Acórdão nº 50137072420208210022 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Quinta Câmara Criminal, 24-05-2023

Data de Julgamento24 Maio 2023
ÓrgãoQuinta Câmara Criminal
Classe processualApelação
Número do processo50137072420208210022
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Tipo de documentoAcórdão

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20003652911
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

5ª Câmara Criminal

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Apelação Criminal Nº 5013707-24.2020.8.21.0022/RS

TIPO DE AÇÃO: Vias de fato

RELATOR: Desembargador IVAN LEOMAR BRUXEL

RELATÓRIO

JOEL R.C.C., com 42 anos na data do fato (DN 02/12/1977), foi denunciado e condenado por incurso no artigo o 21 da Lei das Contravenções Penais, na forma da Lei 11.340/2006.

O fato foi assim descrito na denúncia, recebida em 26/10/2020 (abreviaturas ausentes no original):

No dia 26 de julho de 2020, por volta das 20h25min, na Rua (...), nesta Cidade, o denunciado, prevalecendo-se de relações domésticas, praticou vias de fato contra Ana Paula S.S., sua ex-namorada.

Na ocasião, o denunciado, não aceitando o término de seu relacionamento com a ofendida, dirigiu-se até a casa desta a fim de fazer um churrasco, momento em que, ante a recusa de Ana Paula, desferiu-lhe um soco no rosto, não restando, contudo, a vítima lesionada.

O fato ocorreu em ambiente doméstico, uma vez que o denunciado é ex-namorado da vítima.

O denunciado praticou o delito anteriormente descrito durante o “estado de calamidade pública em todo o território do Estado do Rio Grande do Sul para fins de prevenção e enfrentamento à epidemia causada pelo novo Coronavírus (COVID -19), declarado pelo Decreto n.º 55.128, de 19 de março de 2020, reconhecido pela Assembleia Legislativa por meio do Decreto Legislativo n.º 11.220, de 19 de março de 2020, e reiterado pelo Decreto n.º 55.154, de 1º de abril de 2020”, conforme artigo 1º, do Decreto Estadual n.º 55.240, de 10 de maio de 2020, em vigor na data do fato.

A DEFESA apelou, buscando absolvição, alegando insuficiência de provas. Subsidiariamente, pretende o afastamento da indenização.

Oferecida contrariedade.

Parecer pelo improvimento.

É o relatório.

VOTO

Esta a fundamentação da sentença (abreviaturas ausentes no original, contrariando as recomendações do Of. Circ. 001/2016-CGJ, art. 25, XVIII da Cons. Normativa Judicial, e Resolução 01/2017-OE/TJRS):

A presente ação penal busca perquirir o cometimento do crime de lesão corporal, praticado em contexto doméstico, cuja autoria é atribuída ao réu Joel R.C.C..

A materialidade do fato vem estampada no Inquérito Policial nº 1562/2020/152050/A (processo nº 5013447-44.2020.8.21.0022/RS, evento 1).

A autoria delitiva, por sua vez, é igualmente inconteste e recai sobre o réu, consoante se percebe da análise da prova oral coligida em juízo. Vejamos:

Ouvida em juízo, a vítima Ana P. S.S.narrou ter mantido um relacionamento com o acusado por sete anos. A relação com o acusado estava um pouco estremecida ao tempo dos fatos. Estava com duas amigas suas dentro de casa e o acusado foi até o local para chamá-la para um churrasco. Desde o turno da manhã ele estava insistindo no convite, mas ela já havia falado que gostaria de ficar em casa, tendo em vista que o seu pai havia falecido há um mês. Joel foi até a frente da sua casa e disse que mandaria as amigas dela embora e eles iriam para a casa dele. Quando ela respondeu dizendo que não, o acusado a segurou pelos braços e desferiu um soco no seu nariz, que logo começou a sangrar. Voltou correndo para casa e pegou um pano para estancar. O réu entrou na casa atrás dela e suas amigas ficaram assustadas. Pediu para elas chamarem a polícia, por medo de o acusado fazer algo pior. Mesmo o acusado tendo saído, chamou a polícia e foi conduzida até o pronto socorro. Não foi a primeira vez em que foi agredida pelo réu. Pediu as medidas protetivas depois desta última agressão. Depois desta data separou-se definitivamente do réu. Não tem contato com o réu há mais de seis meses.

Ao seu turno, a testemunha Maurício Cardoso Garcia, policial militar, disse não recordar do fato narrado na peça inicial, tendo em vista o tempo decorrido.

Já a testemunha Adriana F. G. asseverou que ao tempo dos fatos tinha uma relação de amizade com a vítima. Estava no interior da casa de Ana Paula quando o acusado a chamou para conversar na rua. Algum tempo depois ela voltou com a mão no nariz, dizendo que havia sido agredida. Havia uma outra pessoa no interior da casa. Conheceu a vítima no trabalho e não tinha conhecimento da relação dela com o réu. À defesa, disse que depois de falar com o réu a vítima voltou com sangue na roupa, dizendo ter sido agredida por ele.

