Acórdão nº 50020016720198210155 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Quinta Câmara Criminal, 24-02-2023

Data de Julgamento24 Fevereiro 2023
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Classe processualApelação
Número do processo50020016720198210155
Tipo de documentoAcórdão
ÓrgãoQuinta Câmara Criminal

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20002613017
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

5ª Câmara Criminal

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Apelação Criminal Nº 5002001-67.2019.8.21.0155/RS

TIPO DE AÇÃO: Estupro de vulnerável CP art. 217-A

RELATOR: Desembargador IVAN LEOMAR BRUXEL

RELATÓRIO

NATANAEL S.C., 52 anos na data do fato (DN 31/05/1966), foi denunciado e condenado por incurso nos artigos 217-A, caput, c/c. 226, inciso II, do Código Penal.

O fato foi assim descrito na denúncia, recebida em 22/07/2019 (abreviaturas ausentes no original):

No dia 19 de agosto de 2018, na Rua (...), Bairro Estação Portão, no município de Portão/RS, o denunciado NATANAEL S.C. praticou, ato libidinoso, diverso de conjunção carnal com a vítima Sara S.F., na época com 11 anos de idade.

Na data dos fatos, o denunciado, que era companheiro da avó paterna da vítima, aproveitando-se do fato de a vítima estar sozinha com o mesmo, praticou ato libidinoso diverso de conjunção carnal com a vítima, beijando seu braço e pedindo para chupar seus seios.

O denunciado tinha autoridade sobre a vítima, já que o mesmo era companheiro de sua avó paterna.

A DEFESA apelou, pretendendo absolvição, ante a atipicidade da conduta e insuficiência probatória. Sustenta que o fato de o réu ter “beijado o braço” da vítima não representa o preâmbulo da perpetração do ato delituoso imputado. Subsidiariamente, requer o reconhecimento da forma tentada do delito, o afastamento da agravante do artigo 226, inciso II, do Código Penal, a redução da pena-base no mínimo legal e o abrandamento do regime inicial para o semiaberto.

Oferecida contrariedade.

Parecer pelo provimento.

É o relatório.

VOTO

Esta a fundamentação da sentença (abreviaturas ausentes no original, contrariando as recomendações do Of. Circ. 001/2016-CGJ, art. 25, XVIII da Cons. Normativa Judicial, e Resolução 01/2017-OE/TJRS):

(...)

Trata-se de ação penal movida pelo Ministério Público contra o acusado NATANAEL S.C., na qual imputa a prática do delito previsto no art. 217-A caput c/c art. 226, inciso II, ambos do Código Penal.

Consta na denúncia que o acusado teria praticado ato libidinoso diverso de conjunção carnal contra a vítima S.S.F., que na época contava com onze anos de idade. Ademais, na ocasião, o acusado ainda seria companheiro da avó paterna da criança, o que possibilitou que se aproveitasse da possibilidade de ficar sozinho com a menor na residência daquela para beijar seu braço e pedir para chupar seus seios.

A materialidade restou consubstanciada pelo laudo psicológico (2.2, fls. 31/36), o qual deu conta do abuso sofrido pela menor e das consequências deste em sua saúde mental, bem como pelas demais provas carreadas nos autos no decorrer da instrução processual.

Quanto à autoria, passo ao exame da prova oral colhida em juízo.

S.S.F., vítima, relatou que seu pai a deixou na casa da avó paterna, onde também se encontrava o acusado, companheiro daquela. Mencionou que no dia dos fatos o acusado não permaneceu de forma ininterrupta no local, saindo e retornando ao final da tarde com vários “pintinhos”, visto que sua avó criava galinhas nos fundos da casa. Em dado momento o acusado "sumiu" com os animais, então resolveu procurá-los, os quais foram encontrados nos fundos da residência. Nesta oportunidade, passaram a conversar, tendo o acusado dito que tinha um segredo para contar, mas a vítima deveria também contar um segredo a ele, para que ficassem “quites”. Nesse momento, após ter contado seu “segredo”, o acusado passou a lhe dizer que era muito bonita e começou a beijar seu braço, pedindo para “passar a mão” nela e também para “chupar os seus peitos”. Referiu que ficou assustada, mencionando que sua irmã mais nova entrou no local naquele momento e, assim, pegou sua irmã pela mão e deixou o local, voltando para perto de sua avó e, após, o acusado passou a cercá-la, para certificar-se de que não contaria nada. Disse que à noite, já na residência paterna, contou o ocorrido para o seu genitor e, posteriormente, à sua mãe. Por fim, relatou que o acusado tinha o hábito de bater na sua avó desde quando o pai da vítima era criança (conforme seu genitor contou), esclarecendo que morava com aquela há muitos anos, saindo da residência apenas recentemente.

Andressa S., genitora da ofendida, ouvida na qualidade de informante, relatou - com base nas informações prestadas pela vítima - que soube dos fatos aproximadamente três meses após o ocorrido e que o pai da criança já estava ciente e nada tinha feito. Por fim, esclareceu que na época dos fatos a menor fez acompanhamento psicológico e psiquiátrico.

