Acórdão nº 50051622220218214001 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Turma Recursal Criminal, 27-06-2022

Data de Julgamento27 Junho 2022
Tribunal de OrigemTurmas Recursais
Classe processualApelação
Número do processo50051622220218214001
Tipo de documentoAcórdão
ÓrgãoTurma Recursal Criminal

PODER JUDICIÁRIO

Documento:10018958323
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

Turma Recursal Criminal

APELAÇÃO CRIMINAL Nº 5005162-22.2021.8.21.4001/RS

TIPO DE AÇÃO: Posse de Drogas para Consumo Pessoal (Lei 11.343/06, art. 28)

RELATOR: Juiz de Direito LUIZ ANTONIO ALVES CAPRA

RECORRENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (MINISTÉRIO PÚBLICO)

APELADO: JANDERSON SOUZA GARAY (AUTOR FATO)

RELATÓRIO

Recorre o Ministério Público da decisão que determinou o arquivamento do termo circunstanciado, ante a atipicidade da conduta.

Sustenta, em síntese, a tipicidade, a lesividade e a constitucionalidade da conduta.

A defesa, em contrarrazões, pugna pela manutenção da decisão guerreada.

Nesta instância recursal, opina o Ministério Público, preliminarmente, pela declaração da nulidade da decisão; no mérito, pelo provimento do recurso.

VOTO

Conheço do recurso, portanto, porque cabível e tempestivo.

Preliminarmente, não há qualquer dúvida acerca da impossibilidade de determinar-se o arquivamento, de ofício, do termo circunstanciaodoou do inquérito policial.

No microssistema do JECRIM, onde há a mitigação do princípio da indisponibilidade da ação penal, através dos institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo, deve-se atentar aos critérios orientadores estabelecidos pelo art. 62 da Lei n. 9.099/95:

Art. 62. O processo perante o Juizado Especial orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade.

Ora, quando atípica a conduta, ao dar curso ao procedimento estabelecido pela Lei n. 9.099/95, com a realização da audiência preliminar e demais atos, estará o julgador não apenas a praticar coação ilegal, mas, igualmente, a sobrecarregar o sistema judiciário com a realização de audiências sabidamente desnecessárias.

Em hipóteses tais, por manifesta ausência de justa causa para a ação penal, afigurar-se-ia cabível a concessão, de ofício, de habeas corpus, descabendo, embora tecnicamente não se trate de arquivamento, a desconstituição de decisão como tal.

Nesse sentido, não há de ser acolhida a preliminar de declaração da nulidade da decisão.

No mérito, porém, com razão o recorrente.

  1. RESSALVA DE POSIÇÃO:

O entendimento majoritário desta Turma Recursal é no sentido da tipicidade do art. 28 da Lei n. 11.343/06.

Ressalvo, no ponto a minha posição minoritária.

O delito tipificado no art. 28 da Lei nº 11.343/06, como é do conhecimento dos eminentes colegas, está sendo objeto de exame perante o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário nº 635.659 centrando-se a discussão, como apontado pelo eminente Relator, Ministro Gilmar Mendes, em eventual violação às garantias constitucionais da intimidade e da vida privada, e que pode ser resumida pelo seguinte parágrafo:

“No caso agora em análise, o art. 28 é impugnado sob o enfoque de sua incompatibilidade com as garantias constitucionais da intimidade e da vida privada. Não se funda o recurso na natureza em si das medidas previstas no referido artigo, mas, essencialmente, na vedação constitucional à criminalização de condutas que diriam respeito, tão somente, à esfera pessoal do agente incriminado.”

Consigno que, embora não haja embaraço ao enfrentamento da questão sob tal prisma, não é esse o enfoque que proponho, não obstante a possibilidade de que se verifiquem pontos de contato.

1.1 DA NECESSIDADE DE UMA INTERETAÇÃO CONSTITUCIONAL:

Na lição de Juarez Freitas[1] Interpretar uma norma é interpretar o sistema inteiro; qualquer exegese comete, direta ou obliquamente, uma aplicação da totalidade do Direito”.

Assim, nenhuma interpretação pode se verificar de forma descolada dos objetivos fundamentais, princípios e fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1º, da CF), que não se constituem em normas desprovidas de vinculatividade.

Válido, a propósito, o que defende Juarez Freitas[2], no sentido de que:

Em outras palavras, não se deve aceitar que os objetivos fundamentais, os princípios e os fundamentos do Estado Democrático de Direito sejam confundidos com simples disposições isoladas e destituídas de qualquer vinculatividade para a hermenêutica jurídica. Decididamente, então, é de pugnar, nos limites do sistema e sem jamais atentar contra ele, pela completa superação da teoria e, principalmente da práxis, que vê as normas programáticas como sem significado jurídico, esposando-se uma visão material do dever normativo-concretizador, não apenas dos órgãos legiferantes, mas também dos órgãos aplicadores do Direito, que jamais deveriam abdicar desta função ou deste telos de dar vida ao Estado Democrático.

