Acórdão nº 50058954520188210039 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Décima Quarta Câmara Cível, 24-03-2022

Data de Julgamento24 Março 2022
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Classe processualApelação
Número do processo50058954520188210039
Tipo de documentoAcórdão
ÓrgãoDécima Quarta Câmara Cível

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20001750751
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

14ª Câmara Cível

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Apelação Cível Nº 5005895-45.2018.8.21.0039/RS

TIPO DE AÇÃO: Usucapião Extraordinária

RELATOR: Desembargador ROBERTO SBRAVATI

APELANTE: BANRISUL S A ARRENDAMENTO MERCANTIL (RÉU)

APELADO: LUIZ MARCOS REI MOREIRA (AUTOR)

RELATÓRIO

Trata-se de apelação interposta por BANRISUL SA ARRENDAMENTO MERCANTIL contra sentença proferida nos autos da ação de usucapião de bem móvel que o apelante litiga contra LUIZ MARCOS REI MOREIRA.

A sentença recorrida assim decidiu:

DIANTE DO EXPOSTO, julgo PROCEDENTE a ação, forte no art. 487, I, do CPC, para declarar a propriedade do autor LUIZ MARCOS REI MOREIRA relativamente ao automóvel micro-ônibus Mercedes Benz LO 608 Diesel, placas IBH 2836, descrito no documento da fl. 11.

Sucumbente, condeno a parte ré nas custas e honorários ao advogado da parte autora, os quais fixo em R$ 1.000,00 (um mil reais), forte no artigo 85 § 8º do CPC.

Apela a parte ré nas fls. 139-145. Em suas razões, alega a inexistência de usucapião de arrendamento mercantil inadimplido, pois não teria ocorrido a prescrição da cobrança do débito na ação de reintegração de posse. Requer a improcedência da ação e a condenação da apelada na integralidade das custas e honorários.

O autor apresentou contrarrazões (fls. 150-153). Alega, em preliminar, intempestividade do apelo e que, em razão da revelia, o recurso não deve ser conhecido. No mérito, postula pela manutenção da sentença.

Subiram os autos a este Tribunal.

Foram observadas as disposições legais dos artigos 931 e 934, ambos do CPC.

É o relatório.

VOTO

O presente recurso foi interposto com o escopo do réu obter a reforma da sentença que declarou a propriedade do micro-ônibus Mercedez Benz / LO 608, placa IBH 2836, ao autor, que estaria na posse mansa e pacífica do veículo há mais de 20 anos.

PRELIMINARES

Compulsando os autos, verifico que a NE n. 101/2020, a qual intimou as partes da sentença, foi disponibilizada no DJE em 01.10.20, e publicada no primeiro dia útil seguinte, qual seja 02.10.20, iniciando a contagem somente no dia 05.10.20.

Assim, considerando o feriado nacional de 12.10.20, o prazo de 15 dias, previsto no art. 1.003, §5º do CPC se encerraria somente em 26.10.20, data da interposição do apelo (fl. 139 v.), não havendo que se falar em intempestividade.

Quanto aos efeitos da revelia, sabe-se que sua ocorrência não obriga o julgador a ficar adstrito aos fatos afirmados na exordial. Muito pelo contrário, sua presunção é juris tantum, ou seja, o efeito relativo da revelia permite ao magistrado que o afaste quando a tese apresentada pelo autor da demanda não se mostrar verossímil ou plausível diante dos elementos probatórios em sentido contrário aos seus argumentos. Assim, é permitido ao juiz, que profira um julgamento de acordo com sua convicção.

Nessa senda, insurge-se o apelado cerca da extensão dada aos efeitos da revelia, que ao seu entender presumir-se-iam verdadeiros os fatos alegados nos autos e, via de consequência, acarretaria o não conhecimento do apelo interposto pelo réu.

Todavia, convém gizar que a revelia, por si só, não detém o condão de ensejar o acolhimento integral do pleito inaugural.

Os efeitos da revelia no Processo Civil Brasileiro atual encontram-se mitigados. Primeiramente, se o revel está representado por procurador nos autos, haverá de ocorrer a intimação dos atos processuais pela publicação do ato decisório no órgão oficial, nos termos do art. 346, do CPC. Em segundo, ao revel é lícito manifestar-se nos autos em qualquer fase do processo, com o encargo de recebê-lo no estado em que se encontra, segundo o preconizado no parágrafo único do mesmo dispositivo legal.

Umberto Bara Bresolin compila, em sua obra1, o entendimento de juristas de renome, elencando as seguintes situações em que os efeitos da revelia não se fazem presentes, além daquelas descritas no art. 320 do CPC/73 (atual art. 345 do NCPC). Diz o aludido autor, citando Antonio Cezar Peluso, que o efeito da revelia preconizado pelo artigo 319 do CPC (...) só poderia ser aplicado se a alegação do fato do autor, dentre outros requisitos, fosse verossímil e não se revelasse contrária à prova eventualmente existente no processo2. Também cita lição de Cândido Rangel Dinamarco, para quem os fatos “impossíveis ou improváveis” estão fora da presunção de veracidade do art. 319, e funda-se em Barbosa Moreira, para dizer que não se aplica o efeito ora investigado se as alegações não impugnadas forem incompatíveis com as provas que instruíram a petição inicial.3

Aliás, José Carlos Barbosa Moreira4 leciona que:

A despeito do teor literal do art. 319, não fica o juiz vinculado, ao nosso ver, à aceitação de fatos inverossímeis, notoriamente inverídicos ou incompatíveis com os próprios elementos ministrados na inicial, só porque ocorra a revelia.”

