Acórdão nº 50018286520208210007 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Quinta Câmara Cível, 06-05-2022

Data de Julgamento06 Maio 2022
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Classe processualApelação / Remessa Necessária
Número do processo50018286520208210007
Tipo de documentoAcórdão
ÓrgãoQuinta Câmara Cível

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20001171199
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

5ª Câmara Cível

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Apelação/Remessa Necessária Nº 5001828-65.2020.8.21.0007/RS

TIPO DE AÇÃO: Indenização por dano material

RELATORA: Desembargadora LUSMARY FATIMA TURELLY DA SILVA

APELANTE: ZILDA LORENA RACKOW CAMARGO (AUTOR)

APELADO: COMPANHIA ESTADUAL DE DISTRIBUIÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA - CEEE-D (RÉU)

RELATÓRIO

Trata-se de recurso de apelação interposto por ZILDA LORENA RACKOW CAMARGO contra a sentença (Evento 42 do processo originário) que, nos autos desta ação indenizatória por danos materiais movida em face de COMPANHIA ESTADUAL DE DISTRIBUIÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA CEEE-D, julgou improcedente a demanda.

Adoto o relatório da r. sentença, que bem narrou o presente caso:

A parte autora disse que é produtora rural de fumo e utiliza estufa(s) elétrica(s) para secagem de sua produção. Menciona data(s) e horário(s) em que o fornecimento de energia elétrica foi interrompido pela ré, o que lhe causou prejuízos pela perda total ou parcial da qualidade do produto em secagem, atestada por laudo(s) e quantificado. Requereu assistência judiciária gratuita, pois se trata de pequena produtora rural em agricultura familiar e a condenação da ré ao ressarcimento do prejuízo, juntando procuração e documentos.

Deferida a AJG.

A CEEE-D alegou: 1) a inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor; 2) que a interrupção de energia se deu por caso fortuito ou força maior; 3) falta de comprovação dos danos sofridos, quer por ausência de documento comprobatório da recusa de recebimento do produto pela fumageira, quer pelo fato do laudo juntado ser meramente estimativo, quer pela possibilidade de ocorrência de fraude. Requereu produção de prova oral e pericial e juntou procuração e documentos.

Sobreveio réplica.

Em despacho saneador foi afastada a incidência do CDC e delimitada a matéria controvertida e o ônus da prova.

Instadas as partes quanto a produção de provas, a ré requereu a apresentação das notas fiscais da venda do fumo, sendo juntada a manifestação do autor, com posterior vista a CEEE-D.

Vieram os autos conclusos para a sentença.

E o dispositivo sentencial foi exarado nos seguintes termos:

ISSO POSTO, na forma do artigo 487, inciso I, do Código de Processo Civil, JULGO IMPROCEDENTES os pedidos contidos na AÇÃO DE INDENIZATÓRIA movida por ZILDA LORENA RACKOW CAMARGO contra COMPANHIA ESTADUAL DE DISTRIBUIÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA – CEEE-D.

Por sucumbente, condeno a autora ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios aos patronos da parte ré, os quais fixo em 10% do valor atualizado da causa, forte no art. 85, § 2º, I ao IV, do Código de Processo Civil. Contudo, fica suspensa exigibilidade dos ônus sucumbenciais, tendo em vista que a autora litiga ao abrigo da gratuidade da justiça, na forma do art. 98 do Código de Processo Civil.

Em suas razões recursais (Evento 47 do processo originário), a parte autora defende a incidência do Código de Defesa do Consumidor, tendo em vista que a relação existente entre as partes é de consumo, na medida em que a recorrente exerce atividade agrícola familiar em unidade consumidora de pequena propriedade e a recorrida, por sua vez, é prestadora de serviços no fornecimento de energia elétrica. Assevera que a concessionária não prestou o serviço de fornecimento de energia elétrica de maneira adequada, em razão da falha na prestação de serviço. Pontua que a interrupção no fornecimento de energia elétrica é questão incontroversa nos autos. Aponta a responsabilidade objetiva da demandada. Discorre sobre a aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Refere sua vulnerabilidade técnica e econômica em face da demanda. Menciona que é pequena produtora rural e pessoa hipossuficiente. Sustenta a inaplicabilidade de penalização da recorrente pela má prestação do serviço oferecido pela concessionária. Disserta sobre a essencialidade do serviço de fornecimento de energia elétrica. Alega que não pode ser imputado ao consumidor o ônus de adquirir gerador de energia próprio, pois é dever da concessionária a continuidade da prestação do serviço. Colaciona jurisprudência. Postula pela condenação da ré ao pagamento do valor integral da indenização por danos materiais experimentados pela recorrente. Pugna pelo redimensionamento do ônus de sucumbência, a fim de que seja suportado integralmente pela demandada. Requer o provimento do recurso.

Não foram apresentadas contrarrazões (Evento 58 do processo originário).

Intimada, a demandada regularizou a sua representação processual (Eventos 4 e 8).

Vieram os autos conclusos para julgamento.

Tendo em vista a adoção do sistema informatizado, os procedimentos previstos nos artigos 931, 932 e 934 do Código de Processo Civil foram simplificados, porém cumpridos na sua integralidade.

