Acórdão nº 50067939820218214001 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Turma Recursal Criminal, 27-06-2022

Data de Julgamento27 Junho 2022
Tribunal de OrigemTurmas Recursais
Classe processualApelação
Número do processo50067939820218214001
Tipo de documentoAcórdão
ÓrgãoTurma Recursal Criminal

PODER JUDICIÁRIO

Documento:10020334050
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

Turma Recursal Criminal

APELAÇÃO CRIMINAL Nº 5006793-98.2021.8.21.4001/RS

TIPO DE AÇÃO: Posse de Drogas para Consumo Pessoal (Lei 11.343/06, art. 28)

RELATOR: Juiz de Direito LUIS GUSTAVO ZANELLA PICCININ

RECORRENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (MINISTÉRIO PÚBLICO)

APELADO: GUILHERME ALEX MORAES DA SILVA (AUTOR FATO)

RELATÓRIO

O Ministério Público interpõe recurso de apelação contra a decisão do evento n. 12, que determinou o arquivamento do termo circunstanciado instaurado contra GUILHERME ALEX MORAES DA SILVA pela prática do delito de posse de entorpecentes em razão da insignificância e irrelevância penal da conduta.

O recorrente sustenta que o legislador não descriminalizou o comportamento do usuário de drogas, promovendo tão somente um abrandamento da reprimenda em relação ao regramento anterior, com tipos penais diversos da privação de liberdade. Ainda, afirma que o consumo estimula e sustenta o tráfico ilícito, com consequências notórias à saúde pública. Requer a reforma da decisão e o prosseguimento do feito (evento n. 15).

Em contrarrazões, a defesa advoga a atipicidade da conduta em razão da ínfima quantidade de droga apreendida em poder do recorrido (evento n. 21).

O Ministério Público, nesta instância recursal, opinou pelo provimento do recurso (evento n. 26).

VOTO

Conheço do recurso, pois cabível, adequado e tempestivo. Além disso, não há fato impeditivo - renúncia ou preclusão - ou extintivo - desistência ou deserção -, sendo formalmente regular. Presentes, também, os requisitos subjetivos de admissibilidade, quais sejam, a legitimidade e o interesse recursal.

Da análise dos autos, infere-se que o Termo Circunstanciado que instrui o presente feito foi instaurado com o fito de apurar, em tese, o delito tipificado no artigo 28 da Lei 11.343/06, uma vez que com o réu foi localizado um cigarro pronto para consumo, contendo 1,280g de cannabis sativa, popularmente conhecida como maconha, consoante o laudo pericial (evento n. 6).

Ocorre que a Magistrada a quo, por ocasião do pedido de designação de audiência preliminar, entendendo pela atipicidade da conduta e pela incompatibilidade do seu aspecto material (normativo) com os princípios da intervenção mínima e da dignidade da pessoa humana, determinou, de ofício, o arquivamento do expediente criminal.

O recurso ministerial comporta provimento, e por dois motivos:

Primeiro, sendo o Ministério Público o titular da ação penal pública, conforme dispõe o art. 129, I, da Constituição Federal, compete a ele perquirir acerca de eventual arquivamento por atipicidade do fato, que só então será homologado ou não pelo Poder Judiciário.

Logo, a decisão que arquivou de ofício o termo circunstanciado invadiu a esfera de poderes do Parquet, motivo pelo qual deve ser cassada, com o consequente prosseguimento do feito.

Outro não é o entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça:

PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. ARQUIVAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL DE OFÍCIO PELO MAGISTRADO. IMPOSSIBI-LIDADE. 1. A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça é no sentido de que compete ao Ministério Público, na condição de dominus litis, promover a ação penal pública, avaliando se as provas obtidas na fase pré-processual são suficientes para sua propositura, por ser ele o detentor do \'jus persequendi\'. Portanto, não cabe ao magistrado assumir o papel constitucionalmente assegurado ao órgão de acusação e, de ofício, determinar o arquivamento do inquérito policial (AgRg no REsp 1284335/MG, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, Quinta Turma, julgado em 1o/4/2014, DJe 14/4/2014). 2. Agravo regimental não provido. (AgRg no REsp 1578376/SP, Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, 5ª T, julgado em (05/12/2016).

Por outro lado, vem esta Turma Recursal sustentando que a posse de entorpecentes para uso próprio configura a conduta ilícita prevista no artigo 28 da Lei de Drogas, independentemente da quantidade apreendida, por afetar o bem jurídico tutelado, que é a saúde pública, não configurando hipótese de autolesão. Pelo mesmo fundamento, afasta-se a aplicação do princípio da insignificância aos delitos da espécie, uma vez que esta não reside na quantidade da substância apreendida, mas na sua potencialidade lesiva, com todas as consequências pessoais e de fomento da macrocriminalidade que a conduta enceta.

