Acórdão nº 50035337320198210059 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Oitava Câmara Cível, 09-02-2023

Data de Julgamento09 Fevereiro 2023
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Classe processualApelação
Número do processo50035337320198210059
Tipo de documentoAcórdão
ÓrgãoOitava Câmara Cível

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20003215999
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

8ª Câmara Cível

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Apelação Cível Nº 5003533-73.2019.8.21.0059/RS

TIPO DE AÇÃO: Abandono Material

RELATOR: Juiz de Direito MAURO CAUM GONCALVES

RELATÓRIO

Trata-se de apelação cível interposta por R. M. S. K. em face da sentença que, nos autos da ação de indenização por danos morais decorrentes de abandono afetivo e devolução após adoção ajuizada pelo Ministério Público em favor de Y. K. S., C. K. S. e L. K. S. também em desfavor de A. B. S., julgou procedente o pedido, nos seguintes termos do dispositivo:

III - DISPOSITIVO

Ante todo o exposto, JULGO PROCEDENTE a presente ação de indenização por danos morais decorrentes de abandono afetivo e devolução após adoção, com relação à requerida REJANE MARGARETE SCHAEFER KALSING, com base no art. 487, inciso I, do Código de Processo Civil, e HOMOLOGO O RECONHECIMENTO DA PROCEDÊNCIA DO PEDIDO com relação ao réu ANDRÉ BOCCASIUS SIQUEIRA, com base no art. 487, inciso III, alínea "a", do mesmo diploma legal.

CONDENO os réus (1) ao pagamento de indenização no valor de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais) em favor dos filhos Cauã Kalsing Siqueira, Luíza Kalsing Siqueira e Yuri Kalsing Siqueira, como forma de reparação e compensação pelo ato ilícito cometido e (2) à continuidade do pagamento de pensão alimentícia em favor dos infantes até o implemento da maioridade ou colocação em família substituta, consoante decisão proferida no processo n.° 5004415-35.2019.8.21.0059.

Quanto ao requerido André Boccasius Siqueira, que ofereceu imóvel de sua propriedade como dação em pagamento, fica a quitação do débito relativo à indenização condicionada à transferência da propriedade do bem aos filhos, o que ora DETERMINO.

Expeça-se ofício ao Registro de Imóveis para que proceda na transferência da propriedade do imóvel residencial localizado na Rua Tenente Portela, n.° 11, Bairro Serramar, nesta cidade, podendo a Registradora, para efetivação da medida, contatar o requerido, que ficará responsável pelo pagamento dos emolumentos e demais custas relativas à operação.

Após a realização da transferência da propriedade do bem, deverá a serventia informar a este juízo.

Quanto à requerida Rejane Margarete Schaefer Kalsing, remanesce o débito de R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais), relativos à sua cota parte na obrigação.

Intimem-se as partes da presente decisão.

Cumpra-se com URGÊNCIA.

Sem fixação de honorário ou determinação de custas judiciais, porquanto o feito tramitou na Justiça da Infância e da Juventude.

Diligências.

Em suas razões, defendeu que, por ocasião da separação, as partes estabeleceram que a guarda das crianças permaneceria com o pai porquanto detinha melhores condições psicológicas de cuidar da prole, uma vez que apresenta graves problemas de ordem emocional. Referiu que, sem qualquer aviso prévio, o apelado deixou as crianças aos seus cuidados e desapareceu, não sendo localizado nem mesmo por seus parentes. Afirmou que o recorrido admite a culpa no abandono, inclusive já indicou bem para quitar a condenação. Asseverou que a cadeia de atos que culminou o novo acolhimento institucional dos infantes foi causada apenas pela desídia do pai. Sustentou não poder ser penalizada por uma situação que não deu causa, frisando que, apesar de todas as suas dificuldades emocionais, enquanto as crianças estiveram aos seus cuidados, tiveram todas as necessidades atendidas. Ressalta que teve o quadro psiquiátrico agravado, sendo internada em hospital psiquiátrico, com tendência suicida. Aduziu não haver prova de dano emocional ou psíquico aos filhos em decorrência do suposto abandono materno, até porque já havia histórico de abandono pelos pais biológicos, com repercussão negativa no seu desenvolvimento e bem-estar, afetando o comportamento no período em que estiveram com os pais adotivos. Transcreveu doutrina e colacionou julgados que afastam a condenação por abandono afetivo. Relatou os erros ocorridos no processo de adoção, uma vez que perceptível a sua inaptidão para o exercício do encargo. Mencionou que conheceram as crianças em uma quinta-feira, na cidade do Rio de Janeiro, e na sexta-feira da semana seguinte já retornaram com elas para o Rio Grande do Sul, sendo o período de adaptação de apenas 8 dias. Asseverou ser clara a omissão estatal que culminou com tal acontecimento, sendo que todos os mecanismos de controle existentes no sistema de adoção falharam sucessivamente, porém a responsabilidade recaiu apenas sobre si. Advogou que o quantum indenizatório restou arbitrado em patamar muito superior ao de casos semelhantes já apreciados pelos Tribunais, tratando-se de enriquecimento ilícito. Sustentou, ainda, que não pode ser penalizada no mesmo valor que o ex-marido, que deu causa a toda a situação. Requereu o provimento do apelo para reformar a sentença julgando-se improcedente o pedido. Subsidiariamente, caso não seja esse o entendimento desta Corte, pleiteou a redução do valor arbitrado a título de indenização.