Por sua vez, interrogado em juízo, o réu Joel R.C.C. disse que no sábado à noite saiu com a ofendida e após encontrar umas amigas suas teve um breve desentendimento com ela, tendo sido acertado com três tapas no rosto. Após esse acontecimento foi embora e decidiu ir para a casa da sua mãe. No domingo de manhã foi para a sua casa e foi surpreendido pela vítima, que escondeu três facas no imóvel para tentar agredi-lo. Os familiares da vítima conseguiram acalmá-la. De tarde foi jogar futebol e depois, a noite, resolveram fazer um churrasco. Sendo assim, foi até a casa da vítima para convidá-la para o churrasco. Chegando no local, encontrou a vítima e duas amigas, as quais passaram a tarde bebendo. A vítima rasgou a sua jaqueta e tentou lhe morder, instante em que caíram no chão. Segurou a vítima pelos dois braços e mesmo assim ela mordeu a sua testa. Depois do fato foi embora para a sua casa, onde estava acontecendo o churrasco. Ficou com uma marca na testa por um bom tempo. Acredita que a vítima pode ter machucado o nariz nesse embate que tiveram. Ao Ministério Público, disse que conversou com a vítima na frente de casa. As pessoas que estavam em sua casa no churrasco viram que ele ficou lesionado.

Pois bem.

É cediço que a palavra da vítima goza de especial relevância probatória no âmbito dos crimes praticados em contexto doméstico e familiar, revelando-se suficiente para ensejar a decisão condenatória quando coerente desde a fase policial e compatível com os demais elementos de prova coligidos.

A relevância probatória do relato vitimário decorre do fato de os crimes geralmente serem praticados na intimidade do lar, longe dos olhos de eventuais testemunhas. Além disso, parte-se da premissa de que uma pessoa despida de qualquer desvio de caráter não acusará falsamente alguém de algo que não cometeu, ainda mais sem motivo aparente.

Nesse sentido é a jurisprudência do egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:

APELAÇÃO CRIME. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. AMEAÇA. IRRESIGNAÇÃO DEFENSIVA. SUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. MANUTENÇÃO DA CONDENAÇÃO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. NÃO VERIFICADA. MÉRITO: Não há que se falar em insuficiência probatória a ensejar a absolvição, pois a materialidade e a autoria do delito de ameaça restaram comprovadas pelos coerentes relatos da vítima, corroborados pela ocorrência policial. Em se tratando de fatos relativos à Lei Maria da Penha, a palavra da ofendida assume especial relevância probatória, sendo suficiente, se coerente, para ensejar a condenação. ATIPICIDADE DA CONDUTA: Tratando-se a ameaça de crime de natureza formal, é dispensada, para sua consumação, a intenção do agente de causar mal à vítima, bastando que seja capaz de acarretar temor à parte ofendida, o que foi suficientemente demonstrado pelo arcabouço probatório do caso em tela. AUSÊNCIA DE DOLO: No que se refere à alegação de ausência de dolo na conduta do réu, tal tese restou isolada nos autos. Os depoimentos da vítima, atrelados às demais provas do caderno processual, demonstram, de forma inconteste, que o acusado proferiu as ameaças, gerando grande temor. PARCIAL PROVIMENTO: para substituir a prestação de serviços à comunidade imposta como condição do sursis por limitação de final de semana, pelo tempo da pena imposta. Vencida a Relatora, no ponto. POR MAIORIA, DERAM PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO DEFENSIVO.(Apelação Criminal, Nº 70084587096, Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rosaura Marques Borba, Julgado em: 16-12-2020) Grifei.

No caso concreto, compulsando detidamente o arcabouço probante, verifico que o depoimento prestado pela vítima em juízo, além de encontrar lastro no depoimento da testemunha Adriana - que a viu com o nariz sangrando logo após a conversa com o réu - é inteiramente compatível com as informações prestadas em sede policial (IP 1563/2020/152050/A), posto que Ana Paula narrou de forma coerente a ação do agressor, além de declinar a possível motivação dele para a prática do delito.

O réu por sua vez, apresentou versão pouco convincente e incapaz de fazer frente ao sólido relato vitimário. Se realmente tivesse tido dois desentendimentos seguidos com a vítima, um na noite anterior e outro na manhã do fato, tendo ela inclusive escondido facas pela casa para feri-lo, não teria Joel qualquer motivo para se dirigir até a casa dela no início da noite e convidá-la para um churrasco.

Outrossim, tivesse realmente havido um embate físico entre a ofendida e o acusado, restando ele lesionado na face, alguma das pessoas que estava no churrasco deveria ter sido arrolada pela defesa para ser ouvida em Juízo e confirmar tal versão. No entanto, a única testemunha arrolada foi dispensada pela defesa, que abriu mão da produção da prova.

No caso dos autos, mesmo que se considerasse a atuação do acusado a fim de cessar comportamento hostil da vítima, conforme sustentado por ele em sua defesa pessoal, esta seria incapaz de configurar excludente de ilicitude. Isso porque, a reação do réu teria sido desproporcional a qualquer ato inicialmente sofrido, configurando excesso doloso ou consciente, o qual é plenamente passível de responsabilização criminal, conforme dispõe o art. 23, parágrafo único, do Código Penal.

Desta forma, à vista do exposto e valorado, afastadas as teses em contrário, demonstradas a materialidade da contravenção penal de vias de fato, praticada no âmbito doméstico e familiar, o feito desafia o juízo de procedência, neste...

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