Acórdão nº 50163665320228217000 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Vigésima Quarta Câmara Cível, 30-03-2022

Data de Julgamento30 Março 2022
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Classe processualAgravo de Instrumento
Número do processo50163665320228217000
Tipo de documentoAcórdão
ÓrgãoVigésima Quarta Câmara Cível

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20001907798
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

24ª Câmara Cível

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Agravo de Instrumento Nº 5016366-53.2022.8.21.7000/RS

TIPO DE AÇÃO: Cartão de Crédito

RELATOR: Desembargador JORGE MARASCHIN DOS SANTOS

AGRAVANTE: CLAUDIA FERNANDA DOS SANTOS

AGRAVADO: BANCO SANTANDER (BRASIL) S.A.

RELATÓRIO

Trata-se de agravo de instrumento interposto por CLAUDIA FERNANDA DOS SANTOS, nos autos da ação de desconstituição de débito, ressarcimento de valores e dano moral, que promove em desfavor de BANCO SANTANDER (BRASIL) S.A., em face da decisão que indeferiu o pedido de antecipação de tutela, com o seguinte teor:

Vistos.

Trata-se de AÇÃO DE DESCONSTITUIÇÃO DE DÉBITO, RESSARCIMENTO DE VALORES E DANO MORAL COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA, ajuizada por CLAUDIA FERNANDA DOS SANTOS em face de BANCO SANTANDER (BRASIL) S.A., em que aduziu, resumidamente, que possuía uma conta bancária junto ao banco réu, tendo realizado o seu encerramento em 22/05/2018. Disse que pelo referido termo restaram encerrados também os produtos e serviços vinculados àquela, estando incluído nesses o cartão Santander Free Mastercard. Referiu que após o encerramento da conta até o presente momento a parte autora continua recebendo mensalmente a fatura do cartão Santander Free Mastercard do valor relativo à anuidade, tendo essa efetuado o pagamento de alguns meses. Inconformada, ajuizou a presente ação buscando a desconstituição de todo e qualquer débito em seu nome da autora, a devolução do valor pago indevidamente em dobro, nos termos do art. 42, parágrafo único, do CDC e a condenação em danos morais no valor de 15.000,00. Pediu em tutela de urgência a cessação de emissão de faturas e cobrança do cartão Santander Free Mastercard em seu nome, sob pena de multa diária. Requereu AJG. Juntou documentos.

Pois bem.

Considerando a tutela de urgência postulada, a fim de evitar prejuízo, passo a sua análise, a qual será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo (art. 300, do CPC).

No caso, não verifico presentes os requisitos necessários ao deferimento da tutela de urgência, pois,

embora a demandante alegue urgência, a ação foi ajuizada em 03/11/2021, permanecendo desde 18/07/2018 com esses descontos do referido cartão de crédito, que em média não ultrapassam R$ 3,00 (evento 1, outros 11), de tal modo que a urgência alegada não é nada contemporânea, tampouco foi demonstrada uma necessidade imediata, afim de que a medida fosse alcançada em sede de cognição sumária.

Com efeito, INDEFIRO o pedido de tutela de urgência

A despeito da "justificativa" apresentada pela parte autora, não verifico a necessidade de realização de perícia grafodocumentoscópica, já que a relação contratual é incontroversa, alegando apenas que não houve o cancelamento do seu cartão de crédito no momento em que encerrou os negócios jurídicos firmados com a ré, permanecendo de forma indevida a cobrança dos valores relativos à anuidade do cartão de crédito. Assim, tenho que é caso de declinação da competência para o Juizado Especial, pois típica ação de massa, de pequeno valor patrimonial e de baixa complexidade e que não justifica o trâmite na Justiça Comum.

Tratando-se de ação na qual o autor pleiteia direito de valor patrimonial inferior a 40 salários mínimos, a lei estabelece competência dos Juizados Especiais, na forma da Lei 9.099/90.

Convém destacar que o acesso ao JECível é gratuito, acessível a todo e qualquer cidadão independente de ser ou não beneficiário da AJG, e presta jurisdição célere e efetiva, com ritos e prazos processuais abreviados e informais, justamente para assegurar a celeridade na prestação jurisdicional. A Comarca de Novo Hamburgo possui vara específica do JEC, devidamente estruturada e eficiente, com conciliadores e juízes leigos nomeados.

A Justiça Comum, ao contrário, possui prazos e ritos mais estendidos, com viabilidade recursal mais ampla, e um número maior de processos complexos, que demandam análise mais apurada, o que acarreta indesejada morosidade no trâmite processual.

Não se desconhece a opção conferida ao titular do direito de ajuizar a ação no juizado ou na Justiça Comum, porém, no caso em exame, essa opção está sendo utilizada de forma abusiva e desvirtuada pelo patrono da parte autora, pois não há nenhuma razão fática ou jurídica para que a pretensão seja postulada na Justiça comum.

