Acórdão nº 50072060620218210059 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Turma Recursal Criminal, 27-06-2022

Data de Julgamento27 Junho 2022
Tribunal de OrigemTurmas Recursais
Classe processualApelação
Número do processo50072060620218210059
Tipo de documentoAcórdão
ÓrgãoTurma Recursal Criminal

PODER JUDICIÁRIO

Documento:10020413211
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

Turma Recursal Criminal

APELAÇÃO CRIMINAL Nº 5007206-06.2021.8.21.0059/RS

TIPO DE AÇÃO: Posse de Drogas para Consumo Pessoal (Lei 11.343/06, art. 28)

RELATOR: Juiz de Direito LUIS GUSTAVO ZANELLA PICCININ

APELANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (AUTOR)

APELADO: CLENIO PEDROTTI DOS SANTOS (ACUSADO)

RELATÓRIO

Apela o Ministério Público (evento n. 17) da decisão (evento n. 11) que rejeitou a denúncia oferecida em face de CLENIO PEDROTTI DOS SANTOS, com fundamento legal no art. 395, III, do Código de Processo Penal, pela prática do delito de posse de entorpecentes para uso próprio, declarando a atipicidade penal da conduta, por violação aos direitos fundamentais à intimidade e autonomia individual.

O recorrente aponta que o tipo penal do art. 28 permanece em vigor, não tendo havido descriminalização da conduta, e que a tipicidade está vinculada às propriedades da droga e ao risco social e de saúde pública. Requer a reforma da decisão recorrida, a fim de que seja dado prosseguimento ao feito.

Em contrarrazões, a defesa reafirma a atipicidade da conduta e a ausência de justa causa para a ação penal, invocando a incidência do princípio da insignificância (evento n. 22).

O Ministério Público, nesta instância recursal, opinou pelo provimento do recurso (evento n. 26).

VOTO

Conheço do recurso, pois cabível, adequado e tempestivo. Além disso, não há fato impeditivo - renúncia ou preclusão - ou extintivo - desistência ou deserção -, sendo formalmente regular. Presentes, também, a legitimidade e o interesse recursal, requisitos subjetivos de admissibilidade.

É caso de provimento do recurso.

A conduta atribuída ao réu na denúncia é a prevista no artigo 28, caput, da Lei 11.343/06, uma vez que com ele foi encontrada uma porção de maconha, pesando 1,172g, consoante o laudo pericial (evento n. 1, fl. 11), o qual atestou a presença de tetrahidrocannabinol (THC) no material examinado.

A posse de entorpecentes para uso próprio configura a conduta ilícita prevista no art. 28 da Lei de Drogas, independentemente da quantidade apreendida, por afetar o bem jurídico tutelado, que é a saúde pública, não configurando hipótese de autolesão. Pelo mesmo fundamento, afasta-se a aplicação do princípio da insignificância aos delitos da espécie, uma vez que esta não reside na quantidade da substância apreendida, mas na sua potencialidade lesiva, com todas as consequências pessoais e de fomento da macro criminalidade que a conduta enceta.

Nem a discussão que se dá atualmente no STF, em que se pretende descriminalizar a conduta do consumidor (REXt 635.659/SP), desmerece o mérito da lei. Antes pelo contrário. Os dispositivos conhecidos lançados na conclusão dos votos dos Min. Gilmar Mendes e Min. Edson Fachin, que são no sentido diametralmente oposto a este voto, descriminalizando a conduta, portanto, são expressos em manter o texto da atual legislação, especialmente no que tange à submissão do usuário àquelas medidas previstas no artigo 28 da Lei 11.343/06. Ora, então do que estamos tratando exatamente aqui?! Tão e apenas somente de decidir qual o juízo para aplicá-las: o cível ou o criminal, já que mesmo no reconhecimento da inconstitucionalidade vingar, o usuário não deixará de ser submetido àquelas medidas não-privativas de liberdade do artigo 28 da Lei. Lembro e reitero que nenhuma das penalidades ali previstas será convertida em prisão e, no tocante à advertência, deve seguir a mesma sorte da pena de multa para fins de não gerar reincidência, aplicando-se-lhe o texto do artigo 84, parágrafo único, da Lei 9.099/95: “Art. 84. Aplicada exclusivamente pena de multa, seu cumprimento far-se-á mediante pagamento na Secretaria do Juizado. Parágrafo único. Efetuado o pagamento, o Juiz declarará extinta a punibilidade, determinando que a condenação não fique constando dos registros criminais, exceto para fins de requisição judicial”. É inevitável conciliar a intenção do legislador em desencarcerar o consumidor de drogas, tratando-o como doente – tanto que nunca se aplica a ele medida de prisão – e por igual não considerar aquele que pratica delito de menor potencial ofensivo que resulte em multa, aí incluída a posse de droga, como reincidente, não se constando a condenação para qualquer fim. Se a pena maior, a “multa” não gera registro desabonatório que gere reincidência, mais razão ainda que a advertência, medida não-penal “menor”, prevista no inciso I do artigo 28 também não gere antecedente ou reincidência.

