Acórdão nº 50047749120218210001 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Primeiro Grupo de Câmaras Criminais, 08-07-2022

Data de Julgamento08 Julho 2022
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Classe processualEmbargos Infringentes e de Nulidade
Número do processo50047749120218210001
Tipo de documentoAcórdão
ÓrgãoPrimeiro Grupo de Câmaras Criminais

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20002364503
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

1º Grupo Criminal

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Embargos Infringentes e de Nulidade Nº 5004774-91.2021.8.21.0001/RS

TIPO DE AÇÃO: Crimes de Tráfico Ilícito e Uso Indevido de Drogas (Lei 11.343/06)

RELATOR: Desembargador JOSE CONRADO KURTZ DE SOUZA

EMBARGANTE: SEGREDO DE JUSTIÇA

EMBARGADO: SEGREDO DE JUSTIÇA

RELATÓRIO

Trata-se de embargos infringentes opostos por LUIZ ADRIANO RHODES BARBOSA e TATIANE PINHEIRO, por intermédio de defensor constituído, contra o acórdão da Primeira Câmara Criminal (evento 16, ACOR2) que, por maioria (Des. Manuel José Martinez Lucas e Dra. Andreia Nebenzahl De Oliveira), negou provimento aos recursos de apelação, e de ofício, absolveu os apelantes da imputação contida no Art. 12 do Estatuto do Desarmamento, restando as penas de Tatiane redimensionadas para 11 (onze) anos de reclusão e 90 (noventa) dias-multa, ao passo que as de Luiz Adriano para 14 (quatorze) anos e 06 (seis) meses de reclusão e 110 (cento e dez) dias-multa, mantidos os demais ditames sentenciais; vencido o Des. Jayme Weingartner Neto, cujo voto deu provimento aos recursos para reconhecer a ilicitude da prova por violação de domicílio e absolver os embargantes, com base no Art. 386, II, do Código de Processo Penal (evento 16, RELVOTO1 e evento 15, EXTRATOATA1).

Em suas razões (evento 24, EMBINFRI1), a defesa sustenta que assiste razão ao voto da lavra do Des. Jayme Weingartner Neto, requerendo o acolhimento dos embargos infringentes para reconhecer a ilicitude da prova por violação de domicílio e absolver os réus da prática do crime de tráfico de drogas, prevalecendo o voto divergente.

Recebidos os embargos infringentes (evento 26, DESPADEC1).

A douta Procuradoria de Justiça exarou parecer pela rejeição dos embargos infringentes (evento 36, PARECER1).

Vieram-me conclusos os autos.

Registre-se que foi cumprido o comando estabelecido pelos artigos 613, inciso I, do Código de Processo Penal e 170 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, tendo em vista a adoção do sistema informatizado.

É o relatório.

VOTO

A controvérsia cinge-se ao reconhecimento da nulidade da prova obtida através da violação de domicílio.

O voto minoritário, de lavra do Des. Jayme Weingartner Neto ficou assim lavrado:

"Com a vênia do eminente Relator, divirjo para reconhecer a ilicitude da prova por violação de domicílio.

No que tange à apreensão feita na residência dos acusados, é de ser declarada ilícita a prova da materialidade, pois não demonstrada situação de flagrante a legitimar o ingresso, bem como a voluntariedade dos alegados consentimentos para o ingresso.

Destaco que é preciso haver percepção “ex ante” da situação de flagrância. Neste sentido, na orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal, no RE nº 603616, apreciando o tema 280 da sistemática da repercussão geral, a Corte Suprema consignou expressamente que “não será a constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso, que justificará a medida. Os agentes estatais devem demonstrar que havia elementos mínimos a caracterizar fundadas razões (justa causa) para a medida”. Assentado que a melhor interpretação é sempre a sistemática, parece inviável, na linha da fundamentação do STF, aventar que a simples natureza de crime permanente (de algumas modalidades de tráfico) autoriza, sem qualquer outra consideração, o ingresso dos policiais no domicílio.

Evidente que, na identificação e distinção das diversas constelações fáticas hábeis a sustentar a percepção externa da situação de flagrância (fundadas razões), há amplo espaço para a densificação doutrinária e jurisprudencial.

Cito julgado da Sexta Turma, relatoria do Min. Rogerio Schietti Cruz, que discorre sobre diretrizes para validar o alegado consentimento do morador para ingresso na residência. O aresto relata o caminho trilhado por outros países e refere protocolos a serem adotados para que não restem dúvidas de que o consentimento foi "voluntário e livre de qualquer tipo de constrangimento ou coação", o que não deve ser visto como cerceamento da "ação das forças de segurança pública no combate ao tráfico de entorpecentes, muito menos em transformar o domicílio em salvaguarda de criminosos ou em espaço de criminalidade" (lembro, aqui, da correta preocupação do Des. Manuel, para que não se crie espécie de “ferrolho”), mas sim como providência que "resultará na diminuição da criminalidade em geral", bem como na "intimidação a abusos, de um lado, e falsas acusações contra policiais, por outro" (HC 598051 / SP, Sexta Turma, Min. Rogerio Schietti Cruz, j. em 02/03/2021).