Não apenas isso, a interpretação constitucional, como aponta com propriedade Salo de Carvalho[3], deve atender a um processo de constitucionalização das leis:

É que a consolidação do modelo impositivista dogmático no direito (penal) induz à ignorância da força normativa da Constituição e à resignação com a aplicação mecânica das leis inferiores. Como consequência, obtém-se a manutenção da racionalidade legalista que provoca a dessubstancialização do direito, isto é, ao centrar sua análise na lei ordinária (fetichismo legalista), os aplicadores do direito mantêm eficazes normas isentas de conteúdo constitucional (inválidas materialmente), Desta forma, é comum perceber a ‘penalização’ da Constituição pela recusa do jurista ao processo de constitucionalização das leis.

A patologia que envolve o saber jurídico-penal é demonstrada com precisão por Luís Roberto Barroso: ‘(...) as normas legais têm de ser reinterpretadas em face da nova Constituição, não se lhes aplicando automática e acriticamente a jurisprudência forjada no regime anterior. Deve-se rejeitar uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo.’

Dessa forma, é possível afirmar a necessidade de novo processo secularizador no direito penal, não mais voltado à separação entre direito e moral e/ou direito e natureza (processo ainda inconcluso), mas, fundamentalmente, no sentido de conferir primazia aos valores e princípios, objetivando efetivar o conteúdo constitucional das normas.”

Não é, portanto, a Constituição que deve ser lida a partir da legislação infraconstitucional, mas sim esta a partir daquela, pois, do contrário, estaríamos consagrando exacerbado positivismo, tornando válida a advertência trazida por Juarez Freitas[4]:

“A propósito, RADBRUCH foi convincente ao demonstrar que o positivismo, com sua fórmula “lei é lei”, deixou a jurisprudência e a judicatura alemãs inermes contra todas as crueldades nazistas, plasmadas pelos governantes da hora, em consonância com a forma legal.

Em outras palavras, é inadequado sustentar que se possa, numa correta postura hermenêutica, pensa r a base do Direito Positivo, por meios puramente formais, sem, de algum modo, ter de recorrer a critérios axiológicos. Por iguais e relevantes motivos, resulta plenamente inaceitável o princípio jurídico positivista de que a ordem jurídica forma uma unidade fechada, em função de cujo princípio, à feição de autômato, estaria ao juiz vedado o poder criador jurisprudencial, num pressuposto de que o poder judicial, candidamente teria função apenas reprodutiva, como se tal fosse possível, quando se sabe que a lógica jurídica é, queiramos ou não, necessariamente dialética. Não fosse assim, em equivocada perspectiva, o juiz evadir-se-ia de decisões éticas e como que ‘isentar-se-ia’ da culpa pela aplicação antijurídica da lei sabidamente iníqua.”

1.2 DO BEM JURÍDICO TUTELADO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LESIVIDADE:

O objeto jurídico da tutela penal em relação ao art. 28 da Lei nº 11.343/06 é a saúde pública.

Assim o definem em sede doutrinária Nucci[5], Marcão[6] e Delmanto[7].

Tal entendimento, aliás, encontra curso perante esta Turma Recursal:

“APELAÇÃO CRIMINAL. POSSE DE DROGAS. ART. 28 DA LEI 11.343/2006. INCONSTITUCIONALIDADE E OFENSA AO PRINCÍPIO DA ALTERIDADE. A norma penal em causa tutela interesse coletivo que se sobrepõe ao direito individual de liberdade, assegurado constitucionalmente. A posse de substância entorpecente representa perigo para a saúde pública, o que autoriza o apenamento da conduta do agente sem que resultem feridos os seus direitos constitucionais. (...) (Recurso Crime Nº 71005389556, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Luis Gustavo Zanella Piccinin, Julgado em 28/09/2015)”

“APELAÇÃO CRIMINAL. PORTE DE SUBSTÂNCIA ENTOECENTE. ART. 28 DA LEI Nº. 11.343/2006. TIPICIDADE. INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. SENTENÇA CONDENATÓRIA REFORMADA. (...) Impossível desconsiderar, na hipótese, que o seu cometimento configura dano à saúde pública, bem jurídico tutelado, não se abrindo espaço, portanto, para a aplicação do Princípio da Insignificância. Alegação de inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato que não se alberga. Estes, é cediço, não tutelam a vida, a integridade física ou o patrimônio, mas tão somente a incolumidade pública, o que decorre de opção do legislador. Inexistência de inconstitucionalidade em relação ao art. 28 da Lei nº 11.343/06, na medida em que o ato de portar drogas traduz risco à incolumidade pública, ultrapassando, portanto a esfera individual. (..) (Recurso Crime Nº 71005420831, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Luiz Antônio Alves Capra, Julgado em 28/09/2015)”

“APELAÇÃO CRIME. POSSE DE DROGAS. ART. 28 DA LEI 11.343/06. CONDUTA TÍPICA. INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. SENTENÇA CONDENATÓRIA REFORMADA 1. (...)Há justa causa para o manejo da ação penal, desacolhendo-se o...

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