A faculdade de escolha dada à parte não pode ser vista como um direito absoluto, especialmente quando inexiste justificativa plausível, a exemplo da necessidade de prova pericial. A pretensão declaratória e condenatória ostenta natureza de ação repetitiva e com entendimento consolidado na jurisprudência, com dano moral 'in re ipsa', não havendo razão para submeter o debate a um juiz togado. Havendo opão da parte por litigar na Justiça Comum, deverá pelo menos pagar as custas processuais, a fim de evitar que o encargo financeiro seja injustamente transferido a terceiros por conta da gratuidade pretendida.

Sobre esse tema, vale salientar o entendimento do Des. Eugênio Facchini Neto, no voto do Conflito de Competência n. 70083077719, em que o magistrado esmiúça e aprofunda muito bem a questão:

Não desconheço que o exercício do direito de ação junto aos Juizados Especiais Cíveis é tratado como opção do jurisdicionado pela Lei Federal nº 9.099/95.

Nesse sentido, basta ler o § 3º do art. 3° do referido dispositivo legal (grifo meu):

Art. 3° (...)

§ 3º. A opção pelo procedimento previsto nesta Lei importará em renúncia ao crédito excedente ao limite estabelecido neste artigo, excetuada a hipótese de conciliação”.

Da mesma forma, igual opção resulta da Lei Estadual n. 10.675/96, especialmente pela dicção do parágrafo único do seu art. 1º:

Art. 1º - Fica criado, no Estado do Rio Grande do Sul, o Sistema de Juizados Especiais Cíveis e Criminais, órgãos da Justiça Estadual Ordinária, para conciliação, processo, julgamento e execução das causas previstas na Lei Federal nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.

Parágrafo único - A opção pelos Juizados Especiais Cíveis é do autor da ação.

Ocorre que referido direito, tal como qualquer outro direito posto em nosso ordenamento, não é absoluto. Todos os direitos são relativos, em duplo sentido. Podem eventualmente ter de ceder diante de outros direitos que a eles se oponham – são limitados externamente. Trata-se de um tema amplamente tratado no âmbito da teoria dos direitos fundamentais, onde se enfrenta a questão da colisão de direitos fundamentais.

Além disso, na concepção hoje legalmente imperante em nosso sistema jurídico, o simples fato de um direito existir não significa que ele possa ser exercido de qualquer forma, atendendo ao capricho de seu titular. Os direitos possuem, portanto, limites imanentes, internos, decorrentes de sua função econômica e social1. Isto é, para que o exercício seja legítimo e mereça a proteção da lei, é necessário que observe os parâmetros fixados no art. 187 do Código Civil, dispositivo aplicável a todo e qualquer direito2, privado ou público3, material ou processual4. Ou seja, a cláusula geral do abuso do direito compreende e abarca “a todos los derechos”5. Isto é, o exercício de qualquer direito não pode exceder os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Como refere Bruno Miragem, “os limites previstos no art. 187 do CC/2002 constituem ao mesmo tempo limite e medida para o exercício dos direitos subjetivos”6.

Assim, tenho que o exercício da opção a que se refere o art. 3º, §3°, da Lei 9.099/95 e o art. 1°, parágrafo único, da Lei Estadual n° 10.675/96, de ajuizar, na justiça comum, demanda que deveria ser proposta no sistema do JEC, pode se revelar abusiva quando: 1) a demanda ajuizada é de baixa complexidade jurídica, atinente a questões envolvendo posicionamentos jurisprudenciais já sedimentados, em que a solução à lide potencialmente será a mesma, em qualquer das esferas jurisdicionais; 2) a parte autora não justifica sua opção pela justiça ordinária pelo fato de a demanda, pela sua maior complexidade, exigir o olhar mais experiente do juiz togado ao instruir e julgar o feito; 3) a parte autora ajuíza sua demanda sob o pálio da AJG, fazendo com que o custo financeiro de sua opção acabe recaindo sobre o ombro do contribuinte, sem relevante razão para tanto; 4) houver evidências de que, em razão das particularidades da divisão de trabalho entre o JEC e a justiça ordinária, na comarca competente, não haverá qualquer prejuízo para o autor com o ajuizamento da demanda junto ao JEC.

Sendo exercido dessa maneira, pelo que dispõe o art. 187 do CC, a conduta formalmente lícita (exercício de um direito previsto em lei) converte-se em seu oposto, torna-se um ato ilícito:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente7 os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Nas palavras de Fernando Augusto Cunha de Sá, autor de uma das mais profundas obras em língua portuguesa sobre o tema, no caso do abuso do direito, “o comportamento preenche na sua materialidade, in actu, a forma do direito subjectivo que se pretende exercer, mas, do mesmo passo, rebela-se contra o sentido normativo interno de tal direito, isto é, contra o valor que lhe serve de fundamento jurídico”8.

E é isso, estou convencido, que está ocorrendo em casos como o dos autos. Ou seja, tenho como patente o abuso do direito de ação, passível de justificar, então, o indeferimento da petição inicial e a disponibilização do feito à parte para que a direcione aos Juizados Especiais Cíveis.

Vejamos.

A presente ação é semelhante a milhares que tramitam na Justiça deste...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT