Acórdão nº 50019121120218210014 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Décima Sétima Câmara Cível, 27-01-2022

Data de Julgamento27 Janeiro 2022
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Classe processualApelação
Número do processo50019121120218210014
Tipo de documentoAcórdão
ÓrgãoDécima Sétima Câmara Cível

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20001453362
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

17ª Câmara Cível

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Apelação Cível Nº 5001912-11.2021.8.21.0014/RS

TIPO DE AÇÃO: Cláusulas Abusivas

RELATORA: Desembargadora LIEGE PURICELLI PIRES

APELANTE: GETULIO DA SILVA VIEIRA (AUTOR)

APELADO: FACTA FINANCEIRA S.A. CREDITO, FINANCIAMENTO E INVESTIMENTO (RÉU)

RELATÓRIO

Inicialmente, adoto o relatório da sentença (Evento 24, SENT1):

GETULIO DA SILVA VIEIRA ajuizou a presente demanda em desfavor da FACTA FINANCEIRA S.A. CREDITO, FINANCIAMENTO E INVESTIMENTO, ambos qualificados, narrando, em suma, que foi ludibriado e induzida em erro pela instituição financeira ré, que lhe ofereceu um empréstimo consignado porém houve a contratação de Cartão de Crédito com Reserva de margem Consignável - RMC. Discorreu sobre as ilegalidades que entende presentes na relação negocial. Postulou, em tutela de urgência, o cancelamento dos descontos do seu benefício previdenciário e a proibição de lançar novos empréstimos sobre a RMC. No mérito, a conversão do contrato de cartão de crédito em contrato de empréstimo consignado, assim como a compensação/repetição do indébito em dobro e a confirmação dos pedidos feitos em tutela de urgência. Ainda, a inversão do ônus da prova e a concessão da gratuidade da justiça. Acostou documentos (evento 01).

Recebida a inicial, foi deferida a gratuidade da justiça à parte autora e o pedido de inversão do ônus da prova, porém indeferido o pedido de tutela de urgência (evento 03).

Citada, a parte ré contestou (evento 08), arguindo, em suma, que a parte autora firmou um contrato de Cartão de Crédito Consignado, o qual originou a averbação da reserva de margem consignável e os descontos a título de RMC. Afirmou que o contrato é claro em relação ao produto ofertado à parte, trazendo todas as cláusulas e a modalidade contratada, o que afasta qualquer vício de consentimento no momento da contratação. Discorreu sobre as características do contrato. Impugnou a existência de ilegalidades, o pedido de cancelamento de descontos e de repetição do indébito. Requereu a improcedência dos pedidos. Acostou documentos.

A parte autora replicou (evento 12).

Oportunizada a produção de provas (evento 14), as partes nada requereram.

Sobreveio o dispositivo da decisão supracitada:

Diante do exposto, JULGO IMPROCEDENTES os pedidos, o que faço com fulcro no art. 487, inciso I, do CPC.

CONDENO a parte autora ao pagamento da totalidade das custas e despesas processuais, assim como honorários advocatícios ao procurador do réu, os quais fixo em 10% sobre o valor atualizado da causa pelo IPCA, forte no art. 85, §2º, do CPC.

Ainda, CONDENO a parte autora a pagar multa no valor equivalente a 09% sobre o valor atualizado da causa pelo IPCA e a indenizar a parte ré por eventuais prejuízos que sofreu, a serem liquidados, nos termos do art. 81 do CPC, em razão da litigância de má-fé.

Isso porque alterou a verdade dos fatos (art. 80, II, do CPC), ao afirmar na inicial que não estava ciente do contrato de cartão de crédito e não autorizou descontos na RMC, o que ficou demonstrado não ser verdade.

SUSPENDO a exigibilidade dos ônus sucumbenciais da parte autora, pelo prazo legal (na forma do art. 98, §3º, do CPC), em virtude de litigar amparada pelo benefício da gratuidade da justiça. Saliento, contudo, que a suspensão não atinge o valor fixado a título de multa por litigância de má-fé, conforme previsão do art. 98, §4º, do CPC.

