em decorrência do disposto no artigo 181, inciso II, do CP, foi rejeitada (processo 5001397-12.2018.8.21.0036/RS, evento 4, PROCJUDIC1, fl. 29), decisão desconstituída em sede recursal (processo 5001397-12.2018.8.21.0036/RS, evento 4, PROCJUDIC2, fls. 15/20).

Com o retorno dos autos à origem, foi proferida nova decisão, nos seguintes termos (processo 5001397-12.2018.8.21.0036/RS, evento 4, PROCJUDIC3, fls. 43/49):

"Vistos etc.

1) Em face da Superior Decisão, passo a analisar a justa causa para a admissibilidade da persecução penal: "jus persequendi in judicio". Pois bem.

2) A autoridade policial resumiu a investigação preliminar ao depoimento do ofendido e interrogatório do acusado (fls. 08-9), avaliação indireta da suposta "res furtivae" (fl. 06). Encerrou-a com seu indiciamento por "furto simples" (fls. 13-4).

3) Não foi diligenciada a efetiva posse e domínio dos bens pelo ofendido. Notas fiscais de tais não foram apresentadas, muito menos algum outro indício de prova neste sentido (art. 369 do CPC; art. 1228 do CC). O acusado negou a subtração.

4) Não se tem, "data venia", sequer adminículo de prova conferindo razoabilidade acusatória: "fumus commissi delicti". Muito menos, salvo a isolada suspeita do genitor, resultou diligenciado algum indício de autoria. Enfim: o suporte probatório existente nos autos é meramente conjectural, ilativo ou dele sugestivo muito possivelmente decorrente apenas das condições pessoais do acusado de dependente químico crônico. O famigerado direito penal do autor é dogmática e epistemicamente incompatível com o Estado Constitucional de Direito: "rule of law" (art. 1° da CF).

5) Isto, sob o postulado do estado constitucional de direito (art. 1° da CF). Comete-se defeso na medida que o famigerado direito penal do autor se lhe apresentar ontologicamente incompossível. O processo penal democrático pressupõe o direito do fato como elemento basilar e ineludível da formação da culpa. Neste sentido, HC 188.888-MG1, Rel. Celso de Mello).

6) Em face do enorme "streptus fori" do processo penal, consoante a melhor doutrina, não se prescinde de um "standard" probatório mínimo da autoria e, no que respeita a materialidade (art. 386, II, do CPP), de provas cabais, irrefutáveis, diretas ou, no limite, indiretas desde que objetivamente indicativas de sua existência fenomênica e titularidade (art. 167 do CPP).

7) No caso, é certo que a condição de genitor, em certa medida, induz idoneidade probatória, mas isoladamente, sob a perspectiva da teoria geral do processo penal democrático (vide STF, HC.888-MG), só autoriza a formalização ou abertura de investigação preliminar. É insuficiente, no entanto, para a admissibilidade do "jus persequendi in judicio". Falta-lhe a justa causa.

8) A respeito, é oportuna a doutrina de Canotilho, "o princípio da concordância prática ou da harmonização (..) impõe a coordenação e combinação de bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício (total) de uns em relação aos outros" (..) O campo de eleição do princípio da concordância prática tem sido até agora o dos direitos fundamentais (colisão entre direitos fundamentais ou entre direitos fundamentais e bens jurídicos constitucionalmente protegidos). Subjacente a este princípio está a ideia do igual valor dos bens constitucionais (e não uma diferença de hierarquia) que impede, como solução, o sacrifício de uns em relação aos outros, e impõe o estabelecimento de limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre estes bens" (J.J Gomes Canotilho. Direito Constitucional e a Teoria da Constituição, 4ª ed, Coimbra: Almedina, s/d, p. 1.188, grifei).

9) Noutro passo, convém trazer à baila a judiciosa crítica que a doutrina tece a respeito da expressão "fundada suspeita" contida no artigo 304,§1°, e 241, §1º, do CPP. É como se depreende (parte) do recente artigo, judicioso e rico em fundamentos doutrinários, do insigne delegado de Polícia Leonardo Marcondes Machado publicado na revista eletrônica CONJUR (), in verbis:

[...]