Trago à baila, por pertinente, a discussão que se travou no HC 104.410, julgado pelo STF, no qual o Ministro Relator Gilmar Mendes, realizando uma digressão quanto aos níveis de intensidade do controle de leis penais, faz referência ao caso Cannabis (BVerfGEe 90,145), julgado pelo Tribunal Constitucional alemão, em que a Corte confirmou a constitucionalidade da tipificação penal da aquisição e porte para consumo de produtos derivados da planta cannabis sativa, onde justamente o que se discutia era a existência de autolesão ou de lesão coletiva, que justificasse a criminalização do uso da droga:

“Sob o ponto de vista material, ressalvadas as garantias constitucionais especiais, o princípio da proporcionalidade oferece o parâmetro geral constitucional, segundo o qual a liberdade de ação pode ser restringida [cf. BVerfGE 75, 108 (154 s.); 80, 137 (153)]. Esse princípio tem um significado mais intenso no exame de um dispositivo penal, que, enquanto sanção mais forte à disposição do Estado, expressa um juízo de valor ético-social negativo sobre uma determinada ação do cidadão [cf. BVerfGE 25, 269 (286); 88, 203 (258].

“Se há previsão de pena privativa de liberdade, isso possibilita uma intervenção no direito fundamental da liberdade da pessoa, protegido pelo Art. 2 II 2 GG. A liberdade da pessoa, que a Grundgesetz caracteriza como ‘inviolável’, é um bem jurídico tão elevado que nele somente se pode intervir com base na reserva legal do Art. 2 II 3 GG, por motivos especialmente graves. Independentemente do fato de que tais intervenções também podem ser cogitadas sob determinados pressupostos, quando servirem para impedir que o atingido promova contra si próprio um dano pessoal maior [BVerfGE 22, 180 (219); 58, 208 (224 et seg.); 59, 275 (278); 60, 123 (132)], elas, em geral, somente são permitidas se a proteção de outros ou da comunidade assim o exigir, observando-se o princípio da proporcionalidade.

“Segundo esse princípio, uma lei que restringe o direito fundamental deve ser adequada e necessária para o alcance almejado. Uma lei é adequada se o propósito almejado puder ser promovido com o seu auxílio; é necessária se o legislador não puder selecionar um outro meio de igual eficácia, mas que não restrinja, ou que restrinja menos, o direito fundamental [cf. BVerfGe 30, 292 (316); 63, 88 (115); 67, 157 (173, 176)].

“Na avaliação da adequação e da necessidade do meio escolhido para o alcance dos objetivos buscados, como na avaliação e prognóstico a serem feitos, neste contexto, dos perigos que ameaçam o indivíduo ou a comunidade, cabe ao legislador uma margem (discricionária) de avaliação, a qual o Tribunal Constitucional Federal – dependendo da particularidade do assunto em questão, das possibilidades de formar um julgamento suficientemente seguro e dos bens jurídicos que estão em jogo – poderá revisar somente em extensão limitada (cf. BVerfGE 77, 170 (215); 88, 203 (262)].

“Além disso, numa ponderação geral entre a gravidade da intervenção e o peso, bem como da urgência dos motivos justificadores, deve ser respeitado o limite da exigibilidade para os destinatários da proibição [cf. BVerfGE 30, 292 (316); 67, 157 (178); 81, 70 (92)]. A medida não deve, portanto, onerá-lo excessivamente (proibição de excesso ou proporcionalidade em sentido estrito: cf. BVerfGE 48, 396 (402); 83, 1 (19). No âmbito da punibilidade estatal, deriva do princípio da culpa, que tem a sua base no Art. 1 I GG [cf. BVerfGE 45, 187 (228)], e do princípio da proporcionalidade, que deve ser deduzido do princípio do Estado de direito e dos direitos de liberdade, que a gravidade de um delito e a culpa do autor devem estar numa proporção justa em relação à pena. Uma previsão de pena não pode, quanto ao seu tipo e à sua extensão, ser inadequada em relação ao comportamento sujeito à aplicação da pena. O tipo penal e a consequência jurídica devem estar racionalmente correlacionados [cf. BVerGE 54, 100 (108)].

“É, em princípio, tarefa do legislador determinar de maneira vinculante o âmbito da ação punível, observando a respectiva situação em seus pormenores. O Tribunal Constitucional Federal não pode examinar a decisão do legislador no sentido de se verificar se foi escolhida a solução mais adequada, mais sensata ou mais justa. Tem apenas que zelar para que o dispositivo penal esteja materialmente em sintonia com as determinações da Constituição e com os princípios constitucionais não escritos, bem como para que corresponda às decisões fundamentais da Grundgesetz [cf. BVerfGE 80, 244 (255)]”.

“No caso, o Bundesverfassungsgericht, após analisar uma grande quantidade de dados e argumentos sobre o tema, reconhece que ainda não estaria concluída, à época, a discussão político-criminal a respeito da melhor alternativa para se alcançar a redução do consumo de cannabis poderia: por meio da penalização ou da liberação da conduta. E, justamente devido à incerteza quanto ao efetivo grau de periculosidade social do consumo da cannabis e à polêmica existente, tanto no plano científico como no político-social, em torno da eficácia da intervenção por meio do direito penal, é que não se poderia reprovar, do ponto de vista de sua constitucionalidade, a avaliação realizada pelo legislador, naquele estágio do conhecimento, a respeito da adequação e da necessidade da medida penal. Assim, admite o Tribunal que, ‘se o legislador nesse contexto se...

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