Acórdão nº 50016031720178210018 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Quarta Câmara Criminal, 03-02-2022

Data de Julgamento03 Fevereiro 2022
ÓrgãoQuarta Câmara Criminal
Classe processualApelação
Número do processo50016031720178210018
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Tipo de documentoAcórdão

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20001532607
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

4ª Câmara Criminal

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Apelação Criminal Nº 5001603-17.2017.8.21.0018/RS

TIPO DE AÇÃO: Crimes do Sistema Nacional de Armas (Lei 9.437/97 e Lei 10.826/03)

RELATOR: Desembargador JULIO CESAR FINGER

APELANTE: SEGREDO DE JUSTIÇA

ADVOGADO: CRISTIANO VIEIRA HEERDT (DPE)

APELADO: SEGREDO DE JUSTIÇA

RELATÓRIO

Nos autos da ação penal nº 018/2.17.0001439-9, posteriormente digitalizada e cadastrada no eproc sob o número 5001603-17.2017.8.21.0018:

O Ministério Público ofereceu denúncia contra JOÃO DANIEL MAFFACIOLI, já qualificado, como incurso nas sanções do artigo 12, caput, da Lei nº 10.826/03 (1º fato), e do artigo 29, §1º, III, da Lei nº 9.605/98 (2º fato), em razão da prática dos seguintes fatos relatados na denúncia:

FATO 01:

No dia 13 de fevereiro de 2017, aproximadamente às 08 horas e 45 minutos, na Estrad aSantos Reis, nº 2885, localidade de Santos Reis, área rural, em Montenegro/RS, o denunciado JOAO DANIEL MAFFACIOLI possuía arma de fogo, acessório e munião de uso permitido, quais seja, 01 (uma) espingarda nº 63865 calibre .20, 03 (três) cartuchos de munição calibre .20, 10 (dez) estojos de munição calibre 36, 02 (dois) cartuchos de munição calibre 36, 10 (dez) estojos de munição calibre 32, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, dentro de uma caixa, sob a cama no interior de sua residência, consoante boletim de ocorrência de fls., auto de apreensão de fls. e laudo pericial de fls.

FATO 02:

Na data, local e horário do fato 01, o denunciado JOAO DANIEL MAFFACIOLI transportava consigo espécimes da fauna silvestre ou em rota migratória, quais sejam, 13 (treze) pássaros Azulão, 06 (seis) pássaros Trinca-ferro, 02 (dois) pássaros Sanhaço-frade, 03 (três) pássaros Pintassilgo, 02 (dois) pássaros Coleirinho-cinza, 02 (dois) pássaros Canário-da-terra, 01 (um) pássaro Sargento e 02 (dois) pássaros Cravina, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente.

À ocasião do fato, agentes da PATRAM receberam denúncia de que o denunciado estaria mantendo animais silvestres em cativeiro. Ao chegarem no local do fato, foram encontradas as aves acima descritas, bem como diversas gaiolas, alçapões de rede e transportadores de pássaros.

Ato contínuo, a entrada dos agentes doi franqueada pelo denunciado. Durante a revista, encontraram as armas e munições suprarreferidas, além de instrumentos para recarga de cartuchos de munição.

A denúncia foi recebida em 19/09/2017 (evento 3, PROCJUDIC2, fl. 81).

Após regular instrução do feito, sobreveio sentença (evento 3, PROCJUDIC4, fls. 138/146v), publicada em 12/12/2019 (evento 3, PROCJUDIC4, fl. 147v), que julgou procedente a ação penal, para condenar o réu pela prática dos crimes previstos no art. 12, caput, da Lei 10.826/2003 e art. 29, § 1º, III, da Lei nº 9.605/98, à pena total de 01 ano e 02 meses de detenção, em regime inicial aberto, substituída por duas penas restritivas de direitos, consistentes em prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária no valor de um salário mínimo, mais pagamento de 20 dias-multa à razão de 1/30 do salário mínimo vigente à época do fato.

A defesa apelou no evento 3, PROCJUDIC4, fl. 148 e, nas razões (evento 3, PROCJUDIC4, fls. 150/157v), pede a reforma da sentença. Sustenta, com relação ao crime de posse de arma, a atipicidade da conduta, por ausência de lesividade ao bem jurídico tutelado pela norma. Argumenta que a apreensão de uma arma de fogo na residência do acusado, guardada como relíquia de família, não é conduta apta a ensejar risco à segurança pública e à paz social, bem como refere a incidência do erro de proibição, tratando-se o acusado de pessoa leiga, que não tinha consciência da ilicitude de guardar a arma de fogo que pertencia ao avô na sua residência. Com relação ao transporte de espécimes da fauna silvestre, também sustenta a atipicidade, pela incidência do princípio da insignificância. Pugna, por tais motivos, pela absolvição do acusado. Subsidiariamente, requer a isenção da pena de multa e das custas processuais.