Sobre o julgado antes referido, sobreveio decisão monocrática do Ministro Alexandre de Moraes, de 02/12/2021, no RE 1342077/SP interposto pelo Ministério Público do Estado de São Paulo em face de acórdão proferido pela 6ª Turma do STJ, que concedeu a ordem de Habeas Corpus para absolver o paciente em virtude de anulação das provas decorrentes do ingresso desautorizado em seu domicílio.

Na monocrática, o Ministro deu parcial provimento ao recurso para anular o acórdão do STJ “tão somente na parte em que entendeu pela necessidade de documentação e registro audiovisual das diligências policiais, determinando a implementação de medidas aos órgãos de segurança pública - grifei.

Nesta leitura, que ora alcanço (a decisão é recentíssima), considerou-se inadequado o STJ, acrescentando requisitos inexistentes no inciso XI do artigo 5º da Constituição Federal, demandar política pública na área da segurança, com o que teria excedido a competência jurisdicional, bem como quando deu alcance coletivo ao Habeas Corpus, ausente “indicação individualizada e pormenorizada do específico constrangimento ilegal a que cada um dos potenciais pacientes (cujos nomes e qualificação sequer podem ser discriminados) estariam submetidos”. Há vários desdobramentos, no que tange à cultura de precedentes, que ainda precisam ser desimplicados, o que ocorrerá paulatinamente.

Não obstante, a absolvição em virtude da anulação das provas decorrentes do ingresso desautorizado no domicílio foi mantida, de modo que, no que tange à análise do substrato fático do caso em exame, independente da inexistência de documentação/registro audiovisual, nenhuma contrariedade aos parâmetros definidos no Tema 280 foi observada, ou seja, ausentes elementos ex ante de situação de flagrante, não sendo possível concluir pela efetiva anuência do morador.

A jurisprudência, assim, vem orientando o sistema de persecução penal, fornecendo uma série de constelações fáticas que se amoldam a situações típicas, tanto de flagrante amparado em fundadas razões quanto de ingerências arbitrárias.

Neste contexto, qual o substrato fático do caso em apreço?

Segundo os policiais, estavam em patrulhamento de rotina em via pública, quando foram abordados por uma mulher que informou que um vizinho de condomínio chamado Luiz Adriano guardava drogas e armas em casa, o que fazia na presença de filhos menores. Ele e familiares, incluindo os menores, eram comumente vistos transportando sacolas e maletas. Disse que ele utilizava tornozeleira eletrônica. Chegando ao endereço indicado, o porteiro e o síndico autorizaram a guarnição a ingressar no condomínio. O réu, questionado, franqueou o acesso. Apreendido o material ilícito, o réu informou o endereço onde armazenava mais drogas. No local, um apartamento em outro condomínio, a ré Tatiane admitiu que guardava diversos objetos para Luiz Adriano. Então foram apreendidas armas,munição, drogas e dinheiro.

Não havia, portanto, elementos "ex ante" de situação de flagrância dentro da residência a permitir o ingresso forçado. Receberam uma denúncia de uma moradora, a qual revelava suspeita a exigir investigação, ou, até mesmo, levando em conta a notícia de envolvimento das crianças, fundadas razões para representação por buscas.

Ainda, não desconsidero os depoimentos dos policiais no sentido de que drogas foram encontradas nos imóveis. O que fragiliza as narrativas dos policiais, a meu sentir, é a afirmativa de que os réus teriam franqueado o acesso.

A prova judicial restringe-se à alegação dos policiais de consentimento para ingresso na residência, a qual, no entanto, resulta nebulosa não ficando demonstrado que o consentimento houve e que foi externado livre e voluntariamente.

A crer nas declarações dos policiais, o réu surpreendido em seu apartamento, apenas questionado, de modo espontâneo, permitiu que os policiais ingressassem na residência mesmo sem mandado para tanto; mais que isso, sabia da existência de drogas e facilitou as buscas, as quais resultaram exitosas. Trata-se de inusitada figura criminológica: o traficante altruísta, que se imola em prol da persecução penal. E mais ainda, forneceu, espontaneamente, o endereço onde havia mais drogas e armas. Se por um lado, a praxe é afirmar a legitimidade e eficácia das palavras dos policiais, por outro, não se pode negar que, do panorama narrado, séria dúvida resulta acerca da permissão para ingresso na casa.

Neste substrato fático, tenho como pontualmente menos verossímil narrativa dos agentes policiais de que obtiveram autorização para a busca domiciliar, tanto por colidir com as regras da experiência, mormente instalada situação aguda de conflito, quanto por ser controverso se a suposta vontade eventualmente externada não estaria viciada (réu surpreendido pelos agentes, indagado sob intensa pressão dentro da sua moradia). Esclareço que não se trata de colocar sob suspeição, a priori, os testemunhos policiais em geral. Antes, tem-se nova ponderação hermenêutica, à luz do id quod plerumque fit, que, no substrato fático dos autos, leva à conclusão que a verossimilhança não socorre os agentes policiais, pelo que a...

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