Acórdão nº 50017458520218210016 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Décima Sétima Câmara Cível, 27-01-2022

Data de Julgamento27 Janeiro 2022
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Classe processualApelação
Número do processo50017458520218210016
Tipo de documentoAcórdão

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20001343996
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

17ª Câmara Cível

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Apelação Cível Nº 5001745-85.2021.8.21.0016/RS

TIPO DE AÇÃO: Empréstimo consignado

RELATORA: Desembargadora LIEGE PURICELLI PIRES

APELANTE: MARIA IVONE WILENBERG (AUTOR)

APELADO: BANCO BMG S.A (RÉU)

RELATÓRIO

Adoto, de início, o relatório da sentença (Evento 13, SENT1):

MARIA IVONE WILENBERG ajuizou AÇÃO DE INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO JURÍDICA RELATIVA A CARTÃO DE CRÉDITO c/c INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL contra o BANCO BMG S.A. Alegou que recebe benefício previdenciário e firmou com o requerido contrato de empréstimo consignado, cujos pagamentos seriam descontados mensalmente de seu benefício. No entanto, após a celebração do contrato percebeu que era descontado valor a título de “empréstimo RMC”. Discorreu acerca da descaracterização do contrato de empréstimo e da ilegalidade da cobrança de valores não contratados. Invocando o Código de Defesa do Consumidor. Requereu que fosse declarado o cancelamento do cartão de crédito a liberação da Reserva de Margem Consignável (RMC) junto à previdência e a declaração de inexistência de relação jurídica relativa ao Cartão de crédito, com a condenação do requerido ao pagamento de dano moal, em valor a ser arbitrado pelo juízo, sugerindo R$ 11.000,00. Postulou a readequação do “empréstimo” via cartão de crédito consignado (RMC) para empréstimo consignado; alternativamente, a conversão do empréstimo de cartão de crédito consignado para empréstimo pessoal consignado. Pediu AJG e juntou documentos.

Foi concedida a AJG à autora (evento 03).

Não foi designada audiência para tentativa de conciliação, tendo em vista a ausência de pauta e/ou impossibilidade técnica de realização (evento 05).

Citado, réu contestou (evento 09), alegando preliminarmente prescrição, falta de interesse de agir, postulando a extinção do feito. No mérito, discorreu acerca da improcedência da ação. Referiu que não há nulidade no contrato, nem razão para repetição de valores cobrados, ou de indenização por danos morais, pois o requerente contratou de livre e espontânea vontade. Postulou a improcedência, com a condenação da autora nos ônus sucumbenciais. Juntou documentos.

Houve réplica (evento 12).

Foram afastadas as preliminares suscitadas (evento 17).

Intimadas as partes acerca das provas que pretendiam produzir, ambas informaram não ter mais provas a produzir.

Sobreveio o dispositivo da decisão supracitada:

ISSO POSTO, julgo IMPROCEDENTES os pedidos MARIA IVONE WILENBERG contra o BANCO BMG S.A., pois comprovada a contratação do serviço questionado, não havendo provas da abusividade ou da prática de ato ilícito pelo réu.

Tendo em vista a sucumbência, arcará a autora com as custas processuais e honorários ao procurador do réu, que fixo em 10% do valor da causa, atualizado, com observância do art. 85, § 2º, NCPC, considerando a ausência de instrução e o rápido deslinde do feito, verbas estas que ficam suspensas em face da AJG deferida.

Inconformado, apelou o autor (Evento 31, APELAÇÃO1). Em suas razões recursais, sustenta que não teve a intenção de contratar um cartão de crédito, mas sim um empréstimo consignado. Alega que a conduta da ré é abusiva, já que os descontos mensalmente efetuados em sua conta não abatem o saldo devedor, pois o desconto do mínimo cobre apenas os juros e encargos mensais do cartão, tornando impagável a dívida. Entende ter sofrido abalo moral, Pede a conversão do negócio para um empréstimo consignado convencional. Entende que os valores descontados indevidamente devem ser repetidos em dobro. Nesses termos, requer o provimento do apelo.

Foram apresentadas contrarrazões (Evento 32, CONTRAZAP1).

É o relatório.

VOTO

Por atendimento aos requisitos intrínsecos e extrínsecos de admissibilidade, conheço do recurso.

Trata-se de demanda em que a autora alega, em síntese, ter ocorrido vício de consentimento em pactuação havida com o Banco réu, por ter sido realizada reserva de margem consignada de cartão de crédito, quando tinha a intenção de contratar empréstimo pessoal consignado.

O contrato em debate é o n. 38944455 e consta em Evento 9, CONTR2.

Contra o julgamento de improcedência, apela o autor.

Pois bem.

Dispõe o art. 138 do Código Civil:

São anuláveis os negócios jurídicos, quando as declarações de vontade emanarem de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio.