É o relatório.

VOTO

Eminentes Colegas.

O recurso é de ser conhecido, porquanto preenchidos os pressupostos de sua admissibilidade, sendo tempestivo e dispensado o preparo pela concessão da gratuidade da justiça (Evento 3 do processo originário).

No mérito, com efeito, cumpre anotar que são aplicáveis às relações existentes entre as empresas concessionárias de serviços públicos e as pessoas físicas e jurídicas que se utilizam dos serviços como destinatárias finais as normas do Código de Defesa do Consumidor, dentre outras, quanto à responsabilidade independentemente de culpa (artigo 14) e quanto à essencialidade, adequação, eficiência e segurança do serviço (artigo 22).

No caso em tela, a autora é fumicultora, sua subsistência é baseada na agricultura familiar, identificando-se como destinatária final (consumidora) do serviço de energia elétrica oferecido pela empresa demandada, nos termos do que dispõem os artigos 2º, “caput”1, e 3º, § 2º2, da legislação consumerista.

Importante destacar que o Código de Defesa do Consumidor regula situações em que produtos e serviços são oferecidos ao mercado de consumo para que qualquer pessoa os adquira como destinatária final. São os bens e serviços tipicamente de consumo, levados ao mercado numa rede de distribuição, que serão em algum momento adquiridos “independentemente de o produto ou serviço estar sendo usado ou não para a produção de outros”3, como acontece com o serviço de energia elétrica oferecido pela empresa demandada.

A respeito do tema, bem esclarece o ilustre Professor Rizzatto Nunes em sua obra Comentários ao Código de Defesa do Consumidor4: “a Lei n. 8.078 regula o pólo de consumo, isto é, pretende controlar os produtos e serviços oferecidos, postos à disposição, distribuídos e vendidos no mercado de consumo e que foram produzidos para ser vendidos, independentemente do uso que se vá deles fazer.”

E, mais adiante, conclui: “Dessa maneira, repita-se, toda vez que o produto e/ou serviço puderem ser utilizados como de consumo, incidem na relação as regras do CDC. Vale para a caneta do exemplo supra, mas vale também para a água e a eletricidade que se fornece e para o dinheiro que é emprestado por um banco, porque tais bens são utilizados tanto por consumidores quanto por fornecedores.”

Ainda que assim não fosse, ou seja, ainda que se entendesse que a parte autora, no caso, a produtora rural, não se enquadre, propriamente, no conceito de destinatária final do serviço de energia elétrica, seria possível aplicar as disposições do CDC, porque configurada situação de vulnerabilidade desta em relação à empresa pública fornecedora do serviço de eletricidade.

A mitigação da teoria finalista na interpretação do conceito de consumidor e, portanto, a possibilidade de incidência do CDC, quando comprovada a hipossuficiência da parte, é aplicada pelo e. Superior Tribunal de Justiça, consoante se depreende dos seguintes julgados (com meus grifos):

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RELAÇÃO DE CONSUMO. EXISTÊNCIA. APLICABILIDADE DO CDC. TEORIA FINALISTA. MITIGAÇÃO. POSSIBILIDADE. VULNERABILIDADE VERIFICADA. REVISÃO. ANÁLISE DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO DOS AUTOS. ÓBICE DA SÚMULA N. 7/STJ. DECISÃO MANTIDA.

1. A Segunda Seção desta Corte consolidou a aplicação da teoria subjetiva (ou finalista) para a interpretação do conceito de consumidor. No entanto, em situações excepcionais, esta Corte tem mitigado os rigores da teoria finalista para autorizar a incidência do CDC nas hipóteses em que a parte (pessoa física ou jurídica), embora não seja propriamente a destinatária final do produto ou do serviço, apresenta-se em situação de vulnerabilidade ou submetida a prática abusiva.

2. No caso concreto, o Tribunal de origem, com base nos elementos de prova, concluiu pela vulnerabilidade do agravado em relação à agravante. Alterar esse entendimento é inviável em recurso especial a teor do que dispõe a Súmula n. 7/STJ.

3. Agravo regimental a que se nega provimento.

(AgRg no AResp 415244 S/C, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, 4ª Turma, julgado em 07-05-2015).

DIREITO COLETIVO E DIREITO DO CONSUMIDOR. ASSOCIAÇÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. RENEGOCIAÇÃO DE DÉBITOS ORIUNDOS DE CONTRATO DE CÉDULA DE CRÉDITO RURAL. DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. INCIDÊNCIA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.

1. (...)

6. É torrencial a jurisprudência do STJ reconhecendo a incidência do Código do Consumidor nos contratos de cédula de crédito rural.

7. O próprio CDC estabelece (art. 52) que a outorga de crédito ou concessão de financiamento caracteriza típica relação de consumo entre quem concede e quem o recebe, pois o produto fornecido é o dinheiro ou crédito, bem juridicamente consumível.

7. A norma que institucionaliza o crédito rural (Lei n. 4.829/1965) estabelece como um dos objetivos específicos do crédito rural (art. 3°) é o de "possibilitar o fortalecimento econômico dos produtores rurais, notadamente pequenos e médios"...

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