10) Por outro lado, como bem reconhecido pela autoridade policial, a exata definição jurídica do fato é de furto simples. Primeiro, porque a condição de filho do acusado e, assim, com livre e natural acesso à residência do genitor, presumidamente, em qualquer horário como sói acontecer com nove entre dez dos filhos, naturalmente, exclui título para a coincidência da majorante do repouso noturno.

11) Segundo: porque a posse ou detenção dos bens dos pais pelos filhos é comum e decorre da natural e ingênita fidúcia ingênita à filiação afetiva incondicional. Não há, sob o enfoque dogmático, violação ou abuso do sentimento de confiança, mas, sim, apoderamento ou inversão do domínio pelo simples sentimento de pertencimento filial. Não por outras razões, ordinariamente, tais atos de apropriação patrimonial familiar são impuníveis (escusas absolutórias).

12) ISSO POSTO, por novos fundamentos jurídicos e factuais, rejeito a denúncia (art. 395, III e 386, II do CPP)".

O Ministério Público ingressou com apelação (processo 5001397-12.2018.8.21.0036/RS, evento 4, PROCJUDIC4, fl. 1). Em síntese, sustentou (processo 5001397-12.2018.8.21.0036/RS, evento 4, PROCJUDIC4, fls. 8/15): (a) o cabimento do recurso; (b) haver "nos autos elementos de prova suficientes para iniciar o processamento da ação penal", ressaltando que "nesse momento processual vige o princípio do in dúbio pro societate" (fl. 12); (c) que "a palavra da vítima deve ser valorizada de maneira diferenciada no presente caso, assumindo especial relevo, uma vez se tratando de genitor idoso" (fl. 13); (d) incidir a qualificadora do abuso de confiança nos "casos em que pessoas sejam parentes e residam na mesma casa, uma vez que tal facilidade de acesso irrestrito a cômodos da residência comum é circunstância que notoriamente facilita a subtração" (fl. 14), bem como a majorante do repouso noturno. Ao final, fazendo prequestionamento, pediu a reforma da decisão, recebendo-se a denúncia e determinado-se o prosseguimento da ação penal.

Em contrarrazões, o denunciado, transcrevendo trecho da sentença recorrida, postulou o não provimento do recurso (processo 5001397-12.2018.8.21.0036/RS, evento 4, PROCJUDIC4, fls. 16/23).

Nesta instância, a Procuradoria de Justiça lançou parecer, manifestando-se pelo provimento do recurso (processo 5001397-12.2018.8.21.0036/TJRS, evento 6, PARECER1).

É o relatório.

VOTO

Inicialmente, havendo rejeição da denúncia, cabível recurso em sentido estrito (STJ - RHC 34.565/PE, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 08/03/2016, DJe 21/03/2016), nos termos do artigo 581, inciso I, do Código de Processo Penal (CPP).

No caso concreto, todavia, nada obstante a interposição de apelação, possível seu recebimento e apreciação pelo princípio da fungibilidade recursal, destacando-se o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça (STJ):

"PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. IRRESIGNAÇÃO MINISTERIAL. APELAÇÃO. HIPÓTESE DO ARTIGO 581, INCISO I, DO CPP. APLICAÇÃO DA REGRA DO ART. 579 DO CPP. PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS DO RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. INEXISTÊNCIA DE MÁ-FÉ.
1. É possível ao relator apreciar o mérito do recurso especial ao julgar monocraticamente o agravo, não havendo qualquer ilegalidade em tal ato.
2. A jurisprudência desta Corte Superior admite a fungibilidade recursal, a teor do art. 579 do CPP, quando, além de observado o prazo do recurso que se pretende reconhecer, não fica configurada a má-fé ou a prática de erro grosseiro. Assim, tendo sido interposta apelação contra a decisão que rejeitou a denúncia, cabível a sua conversão em recurso em sentido estrito desde que demonstrada a ausência de má-fé e a tempestividade do recurso, como ocorreu no presente caso.
3. Agravo regimental não provido" (AgRg no AREsp 644.988/PB, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 19/04/2016, DJe 29/04/2016 - grifou-se).

Superada a questão, no tocante ao cerne do recurso, oportuno mencionar o exposto por Fernando da Costa Tourinho Filho1:

“Muito embora já...

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