O Ministério Público apresentou contrarrazões (evento 3, PROCJUDIC5, fls. 158/162v).

Os autos foram remetidos a esta Corte.

Nestes autos, a Procuradoria de Justiça lançou parecer (evento 8, PARECER1), opinando pelo improvimento do apelo.

É o relatório.

VOTO

I. Admissibilidade

O recurso preencheu os requisitos para a admissibilidade, pelo que vai conhecido.

II. Mérito

O denunciado foi condenado pela prática dos crimes previstos no art. 12, caput, da Lei nº 10.826/2003, e do art. 29, § 1º, III, da Lei nº 9.605/98, à pena total de 01 (um) ano e 02 (dois) meses de detenção, em regime inicial aberto, substituída por duas penas restritivas de direitos, consistentes em prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária no valor de um salário-mínimo, e pagamento de 20 (vinte) dias-multa à razão de 1/30 do salário mínimo vigente à época do fato.

Do 1º Fato - Posse irregular de arma de fogo:

A Defesa alega (i) atipicidade dos crimes de perigo abstrato, ausente risco efetivo de lesão ao bem juridicamente tutelado e (iii) erro de proibição, por se tratar de pessoa leiga.

Sem razão no caso concreto.

A conduta se amolda ao crime de posse irregular de arma de fogo, acessório e munições, delito que prescinde da demonstração do risco de dano. As Cortes Superiores, sobretudo o STF, guardião da Constituição Federal, afirmam não haver inconstitucionalidade na definição de crimes de perigo abstrato, tendo sido reconhecida, inclusive, a adequação da Lei nº 10.826/03 ao ordenamento pátrio por meio da ADI 3112/DF1. Nesse sentido, paradigmático precedente daquele Tribunal (HC 104410/RS – Min. Gilmar Mendes – Segunda Turma – Julgamento 06/03/2012). É prescindível, na hipótese, a demonstração de perigo de dano2. Também é o entendimento do STJ3. Por conta disso, inclusive, levando-se em conta o bem jurídico tutelado (incolumidade pública4), inexiste violação ao princípio da lesividade, matéria pacificada junto à 3ª Seção do STJ5.

A conduta, portanto, é típica.

No mais, o recurso não devolveu a esta Câmara a rediscussão dos fatos apontados na denúncia, razão por que, de acordo com entendimento jurisprudencial corrente, não se revela necessário dito enfrentamento. É o que vem defendendo, por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça, ao destacar que O efeito devolutivo do recurso de apelação criminal encontra limites nas razões expostas pelo recorrente, em respeito ao princípio da dialeticidade que rege os recursos no âmbito processual penal pátrio, por meio do qual se permite o exercício do contraditório pela parte que defende os interesses adversos, garantindo-se, assim, o respeito à cláusula constitucional do devido processo legal. (HC 490.237/SC, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 21/03/2019, DJe 28/03/2019).

Nada obstante, destaco que a materialidade está comprovada nos autos originais, evento 3, PROCJUDIC1, pelo boletim de ocorrência (fls. 17/20), pelo auto de apreensão (fl. 21), pelo exame de funcionalidade de arma de fogo (fl. 27), bem como pela prova oral colhida nos autos, que também dá conta da autoria e foi devidamente sintetizada no parecer de lavra do Procurador de Justiça Ubaldo Alexandre Licks Flores, conforme se transcreve:

O apelante, interrogado, confessou que possuía a arma de fogo referida na denúncia, alegando tê-la adquirida por herança.

Os policiais militares Denise Gaertner e Luís Fernando da Silva confirmaram que, conforme informações recebidas, o apelante capturava pássaros silvestres. Na data dos fatos, foram até a sua residência, localizando uma rede para captura dos animais e diversos pássaros, muitos da mesma espécie, caracterizando o intuito comercial. Esclareceram, ainda, que o apelante lhes franqueou o ingresso na residência, tendo entregado espontaneamente uma arma de fogo que guardava em seu quarto.

Do contexto narrado, verifica-se que a prova é certa no sentido do cometimento pelo acusado do crime de posse irregular de arma de fogo. Os policiais ouvidos apresentaram relatos firmes e minudentes, no sentido de que, após comparecerem no endereço do réu para averiguar denúncia de animais silvestres mantidos em cativeiro, localizaram, além de pássaros silvestres, uma espingarda e munições. O réu confessou lisamente a prática delitiva, afirmando que recebeu a arma de herança do avô, mas nunca a utilizou, permanecendo guardada.

Quanto à tese de que o réu era pessoa leiga e não tinha conhecimento da ilicitude da sua conduta, inviável o acolhimento. Com efeito, o acusado possuía plena possibilidade de conhecer o caráter ilícito da conduta, na medida em que o Estatuto...

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