Trago à baila, por pertinente, a discussão que se travou no HC 104.410, julgado pelo STF, no qual o Ministro Relator Gilmar Mendes, realizando uma digressão quanto aos níveis de intensidade do controle de leis penais, faz referência ao caso Cannabis (BVerfGEe 90,145), julgado pelo Tribunal Constitucional alemão, em que a Corte confirmou a constitucionalidade da tipificação penal da aquisição e porte para consumo de produtos derivados da planta cannabis sativa, onde justamente o que se discutia era a existência de autolesão ou de lesão coletiva, que justificasse a criminalização do uso da droga.

Sob o ponto de vista material, ressalvadas as garantias constitucionais especiais, o princípio da proporcionalidade oferece o parâmetro geral constitucional, segundo o qual a liberdade de ação pode ser restringida [cf. BVerfGE 75, 108 (154 s.); 80, 137 (153)]. Esse princípio tem um significado mais intenso no exame de um dispositivo penal, que, enquanto sanção mais forte à disposição do Estado, expressa um juízo de valor ético-social negativo sobre uma determinada ação do cidadão [cf. BVerfGE 25, 269 (286); 88, 203 (258].

Se há previsão de pena privativa de liberdade, isso possibilita uma intervenção no direito fundamental da liberdade da pessoa, protegido pelo Art. 2 II 2 GG. A liberdade da pessoa, que a Grundgesetz caracteriza como ‘inviolável’, é um bem jurídico tão elevado que nele somente se pode intervir com base na reserva legal do Art. 2 II 3 GG, por motivos especialmente graves. Independentemente do fato de que tais intervenções também podem ser cogitadas sob determinados pressupostos, quando servirem para impedir que o atingido promova contra si próprio um dano pessoal maior [BVerfGE 22, 180 (219); 58, 208 (224 et seg.); 59, 275 (278); 60, 123 (132)], elas, em geral, somente são permitidas se a proteção de outros ou da comunidade assim o exigir, observando-se o princípio da proporcionalidade.

Segundo esse princípio, uma lei que restringe o direito fundamental deve ser adequada e necessária para o alcance almejado. Uma lei é adequada se o propósito almejado puder ser promovido com o seu auxílio; é necessária se o legislador não puder selecionar um outro meio de igual eficácia, mas que não restrinja, ou que restrinja menos, o direito fundamental [cf. BVerfGe 30, 292 (316); 63, 88 (115); 67, 157 (173, 176)].

Na avaliação da adequação e da necessidade do meio escolhido para o alcance dos objetivos buscados, como na avaliação e prognóstico a serem feitos, neste contexto, dos perigos que ameaçam o indivíduo ou a comunidade, cabe ao legislador uma margem (discricionária) de avaliação, a qual o Tribunal Constitucional Federal – dependendo da particularidade do assunto em questão, das possibilidades de formar um julgamento suficientemente seguro e dos bens jurídicos que estão em jogo – poderá revisar somente em extensão limitada (cf. BVerfGE 77, 170 (215); 88, 203 (262)].

Além disso, numa ponderação geral entre a gravidade da intervenção e o peso, bem como da urgência dos motivos justificadores, deve ser respeitado o limite da exigibilidade para os destinatários da proibição [cf. BVerfGE 30, 292 (316); 67, 157 (178); 81, 70 (92)]. A medida não deve, portanto, onerá-lo excessivamente (proibição de excesso ou proporcionalidade em sentido estrito: cf. BVerfGE 48, 396 (402); 83, 1 (19). No âmbito da punibilidade estatal, deriva do princípio da culpa, que tem a sua base no Art. 1 I GG [cf. BVerfGE 45, 187 (228)], e do princípio da proporcionalidade, que deve ser deduzido do princípio do Estado de direito e dos direitos de liberdade, que a gravidade de um delito e a culpa do autor devem estar numa proporção justa em relação à pena. Uma previsão de pena não pode, quanto ao seu tipo e à sua extensão, ser inadequada em relação ao comportamento sujeito à aplicação da pena. O tipo penal e a consequência jurídica devem estar racionalmente correlacionados [cf. BVerGE 54, 100 (108)].

É, em princípio, tarefa do legislador determinar de maneira vinculante o âmbito da ação punível, observando a respectiva situação em seus pormenores. O Tribunal Constitucional Federal não pode examinar a decisão do legislador no sentido de se verificar se foi escolhida a solução mais adequada, mais sensata ou mais justa. Tem apenas que zelar para que o dispositivo penal esteja materialmente em sintonia com as determinações da Constituição e com os princípios constitucionais não escritos, bem como para que corresponda às decisões fundamentais da Grundgesetz [cf. BVerfGE 80, 244 (255)]”.

No caso, o Bundesverfassungsgericht, após analisar uma grande quantidade de dados e argumentos sobre o tema, reconhece que ainda não estaria concluída, à época, a discussão político-criminal a respeito da melhor alternativa para se alcançar a redução do consumo de cannabis poderia: por meio da penalização ou da liberação da conduta. E, justamente devido à incerteza quanto ao efetivo grau de periculosidade social do consumo da cannabis e à polêmica existente, tanto no plano científico como no político-social, em torno da eficácia da intervenção por meio do direito penal, é que não se poderia reprovar, do ponto de vista de sua constitucionalidade, a avaliação realizada pelo legislador, naquele estágio do conhecimento, a...

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