No interrogatório do acusado Natanael S.C., foi alertado sobre o direito de permanecer em silêncio. Optando por se manifestar, disse que a acusação é falsa e que foi inventada para que o acusado fosse tirado da casa da avó paterna da vítima. Sobre o relacionamento com esta, disse que conviveram maritalmente por aproximadamente 31 anos e se separaram apenas em 2018, após a situação narrada neste processo. Sobre a data dos fatos, respondeu que estava na residência da avó da criança fazendo um churrasco - como de costume quando a família se reunia - e em nenhum momento teria ficado sozinho na companhia da vítima, acreditando que a mãe desta tentou lhe prejudicar ao fazer a registrar a ocorrência. Questionado, confirmou que criavam pintinhos nos fundos de casa, mas nunca foi sozinho com crianças ver os animais.

Dessa forma, a prova mostra-se amplamente incriminatória, apta a gerar decreto condenatório, lastreada que está na palavra firme e coerente da vítima que, de forma segura, em ambas as fases (inquérito, 2.2, fl. 17), narrou com detalhes a atuação delitiva. O acusado, se aproveitando da ausência de adultos na residência de sua avó paterna, quando a criança lhe procurou para saber dos animais que aquele havia trazido para casa, buscou ganhar a confiança da criança, mediante troca de segredos, para posteriormente iniciar a ação criminosa, consistente em beijar parte do seu corpo - braço - vindo a pedir para passar a mão em outros locais do corpo e também para colocar os lábios sobre os seios da vítima.

De início, impositivo ressaltar não ser novidade alguma afirmar que o julgamento de casos de estupro está entre os maiores desafios dos Juízes Criminais. A própria natureza do crime, de violação da liberdade sexual, estabelece que a regra da sua prática seja na clandestinidade, não só como meio de submissão da vítima ao sentimento de impotência, mas também a fim de dificultar, sobremaneira, a persecução criminal. E este é o caso dos autos, em que o comportamento criminoso do acusado se deu às escondidas, longe da visão de terceiros, justamente para evitar possível persecução penal.

A decisão, com raras exceções, fica dividida entre a versão apresentada pela vítima, que precisa reviver memórias dolorosas para relatar fatos que a expõem perante a comunidade e o escrutínio dela advindo (circunstância que, entre outras, faz com que especialistas estimem que somente entre 10 e 15% dos casos de estupro são denunciados), e a negativa apresentada pelos supostos agressores.

Como é conhecido, um grande número dos casos de estupro ocorrem na própria família ou de pessoas conhecidas e próximas. Na verdade, trata-se de maioria: segundo o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), 70% dos estupros ocorrem nessas circunstâncias2. Nesses casos, também há intensa pressão psicológica na própria família da vítima.

É por isso que a jurisprudência vem reiteradamente ressaltando o entendimento de que em crimes sexuais a palavra da vítima merece especial valoração, e pode, mediante o atendimento de alguns requisitos, conduzir à condenação, desde que ausentes elementos probatórios que lhe retirem a verossimilhança. Nesse sentido:

.../...

Por isso, o depoimento da vítima, desde que harmônico com o conjunto probatório e seguro, é prova que pode sim conduzir à condenação. E no caso sob análise, não vislumbro qualquer elemento de prova que lance dúvida sobre a palavra da vítima que foi clara, direta e corroborada pelos relatos de sua genitora. Do depoimento, percebe-se inclusive o medo que a menor sentia do acusado, que antes de ter sua prisão preventiva decretada, ficava observando a criança brincando na rua, o que lhe causava temor de que os atos se repetissem ou acontecessem de maneira ainda mais intensa.

Ao que demonstram as provas, o relato da vítima é corroborado pelo laudo psicológico (2.2, fls. 31/36), no qual constou que a periciada relatou de forma clara e compatível com a idade episódio de toques nas pernas e beijos no braço cometidos pelo acusado. Em conclusão, referiu que, através da qualidade do relato e dos sintomas verificados (depressão, sentimento de insegurança e sofrimento psíquico associado aos fatos), a situação é compatível com hipótese de situação abusiva.

Destaco que o relato vitimário quanto ao fato em si é coerente e harmonioso, mantendo a ofendida a mesma versão desde o seu depoimento na polícia (inquérito, 2.2, fl. 17) e, também aquele apresentado à psicóloga (2.2, fls. 31/36). Nesse panorama, a alegação da defesa quanto à existência de incerteza sobre a ocorrência do fato e sua autoria na pessoa do acusado não se sustenta, quando o fato em si foi confirmado pela vítima em todas as oportunidades em que prestou seu depoimento.

Por outro lado, a alegação de que existia rivalidade entre o acusado e o pai da vítima, que supostamente queria que aquele fosse embora da casa de sua mãe - avó paterna da criança - nenhuma influência exerce sobre a veracidade do que foi narrado pela vítima quanto à prática do delito e, mais do que isso, inexiste qualquer respaldo probatório referente à alegação.

Ademais, descabe falar que as condutas relatadas pela vítima configuram apenas atos preparatórios - por ausência de início da execução...

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