Acórdão nº 50035655020198210036 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Quinta Câmara Criminal, 24-02-2023

Data de Julgamento24 Fevereiro 2023
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Classe processualRecurso em Sentido Estrito
Número do processo50035655020198210036
Tipo de documentoAcórdão
ÓrgãoQuinta Câmara Criminal

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20003258788
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

5ª Câmara Criminal

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Recurso em Sentido Estrito Nº 5003565-50.2019.8.21.0036/RS

TIPO DE AÇÃO: Apropriação indébita (art. 168, caput)

RELATORA: Desembargadora MARIA DE LOURDES GALVAO BRACCINI DE GONZALEZ

RECORRENTE: SEGREDO DE JUSTIÇA

RECORRIDO: SEGREDO DE JUSTIÇA

RELATÓRIO

Adoto, inicialmente, o relatório do parecer ministerial:

"Trata-se de recurso em sentido estrito interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO (fl.112), contra a decisão proferida pelo Juízo da 1ª Vara Criminal da Comarca de Soledade que rejeitou a denúncia por falta de justa causa, devido à ausência de prova relativa à existência de dolo específico e assenhoramento por parte do acusado ANTHONY NIERDELE, indispensável para o tipo penal da apropriação indébita; mencionando, ainda, a possibilidade de prescrição pela pena projetada (fls. 94/107).

Em razões, a Promotoria de Justiça busca a reforma do decisum a fim de que a denúncia seja recebida, considerando que há indícios de autoria e de materialidade suficientes para o prosseguimento do feito. Frisa que nessa etapa processual não deve ser realizado a análise dos elementos indiciários como se fossem a prova final. Ainda, refere ter havido equívoco da decisão considerando que o prazo prescricional pela pena máxima abstrata ao tipo penal em comento é de 08 anos, sem contar o aumento do §1º (aumento de 1/3), referindo que o prazo estaria vencido somente em dezembro de 2023 (fls. 120/125).

Em contrarrazões, a defesa técnica pugna pelo improvimento do recurso, apontando a nulidade da representação existente (datada de 20/05/2017), por inobservância do prazo decadencial de 06 meses considerando que a data do fato é de 01/12/2015. Ainda aponta que a representação é nula por ter sido realizada por pessoa estranha aos fatos contidos na peça inicial (fls. 130/142).

A decisão foi mantida (fl.145)."

Subiram os autos a esta Corte, sendo distribuídos a esta Relatora.

Neste grau de jurisdição, dada vista ao Ministério Público, veio aos autos parecer no sentido do provimento do recurso (9.1).

É o relatório.

VOTO

1.Trata-se de recurso em sentido estrito interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO (fl.112), contra a decisão proferida pelo Juízo da 1ª Vara Criminal da Comarca de Soledade que rejeitou a denúncia por falta de justa causa, devido à ausência de prova relativa à existência de dolo específico e assenhoramento por parte do acusado ANTHONY NIERDELE, indispensável para o tipo penal da apropriação indébita; mencionando, ainda, a possibilidade de prescrição pela pena projetada (fls. 94/107).

Eis o teor da decisão recorrida:

"Vistos etc.

1,- Cuida-se de ação penal ajuizada pelo representante do Ministério Público em face de ANTHONY NIEDERLE, já qualificada nos autos, isto porque, supostamente, no dia 01 de dezembro de 2015, por volta das 10 horas, na rua Sete de Setembro, n" 898, bairro Centro, no Município de Soledade/RS, apropriou-se de coisa alheia móvel, de que tinha posse em razão de ofício, de propriedade do estabelecimento comerciai denominado “Rocca Bar”. Intimado o assistente de acusação para que apresentação de procuração, restou inerte (Evento 14). A vítima informou não ter interesse habilitar assistente de acusação (Evento 17). O representante do Ministério Público postulou a condenação do acusado, nos termos do art. 168, § 1, ínc. III, do Código Penal. É o relatório.

2,- Com a devida vênia ao representante do Ministério Público, é o caso de rejeição da denúncia por ausência justa causa ou justo título para a instauração do jus persequendi in judicio (art. 395, II e III, do CPP). É pelo seguinte.

3,- O delito de apropriação indébita exige para a sua configuração o dolo específico de assenhoreamento sem o devido título ou causa jurídica, isto é, o agente recebe licitamente a res e no momento (termo) em que é instado a devolver se nega.

4,- Conforme leciona Heleno Fragoso, para a configuração da apropriação indébita, “é de mister que fique averiguado, de modo convincente, o propósito de não restituir ou a consciência de não mais poder restituir”. Ainda, acrescente que a consumação se dá “no instante em que o agente revela a inversão do título da posse, dispondo da coisa ou retendo-a uti dominus. O crime estará consumado no momento e no lugar em que o agente devia restituir a coisa ou destiná-la a certo fim e a converte em seu proveito”.

