Acórdão nº 50510029020228210001 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Quinta Câmara Criminal, 08-08-2022

Data de Julgamento08 Agosto 2022
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Classe processualRecurso em Sentido Estrito
Número do processo50510029020228210001
Tipo de documentoAcórdão
ÓrgãoQuinta Câmara Criminal

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20002422325
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

5ª Câmara Criminal

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Recurso em Sentido Estrito Nº 5051002-90.2022.8.21.0001/RS

TIPO DE AÇÃO: Furto Qualificado (Art. 155, § 4º)

RELATOR: Desembargador IVAN LEOMAR BRUXEL

RECORRENTE: SEGREDO DE JUSTIÇA

RECORRIDO: SEGREDO DE JUSTIÇA

RELATÓRIO

Trata-se de Recurso em Sentido Estrito interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO atacando decisão proferida na 13ª Vara Criminal do Foro Central da Comarca de Porto Alegre que rejeitou a denúncia oferecida contra DENYS NAVARRO TORRES.

Requer o reconhecimento da tipicidade da conduta praticada pelo investigado, com o recebimento da denúncia e regular prosseguimento do feito.

Oferecida contrariedade.

A decisão foi mantida.

Parecer pelo provimento.

É o relatório.

VOTO

Esta a decisão que rejeitou a denúncia:

Cuida-se de denúncia com imputação a DENYS NAVARRO TORRES, estrangeiro (cubano), do crime de furto de energia elétrica (art. 155, §§ 3º e 4º, II, do Código Penal), por fato de 28.01.2020, às 10h40min, na R. Câncio Gomes, n. 330, bairro Floresta, nesta Capital (Ocorrência 05/2020/700010; IP 04/2020/700010/A).

O acusado foi preso em flagrante. Pagou fiança.

O Ministério Publico informou que o acusado não aceitou o ANPP.

Decido.

Segundo os depoimentos dos policiais civis, que relataram atuação na Operação Blecaute, e que junto com técnico da CEEE, no Mercado e Restaurante Back Soda, em vistoria autorizada pelo administrador/denunciado, constataram abastecimento ilícito de energia elétrica, por meio de ligação clandestina na rede da CEEE, sem relógio medidor do consumo, além de tampa do medidor com lacres de aferição violados (Laudo Técnico de Inspeção n.º 15699461 - evento 3, PROCUJID2, fl. 1). Consta como apurado débito, a princípio com base em arbitramento regulado pela ANEEL, a título de recuperação de consumo, compreendendo o período de setembro de 2019 a 2020, chegando-se a 5.685 kWh, e obrigação pecuniária de R$ 4.953,20. Perante a autoridade policial, o acusado disse que era locatário do estabelecimento há oito meses, o qual pertenceria a Jorge Alan Garrido da Silva Couto. Negou ter adulterado o medidor de energia e que soubesse adulteração e da ligação irregular. O proprietário, ouvido pela autoridade policial, disse que a fraude pode ter sido praticada por outro locatário.

No contexto do que se infere do inquérito, não vislumbro suficiência do fato para adequação típica, o qual se caracteriza como inadimplemento contratual e ilícito civil, ainda que constatada a fraude, que tem a autoria, de qualquer modo, pouco esclarecida. A recuperação de consumo, nesses casos, é regulada ANEEL, dispondo a fornecedora da energia elétrica dos meios cíveis cabíveis para cobrança.

Com efeito, a imputação está calcada no não pagamento de débito apurado em ação de recuperação de consumo, situação bastante corriqueira, que aporta nas vara cíveis, muitas vezes, para fins de negociação da dívida.

No ponto, o inadimplemento de uma obrigação é matéria que melhor se resolve no âmbito civil, não se equiparando o prejuízo patrimonial com responsabilidade penal, faltando, portanto, justa causa à persecução penal.

Nesse sentido, colho lições da doutrina:

A tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico. (...) Amiúde, condutas que se amoldam a determinado tipo penal, sob o ponto de vista formal, não apresentam nenhuma relevância material. Nessas circunstâncias, pode-se afastar liminarmente a tipicidade penal porque em verdade o bem jurídico não chegou a ser lesado. (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 15ª ed., pg. 51. São Paulo: Saraiva, 2010).

Cuida-se, com efeito, de situação em que não é razoável que o Direito Penal, o Estado-Polícia e o Estado-Juiz movimentem-se no sentido de atribuir relevância à hipótese de descumprimento obrigacional. O caráter eminentemente subsidiário do Direito Penal limita sua intervenção à proteção dos bens jurídicos de maior relevância e repressão de condutas de maior transcendência para a vida social, para a coletividade, notadamente para aquelas que refletem em desassossego não só da vítima, mas que exponham, ainda que indiretamente, a coletividade ao risco decorrente do fato. Em outras palavras, não cabe ao Direito Penal ocupar-se de violações a bens jurídicos já eficazmente tutelados por outros ramos do Direito (princípio da intervenção mínima ou ultima ratio), no caso, do Direito Civil.

