Acórdão nº 50054797420228210027 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Turma Recursal Criminal, 27-06-2022

Data de Julgamento27 Junho 2022
Tribunal de OrigemTurmas Recursais
Classe processualApelação
Número do processo50054797420228210027
Tipo de documentoAcórdão
ÓrgãoTurma Recursal Criminal

PODER JUDICIÁRIO

Documento:10019421550
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

Turma Recursal Criminal

APELAÇÃO CRIMINAL Nº 5005479-74.2022.8.21.0027/RS

TIPO DE AÇÃO: Jogo de azar

RELATOR: Juiz de Direito LUIS GUSTAVO ZANELLA PICCININ

RECORRENTE: SEGREDO DE JUSTIÇA

APELADO: SEGREDO DE JUSTIÇA

RELATÓRIO

Trata-se de recurso de apelação interposto pelo Ministério Público contra decisão (evento n. 9) que rejeitou a denúncia oferecida em face de DIEGO SCHIRMANN SORTICA pela prática da contravenção penal prevista no art. 50 do Decreto-Lei 3.688/41, com fundamento no art. 395, II, do CPP, reconhecendo a atipicidade penal da conduta.

Aponta o recorrente a existência de elementos indiciários suficientes para o prosseguimento do feito, haja vista que a criminalização dos jogos de azar está em consonância com a legislação em vigor que busca enfrentar com maior êxito a criminalidade organizada, que envolve, como exemplos, a lavagem de dinheiro, a corrupção e a sonegação fiscal. Afirma que, a despeito da mudança de entendimento da Turma Recursal Criminal do RS, a jurisprudência, inclusive do e. Supremo Tribunal Federal, é no sentido da criminalização da conduta contravencional, ante a existência de ofensividade social e violação a bens jurídicos que justificam a tutela penal em condutas da espécie. Pede a reforma da decisão recorrida e a determinação de prosseguimento da ação penal (evento n. 15).

Em contrarrazões, a defesa postula a manutenção da decisão recorrida (evento n. 20).

O Ministério Público, nesta instância recursal, opinou pelo provimento do recurso (evento n. 24).

VOTO

Conheço do recurso, uma vez que tempestivo e não há fato impeditivo – renúncia ou preclusão – ou extintivo – desistência ou deserção –, sendo formalmente regular. Presentes, também, a legitimidade e o interesse recursal, requisitos subjetivos de admissibilidade.

Reza a exordial que o denunciado, no dia 19/08/2020, no estabelecimento comercial sob sua responsabilidade, na cidade de Santa Maria/RS, explorou jogos de azar mediante a utilização de diversas máquinas caça-níqueis, das quais foram apreendidos 14 monitores, 25 placas-mãe, 12 ceduleiras e 43 gabinetes de madeira.

Embora a prova da materialidade esteja estampada no auto de apreensão da (evento n. 1 - fl. 06) e haja indícios de envolvimento do denunciado no fato incriminado, o exame da questão atinente aos jogos de azar permite estabelecer que a exploração privada da atividade, em quaisquer das suas modalidades, assim como a participação no jogo na condição de apostador, carece de ilegalidade penal.

Data da década de 40, no século passado, a criminalização do jogo de azar no Brasil, com previsão nos artigos 50 e seguintes da Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei 3.688/1941), além das contravenções tipificadas no Decreto-Lei 6.259/44, que regulamenta a modalidade de concessão de exploração de loterias.

E ainda hoje, mesmo com a evolução tecnológica, todos os denominados “jogos de azar”, são enquadrados pelo Estado-juiz, na tarefa de punir criminalmente, nos dispositivos antes citados, deflagrando-se o modelo de persecução penal vigente, no encalce de ditas atividades, com instauração de processos criminais que, em tese, inibiriam a atividade contravencional.

Como a história ensina, o jogo de azar no Brasil foi liberado para exploração privada, em cassinos, no chamado primeiro período de Vargas, em que o então presidente Getúlio Vargas, imbuído da idéia de geração de empregos e de prosperidade, legalizou a prática, que vigorou do início da década de 1930 até o ano de 1946, quando restou proibida e criminalizada a prática do jogo, pelos motivos que constam no Decreto-Lei 9.215/46. Depois a Medida Provisória 168/2004, com o mesmo objetivo, restou rejeitada pelo Congresso Nacional. Rápida consulta à Enciclopédia Eletrônica Wikipédia dá conta de que, na época, havia 70 cassinos em pleno funcionamento do País, gerando 40.000 empregos diretos e indiretos por conta da atividade. Foi uma época de ouro da cultura do espetáculo nacional. Carmem Miranda, por exemplo, foi o expoente dos artistas que tiveram projeção nacional e mundial por conta da sua atuação nos palcos dos cassinos da época. O da Urca, no Rio de Janeiro, especialmente, recebeu artistas norte-americanos do quilate de Bing Crosby, Orson Welles, Josephine Baker e Tito Guisar.