5,- Descabe fazer-se juízo reprovatório, sobretudo criminal, a partir de elementos unilaterais afirmados em investigação preliminar inquisitória. Há respeitar-se as instituições, os regramentos e as instâncias próprias para efeito de justa e razoável aplicação do Direito, cujo sistema repele a ideia punitivista de universalizar o direito penal em detrimento do seu caráter dogmático fragmentário.

6,- Com efeito. Nas relações previstas no tipo penal em comento, com a finalidade de proveito econômico direto, não se prescinde de prévia ação de prestação de contas para efeito de configuração do elemento subjetivo inerente ao delito do art. 168 do CP “animus rem sibi habendi”., inclusive e sobretudo como na hipótese de relação de preposição ou representação ou sobordinação e, assim, ares ou predicados próprios ou similares às relações de trabalho e cujo conhecimento e quitação plena só compete por mandamento constitucional à Justiça do Trabalho (CF 114 e inciso IX).

7,- Seja como for, a proteção da liberdade é a base do sistema de direito (art. 5º, caput, da Constituição da República). A sua restrição se subordina às cláusulas constitucionais implícitas da razoabilidade e proporcionalidade (art. 8º do CPC). Somente os atentados mais relevantes (injusto típico) é que ingressam no umbral de Direito Penal, bem como não se dispensa, à luz do ingênito strepitus judicii do processo penal (nulla poena sine judicio), da existência de justa causa (art. 393, III, do CPP).

8,- A persecução penal, superada a fase preliminar de investigação, logicamente, pressupõe a comprovação da materialidade delitiva e, ao menos, fundada suspeita de autoria (fumus commissi delicti). Isto, consoante se depreende dos artigos 155 e 156 do CPP, bem como artigo 5º, LVII, e LVI, da CF, deve exsurgir de um conjunto probatório materialmente lícito e objetivamente indiciário. Descabe, como se o regramento fosse informado por estado de direito policialesco ou muito próximo do obscurantismo (primitivismo) civilizatório, e não do estado democrático de direito (art. 1º da CF), juízos incriminatórios fundamentalmente alicerçados em ponto de vista subjetivo ou psicologicamente comprometido ou enviesado de preconceitos condenatórios a partir do famigerado populismo penal.

9,- Populismo penal que é rigorosamente incompatível com a noção de civilização ou modernidade institucional ingênita aos estados democráticos de direito, cujos valores estruturantes e condicionantes de toda a ordem jurídica se fundam na igualdade (material) perante a lei (art. 5º, “caput”, da CF), dignidade, solidariedade, justiça social e segurança jurídica (arts. 1º, III, e da CF).

10,- Daí por que se impõe observar-se, em toda a sua integridade e dimensão sociológica , o princípio da fragmentariedade do direito penal. Cuida-se de inafastável evolução filosófica do Sistema de Direito enquanto instrumento necessário para a consecução do valor de justiça e, de conseguinte, condição de sua legitimidade social.

11,- Afinal: O delito, desde os primórdios da humanidade com a morte de Abel por Caim (Gênesis) ou do magistral romance de Dostoiesvski (Crime e Castigo, 1866), desafia o conhecimento humano e envolve questões sociais complexas e com causas multifatoriais. Daí a sua compreensão, autoria e punição mediante justo e republicano julgamento perpassa por uma abordagem histórica mediante o culto da justiça como elemento indissociável da democracia, civilização e da própria modernidade, inclusive com a “interferência de Deus no nosso curso de educação constitucional” (Rui Barbosa, O Justo e a Justiça Política, 1899).

12,- O juiz, enquanto destinatário da prova, custodia-a, mas não a tutela, não investiga, acusa ou defende, e sim só garante e julga sem pressões ou constrições de todo o gênero. Atua nos estritos limites de um sistema acusatório que assegura o protagonismo da recorribilidade das decisões tanto ao Ministério Público como à advocacia (art. 133 da CF), seja privada, seja pública. Pois o objetivo do direito é a paz, o meio de atingi-lo é a luta ou a luta é o meio de consegui-la (…) O direito não é mero pensamento, mas, sim, força viva. Por isso, a Justiça segura, numa das mãos, a balança, com a qual pesa o direito, e na outra a espada, com a qual o defende. A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada é a fraqueza do direito. Ambas se completam e o verdadeiro estado de direito só existe onde a força, com a qual a justiça empunha a espada, usa a mesma destreza com que maneja a balança” (Rudolf Von Jhering, A luta pelo Direito, SP, RT, 2004, p.15, grifei)

13,- E nesta luta emerge como vetor epistêmico inafastável, consoante lúcido magistério de Aury Lopes Jr, o reconhecimento de que “o processo não pode
mais ser visto como um simples instrumento a serviço do poder punitivo (Direito Penal), senão que desempenha o papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido.
Há que se compreender que o respeito às garantias fundamentais não se confunde com impunidade, e jamais se defendeu isso. O processo penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena. Daí por que somente se admite sua existência quando ao longo desse caminho forem rigorosamente observadas as regras e garantias constitucionalmente asseguradas (as regras do devido processo legal)” (Direito Processual Penal, Saraiva, 16ª...

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