Foram apresentadas as contrarrazões.

Os autos ascenderam a esta Corte, sendo a mim distribuídos.

O Ministério Público ofertou parecer, opinando pelo desprovimento do apelo.

É o relatório.

VOTO

Presentes os pressupostos de admissibilidade (art. 1.009 do Código de Processo Civil), conheço do apelo.

Para dissipar qualquer dúvida acerca da correção do provimento fustigado, considerando a gravidade dos fatos narrados, consigno que a ultrapassei ao ler as razões alçadas ao conhecimento desta Câmara Cível, atentando às provas encadernadas ao feito durante a instrução que foram fielmente analisadas pelo Juízo a quo e pela Promotoria de Justiça que inaugurou a presente demanda a este Poder Judiciário. A matéria litigiosa, efetivamente, se atrela ao dramático descaso dos pais parante os filhos Y. K. S., C. K. S. e L. K. S.

Dito tudo isso e pela propriedade que analisado o contexto fático, rogo vênia para adotar como razões as doutas palavras da Juíza de Direito Conceição Aparecida Canho Sampaio Gabbardo, que alcançou e tocou cada ponto da infeliz narrativa dos menores, entranhando-se no cerne do litígio e fazendo dele o que este subscritor, agora, transcreve com a certeza de que nada mais precisará ser dito, sob pena de ingressar em desnecessária tautologia:

(...) Nos termos do art. 186 do Código Civil, “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”, sendo que, nos termos do art. 927 do mesmo diploma legal, “aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.

Corolário do Direito Civil que os pressupostos para a configuração da responsabilidade civil são (1) o ato ilícito, (2) o dano e (3) o nexo causal.

O ato ilícito, consoante definição dada pela lei, consiste na violação do direito de outrem. Se da violação houver a configuração de dano, seja ele material ou moral, deverá o autor do ato ser responsabilizado, cabendo-lhe a reparação devida ao ofendido.

Necessário, todavia, que, além dos pressupostos mencionados, reste configurada a culpa (imprudência, negligência ou imperícia) pelo ato praticado, a não ser que, como no caso dos autos, a conduta seja, por si só, dada sua dimensão, suficiente para configurar o dano (dano in re ipsa).

Incontestável que o “mero” fato de abandonar um filho ou “devolvê-lo” é, per si, caracterizador de ofensa/dano grave à integridade daquele que foi alvo do abandono.

Os doutrinadores Pablo Stolze Gagliano e Fernanda Carvalho Leão Barreto, no artigo acadêmico intitulado “Responsabilidade Civil pela Desistência na Adoção”2, discorrem acerca da possibilidade/necessidade de responsabilização dos indivíduos que desistem do intento da adoção após iniciado o processo de aproximação com a criança ou o adolescente e daqueles que “devolvem” o filho adotado.

Tal doutrina, dada a sua tecnicidade e amparo jurisprudencial, merece referência, reprodução e aplicação no caso concreto.

Para os autores, para a análise acerca da viabilidade da responsabilização civil pela desistência à adoção, necessário que se observem as “etapas” que envolvem o procedimento.

Assim, não caberia, por exemplo, dever de reparação de dano nos casos em que os pretendentes à adoção desistem do intento (1) durante o estágio de convivência com a criança ou adolescente apta à adoção.

Com efeito, o estágio de convivência, orientado pelo art. 46 do Estatuto da Criança e do Adolescente, constitui uma espécie de “teste” de relacionamento entre o pretendente e o adotando. Nas palavras de ROSSATO, LÉPORE e CUNHA3, “o estágio de convivência tem como função verificar a compatibilidade entre adotante e adotando”.

Na realidade, eventual responsabilização do pretendente desistente, durante o estágio de convivência, configuraria medida desproporcional, haja vista que, dado o vínculo ainda não formalizado – ausência de, sequer, guarda provisória –, o pretendente poderia se ver em situação de desconforto cada vez que fosse aproximado de uma criança ou adolescente.

A tensão seria, por evidente, prejudicial às aproximações e à criação de vínculos, visto que o pretendente ver-se-ia em situação de “pressão” quanto à efetivação da adoção.

Conveniente, nesse sentido, referência ao entendimento do Tribunal de Justiça Gaúcho acerca do tema:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PEDIDO DE ARBITRAMENTO DE INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS. ABUSO DE DIREITO. INOCORRÊNCIA. ESTÁGIO DE CONVIVÊNCIA. DESISTÊNCIA DA ADOÇÃO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA MANTIDA. Considerando que a função do estágio de convivência é, justamente, buscar a adaptabilidade do(s) menor(es) ao(s) adotante(s) e deste(s) à(s) criança(s), quando esta adaptação não ocorre e há desistência da adoção durante este...

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