Isso posto, rejeito a denúncia oferecida contra DENYS NAVARRO TORRES, com base no art. 395, inciso III, do CPP.

Requisite-se o laudo de lesão corporal do denunciado.

Sem custas.

Não há bens a destinar.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Com o trânsito em julgado, arquive-se.


Documento assinado eletronicamente por JOCELAINE TEIXEIRA, Juíza de Direito, em 16/3/2022, às 15:35:21, conforme art. 1º, III, "b", da Lei 11.419/2006.

E a justificativa do parecer:

No mérito, deve ser provido o pleito recursal.

O Ministério Público ofereceu denúncia imputando ao recorrido a prática do crime de furto de energia elétrica, contudo, a Magistrada entendeu que a conduta praticada era atípica, rejeitando a denúncia nos seguintes termos (Evento 4 do proc. nº 5025282-24.2022.8.21.0001):

.../...

Com efeito, diferente do que sustentado na decisão recorrida, tem-se que a conduta praticada pelo recorrido é típica, estando descrita no artigo 155, §3º do Código Penal.

Sobre o tema, Nucci1 esclarece que “para não haver qualquer dúvida, deixou o legislador expressa a intenção de equiparar a energia elétrica ou qualquer outra que possua valor econômico à coisa móvel, de modo que constitui furto a conduta de desvio de energia de sua fonte natural. Energia é a qualidade de um sistema que realiza trabalhos de variadas ordens, como elétrica, química, radiativa, genética, mecânica, entre outras. Assim, quem faz uma ligação clandestina, evitando o medidor de energia elétrica, por exemplo, está praticando furto. Nessa hipótese, realiza-se o crime na forma permanente, vale dizer, a consumação se prolonga no tempo. Enquanto o desvio estiver sendo feito, está-se consumando a subtração de energia elétrica” (grifei).

Em igual sentido esta colenda Câmara Criminal:

APELAÇÃO CRIME. FURTO DE ENERGIA ELÉTRICA QUALIFICADO PELA FRAUDE. ART. 155, §§3º E 4º, INCISO II, DO CÓDIGO PENAL. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. ATIPICIDADE DA CONDUTA NÃO VERIFICADA DE PLANO. DECISÃO DESCONSTITUÍDA. Descrevendo a denúncia fato em tese típico e havendo nos autos indícios de sua existência e autoria, impositiva a desconstituição da decisão atacada e o regular processamento do feito. Hipótese em que a conduta imputada ao apelado caracteriza, em princípio, o crime previsto no artigo 155, §§3º e 4º, inciso II, do Código Penal e não pode ser considerada irrelevante para o direito penal, mormente diante do elevado valor da res furtiva. RECURSO MINISTERIAL PROVIDO. (Apelação Crime, Nº 70076620905, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Cristina Pereira Gonzales, Julgado em: 11-04-2018) - grifei

Outrossim, a materialidade do delito restou demonstrada pelo Termo de Ocorrência de Inspeção, o qual constatou a ausência de caixa de medição, presença de lacres de aferição violados e desvio de energia junto ao ponto de entrega (evento 3, PROCJUDIC1, do proc. nº 5122755-78.2020.8.21.0001).

Presentes também os indícios suficientes de autoria, eis que o recorrido era o responsável pelo estabelecimento comercial onde constatado o furto de energia, restando, inclusive, preso em flagrante.

Assim, ficou devidamente comprovado nos autos que o recorrido praticou o crime de furto ao fazer com que a energia elétrica chegasse a seu estabelecimento comercial sem passar pelo medidor.

Portanto, a sentença vergastada merece ser reformada por esta Egrégia Corte, para que a ação penal em comento siga sua regular marcha processual.

Diante do exposto, o Ministério Público, em segundo grau, manifesta-se pelo conhecimento e provimento do presente recurso em sentido estrito.

Porto Alegre, 05 de julho de 2022.

Renato Vinhas Velasques,

Procurador de Justiça.


1 NUCCI, Guilherme de S. Código Penal Comentado. Disponível em: Minha Biblioteca, (21st edição). Grupo GEN, 2021, acesso em 04/07/2022

DENYS foi denunciado por incurso no artigo 155, §§ 3º e 4º, inciso II, do Código Penal.

O Juiz singular rejeitou a denúncia oferecida pelo Ministério Público, alegando a ausência de justa causa.

Considera-se inepta a denúncia quando esta não apresenta os...

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