Teoricamente, existe diferença entre erro e ignorância. O erro é uma falsa representação positiva da realidade, ao passo que a ignorância é um estado de espírito negativo, traduzindo desconhecimento. Na prática não é simples traçar, contudo, uma diferenciação, de modo que se costuma tratá-los da mesma forma.

O erro pode descaracterizar o negócio jurídico, pois é vício da vontade, causa de anulação. Na doutrina mais clássica costuma-se dizer que o erro, para anular o negócio jurídico (vício da vontade), deve ser substancial e escusável, ou seja, perdoável. Deve o erro atacar a substância do negócio para ser anulável. Deve, ainda, ser perdoável, pois a lei não existe para proteger os desatentos. Segundo a doutrina clássica, o erro é anulável quando ataca a substância do ato e é perdoável ao homem médio. Trata-se, contudo, de entendimento demasiadamente subjetivo, razão pela qual a doutrina moderna, com base no princípio da confiança, que protege a boa-fé das pessoas, e, considerando a dificuldade na análise da escusabilidade do erro, tem dispensado esse segundo requisito.

Para justificar a anulação do negócio deve haver, ainda, um efetivo prejuízo da parte. Nesse viés, possível identificar basicamente três espécies de erro: a) erro sobre o negócio; b) erro sobre o objeto; c) erro sobre a pessoa. O exemplo mais comum é o erro sobre o objeto previsto no artigo 138 e inciso I do artigo 139 do CC/02.

No caso, a parte autora firmou contrato de cartão de crédito com autorização de reserva de margem consignável, mas que a intenção era a de contratar empréstimo consignado, sendo impagável a dívida tal como colocada pela parte mutuante. A parte ré demonstrou que disponibilizou valores a parte autora em decorrência do contrato firmado entre as partes (OUT. 4 no EVENTO 9). Entretanto, dos extratos de cartão de crédito colacionados no mesmo Evento, não consta qualquer compra realizada pelo autor, ou seja, a parte autora não fez uso do cartão em nenhum momento.

A demandante recebe benefício previdenciário de baixo valor e fez empréstimo mediante condições mais onerosas que as previstas para contrato de empréstimo pessoal, que era sua real intenção. Está previsto no contrato em voga CET de 53,11 ao ano (EVENTO 9, CONTR2), ao passo que, para o mesmo período de celebração (setembro/2015), a taxa média de juros estipulada pelo BACEN para crédito consignado a aposentados do INSS era de 28,12% ao ano (20746 - Taxa média de juros das operações de crédito com recursos livres - Pessoas físicas - Crédito pessoal consignado para aposentados e pensionistas do INSS).

É dever dos fornecedores e prestadores de serviços o agir com lealdade e confiança na formação dos contratos, protegendo a expectativa de ambas as partes. Em outras palavras, a boa-fé objetiva - premissa basilar que deve ser observada em toda relação contratual - constitui um padrão ético de comportamento que deve ser seguido por ambos os contratantes em todas as fases da relação contratual.

Em que pesem as formalidades na formação da relação negocial tenham sido observadas, é preciso considerar que o contrato fornecido ao autor se mostra excessivamente oneroso com flagrante desequilíbrio entre as partes, caracterizando prática abusiva e vedada pelo ordenamento jurídico (art. 39, inc. V, do Código de Defesa do Consumidor).

O Código do Consumidor dispõe ainda sobre a nulidade de cláusulas contratuais, nos seguintes termos:

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

[...]

IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;

[...]

Assim dispõe o Código Civil acerca das declarações de vontade:

Art. 110. A manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento.

Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.

Por outro lado, a nulidade de uma cláusula não resulta em inexistência da relação jurídica estabelecida entre as partes, na medida em que o autor se beneficiou do valor tomado em empréstimo, cabendo assim tão somente adequar a relação ao fim pretendido, sob pena de enriquecimento sem causa (art. 884 do CCB).

Nesse sentido, precedentes desta Corte:

APELAÇÃO CÍVEL. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. CONTRATOS DE CARTÃO DE CRÉDITO COM MARGEM CONSIGNÁVEL (RMC). DEFEITOS DO NEGÓCIO JURÍDICO COMPROVADOS. ERRO SUBSTANCIAL. READEQUAÇÃO DO CONTRATO. SENTENÇA PARCIALMENTE MODIFICADA. Aplicabilidade do CDC. Uma vez que o caso trata de típica relação de consumo, o comportamento do banco apelante deve respeito aos axiomas e premissas do Código de Defesa do Consumidor. O raciocínio que se deve desenvolver, portanto, não é puramente civilista - com base da liberdade contratual conferida pelo princípio da autonomia privada-, mas sim de proteção ao correntista como consumidor dos serviços que é. Erro substancial. Comprovação. Autor que possuía como intuito único a contratação de um regular empréstimo pessoal consignado, o que difere do que foi formalizado pela ré. ...

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