E no que se refere à participação do revel nos autos, são os comentários de Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart, Daniel Mitidiero, na obra Novo Código de Processo Civil Comentado, Ed. Revista dos Tribunais, 2015, p. 374:

O réu revel poderá intervir no processo em qualquer fase, recebendo-o no estado em que se encontrar. Caso intervenha, por exemplo, antes de finda a fase instrutória, tem o direito inclusive de requerer a produção de provas (art. 349, CPC; STJ, 5.ª Turma, AgRg nos Edcl no REsp 813. 959/RS, rel. Min. Gilson Dipp, j. 14.11.2006, DJ 18.12.2006, p. 495). Estando no feito, adquire evidentemente o direito de ser intimado de todos os atos subsequentes, apagando-se o efeito processual da revelia (STJ, 3.ª Turma, REsp 238.229/RJ, rel. Min. Castro Filho, j. 13.08.2002, DJ 16.09.2002, p. 180).

Por tudo isso, em que pese reconhecida a revelia, não há impedimento para interposição de apelo pelo demandado.

MÉRITO

A modalidade de aquisição da propriedade com fulcro no Código Civil, art. 1261, não exige justo título, ânimo de dono ou boa-fé, apenas a posse do bem e o transcurso do prazo (cinco anos), sem oposição ou interrupção, como ocorrente na casuística, veja-se:

Art. 1261 - Se a posse de coisa móvel se prolongar por cinco anos produzirá usucapião, independentemente de justo título e boa-fé.

No caso em apreço, o apelante tinha ciência acerca da existência do registro de gravame que recaía sobre o veículo adquirido da empresa Easy Tour Ltda., visto que o registro junto ao DETRAN tem efeito probatório contra terceiros. Neste sentido, a sua posse seria precária, não permitindo que ela gerasse efeitos jurídicos, nos termos da doutrina clássica.

Porém, preclaros Colegas, o direito – graças à dinamicidade da sociedade, não consegue ficar preso às amarras dos antigos institutos, nem dos regramentos ordinários, porque ele próprio, entendido como a conduta humana em interferência intersubjetiva (Carlos Cóssio), é produto de um agrupamento humano que se modifica com o tempo, que altera conceitos, ideias e modo de viver.

Cóssio prova que o juiz vê o Direito não como algo conclusivo e já feito, mas sim como algo que se faz constantemente em seu caráter de vida humana vivente.

Destarte, sob a estrita ótica da posse precária e da ausência de animus domini, restaria incontestável que os mais de cinco anos em que o apelante utilizou o veículo, como se seu fosse, inclusive pagando os devidos impostos, não teria o condão de convalescer a precariedade, mesmo que o Código Civil, em seu artigo 1.261, expresse que se a posse se prolongar por cinco anos, produziria usucapião, independentemente de título ou boa-fé.

No entanto, a Constituição de 1988, absorvendo o quadro de mudanças existentes na sociedade brasileira, erigiu a função social como direito fundamental.

A Carta Brasileira atual garante o direito de propriedade no seu artigo 5º, que traz o rol dos direitos e garantias fundamentais, contanto que atenda às exigências da sua função social:

“XXII - é garantido o direito de propriedade;

XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;”

Por outro lado, também manteve a propriedade e a sua função social como um dos princípios conformadores da ordem econômica:

“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...)

II - propriedade privada;

III - função social da propriedade;”

Pela sua própria natureza, os direitos fundamentais possuem aplicação imediata (§1°, do artigo 5°, da CF/88), não estando condicionados à edição de normatividade inferior.

Diante do exposto, é firme no direito brasileiro a autoaplicabilidade da exigência do cumprimento de uma função social como instrumento de legitimação, e mesmo de existência, do direito de propriedade.

Em relação ao fenômeno da interversão da posse, previsto no artigo 1.203 do Código Civil, Orlando Gomes ensina que consiste na transformação do que pode ocorrer em um título ou em uma posse, for força da qual o detentor passa a ser reputado verdadeiro possuidor e a posse precária se transforma em posse legítima. Interversão é o mesmo que inversão. Salvo prova em contrário, entender-se manter a posse o mesmo caráter com que foi adquirida. Portanto, toda vez que ocorrer uma alteração no tratamento da posse, interversão na posse haverá.

Assim, é evidente que não se pode mais pensar a propriedade como um direito absoluto. A função social da propriedade não se confunde com os sistemas de limitação de propriedade. Estes dizem respeito ao exercício do direito ao proprietário;...

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