Os motivos que constam como justificadores da proibição do jogo, como estão no Decreto-Lei 9.215/46 soam quase que como uma Ode a uma época em que o Estado brasileiro era permeado por forte influência religiosa e irrefreável dirigismo estatal quanto às liberdades individuais. São as “considerações”:

“Considerando que a repressão aos jogos de azar é um imperativo da consciência universal; Considerando que a legislação penal de todos os povos cultos contém preceitos tendentes a êsse fim; Considerando que a tradição moral jurídica e religiosa do povo brasileiro é contrária à prática e à exploração de jogos de azar; Considerando que, das exceções abertas à lei geral, decorreram abusos nocivos à moral e aos bons costumes; (...). E então, por estes motivos restou decretado que: “Art. 1º Fica restaurada em todo o território nacional a vigência do artigo 50 e seus parágrafos da Lei das Contravenções Penais (Decreto-lei nº 3.688, de 2 de Outubro de 1941). Art. 2º Esta Lei revoga os Decretos-leis nº 241, de 4 de Fevereiro de 1938, n.º 5.089, de 15 de Dezembro de 1942 e nº 5.192, de 14 de Janeiro de 1943 e disposições em contrário. Art. 3º Ficam declaradas nulas e sem efeito tôdas as licenças, concessões ou autorizações dadas pelas autoridades federais, estaduais ou municipais, com fundamento nas leis ora revogadas, ou que, de qualquer forma, contenham autorização em contrário ao disposto no artigo 50 e seus Parágrafos da Lei das Contravenções penais.

O impacto que causa a justificativa, nos dias atuais, denuncia que a proibição que ainda hoje é perseguida criminalmente pelo aparelho punitivo estatal não encontra mais sustentação de validade na ordem constitucionalmente vigente.

O tema instiga a leitura da lei criminalizadora sob o viés constitucional, onde de um lado figura a proteção, pelo Estado, dos direitos fundamentais e por outro a licenciosidade com a qual se permite ao Estado punir a conduta que cause ofensividade a direitos transindividuais, num mandado de criminalização expresso. De saída se vê que a liberdade individual é a pedra de toque do sistema constitucional vigente, erigida a direito fundamental intocável, a ponto de o artigo 5º, XLI, da CF/88 ser expresso em, ao contrário dos fundamentos do Decreto-Lei 9.215/46, recomendar programaticamente punição a qualquer ato atentatório dos direitos e liberdades fundamentais. Os direitos fundamentais de liberdade têm, assim, um duplo viés: de proteção estatal pela proibição de intervenção do próprio Estado ou de terceiro, no sentido de violá-lo (proibição de proteção insuficiente); e de salvaguarda de tal direito aos seus titulares (proibição de excesso estatal). Então que toda a autorização constitucional, expressa ou implícita, dada ao legislador para criminalização de condutas assenta-se na idéia da proporcionalidade (ou proibição de excesso), de sorte que esteja justificada minimamente, para então entrar em cena o discricionarismo legislativo, a real e efetiva existência de um valor transindividual protegido constitucionalmente e que fundamente a criminalização da conduta. A análise, assim, se dá na idéia da apreciação da adequação e necessidade da providência adotada.

Prosseguindo, o controle da constitucionalidade, neste aspecto, se dá em três graus de intensidade: a) controle da evidência; b) controle de justificabilidade e c) controle material de intensidade. No controle de evidência, realiza-se um juízo de valor acerca da evidência da inidoneidade do meio legal para a efetiva proteção do bem jurídico fundamental. No controle de justificabilidade, busca-se aferir se a lei está em conformidade com a apreciação objetiva de todas as fontes de conhecimento então disponíveis. No âmbito penal, há de se justificar a norma pela concepção de uma política criminal efetivamente fundada em parâmetros científicos que a justifiquem. No controle material de intensidade, está a verificação da ponderação entre a afetação ou restrição de bens jurídicos fundamentais de suma relevância – liberdade individual v.g. – e a justificativa de intervenção justa do direito penal. Na contraposição de valores, verifica-se se a medida legislativa de intervenção e limitação de um determinado direito fundamental é necessária e obrigatória para a proteção de outros bens jurídicos igualmente relevantes.

A introdução histórica da evolução temporal legislativa do jogo no Brasil não foi sem propósito. É unânime na doutrina a definição do bem juridicamente tutelado no que pertine à criminalização do jogo como sendo os “bons costumes”. Prescindível dizer que a definição é mutável com o tempo, sendo caso de evolução, interpretação e integração histórica e evolutiva na aplicação do direito penal. Os costumes, ou melhor, os “bons” sofrem constante evolução à medida em que a sociedade se aperfeiçoa, se integra, se acultura e se embebe na interligação propiciada pela rede mundial de computadores. Na década de 40 do século passado ofendia os “bons costumes” que a moça mostrasse seus joelhos em público; hoje não ofende os bons costumes o beijo lascivo da novela das 21h, seja ele hetero ou homossexual.

Inicio com os motivos da (nova) criminalização do jogo no Brasil, pelo Decreto-Lei 9.215/46. Não se sustenta tratar a necessidade de criminalizar o jogo como “um imperativo da consciência universal” na medida em que as liberdades individuais, especialmente a opção por jogar ou não, não podem ser tuteladas pelo Estado por ofender diretamente a liberdade...

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