A parte autora recorre por meio das razões constantes do Evento 28, APELAÇÃO1. Sustenta a abusividade na reserva de margem consignável do contrato, buscando a conversão do contrato em empréstimo consignado. Busca a exclusão da multa por litigância de má-fé. Busca o arbitramento dos honorários advocatícios. Pugna pelo provimento de seu apelo.

Contrarrazões ao recurso de apelação no Evento 32, CONTRAZAP1.

É o relatório.

VOTO

Preenchidos os requisitos de admissibilidade, conheço do apelo.

O caso trata da análise da alegação de vício de vontade na contratação de cartão de crédito com reserva de margem consignável.

O contrato em debate consta do Evento 8, CONTR6.

Contra o julgamento de improcedência, apela o autor.

Pois bem.

Dispõe o art. 138 do Código Civil:

São anuláveis os negócios jurídicos, quando as declarações de vontade emanarem de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio.

Teoricamente, existe diferença entre erro e ignorância. O erro é uma falsa representação positiva da realidade, ao passo que a ignorância é um estado de espírito negativo, traduzindo desconhecimento. Na prática não é simples traçar, contudo, uma diferenciação, de modo que se costuma tratá-los da mesma forma.

O erro pode descaracterizar o negócio jurídico, pois é vício da vontade, causa de anulação. Na doutrina mais clássica costuma-se dizer que o erro, para anular o negócio jurídico (vício da vontade), deve ser substancial e escusável, ou seja, perdoável. Deve o erro atacar a substância do negócio para ser anulável. Deve, ainda, ser perdoável, pois a lei não existe para proteger os desatentos. Segundo a doutrina clássica, o erro é anulável quando ataca a substância do ato e é perdoável ao homem médio. Trata-se, contudo, de entendimento demasiadamente subjetivo, razão pela qual a doutrina moderna, com base no princípio da confiança, que protege a boa-fé das pessoas, e, considerando a dificuldade na análise da escusabilidade do erro, tem dispensado esse segundo requisito.

Para justificar a anulação do negócio deve haver, ainda, um efetivo prejuízo da parte. Nesse viés, possível identificar basicamente três espécies de erro: a) erro sobre o negócio; b) erro sobre o objeto; c) erro sobre a pessoa. O exemplo mais comum é o erro sobre o objeto previsto no artigo 138 e inciso I do artigo 139 do CC/02.

No caso, não há demonstração sequer de que o demandante recebeu o cartão de crédito da instituição financeira, corroborando para este fato a ausência de utilização dos valores disponibilizados em conta para qualquer tipo de compra, ressalvados os descontos feitos pela ré para saldar a dívida da parte demandante.

Assim, resta evidente o vício de vontade, o que justifica a conversão do cartão de crédito com margem consignável em empréstimo consignado que, na época da contratação, era de 29,92% ao ano. Assim limito os juros remuneratórios contratuais de 50,93% (Evento 8, CONTR6) à média constante do BACEN na modalidade supracitada.

É dever dos fornecedores e prestadores de serviços o agir com lealdade e confiança na formação dos contratos, protegendo a expectativa de ambas as partes. Em outras palavras, a boa-fé objetiva - premissa basilar que deve ser observada em toda relação contratual - constitui um padrão ético de comportamento que deve ser seguido por ambos os contratantes em todas as fases da relação contratual.

Em que pesem as formalidades na formação da relação negocial tenham sido observadas, é preciso considerar que o contrato fornecido ao autor se mostra excessivamente oneroso com flagrante desequilíbrio entre as partes, caracterizando prática abusiva e vedada pelo ordenamento jurídico (art. 39, inc. V, do Código de Defesa do Consumidor).

O Código do Consumidor dispõe ainda sobre a nulidade de cláusulas contratuais, nos seguintes termos:

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

[...]

IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;

[...]

Assim dispõe o Código Civil acerca das declarações de vontade:

Art. 110. A manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento.

Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.

Por outro lado, a nulidade de uma cláusula não resulta em inexistência da relação jurídica estabelecida entre as partes, na medida em que o autor se beneficiou do valor tomado em empréstimo, cabendo assim tão somente adequar a relação ao fim pretendido, sob pena de enriquecimento sem causa (art. 884 do CCB).

Nesse sentido, precedentes desta Corte:

APELAÇÃO CÍVEL...

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