Acórdão nº 50755947220208210001 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Sexta Câmara Cível, 24-11-2022

Data de Julgamento24 Novembro 2022
ÓrgãoSexta Câmara Cível
Classe processualApelação
Número do processo50755947220208210001
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Tipo de documentoAcórdão

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20002768427
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

6ª Câmara Cível

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Apelação Cível Nº 5075594-72.2020.8.21.0001/RS

TIPO DE AÇÃO: Tratamento médico-hospitalar

RELATORA: Desembargadora ELIZIANA DA SILVEIRA PEREZ

APELANTE: MIGUEL DE OLIVEIRA LANFERDINI (Absolutamente Incapaz (Art. 3º CC)) (AUTOR)

APELANTE: GISELE MACHADO DE OLIVEIRA (Pais) (AUTOR)

APELANTE: DOCTOR CLIN OPERADORA DE PLANOS DE SAUDE LTDA (RÉU)

APELADO: OS MESMOS

RELATÓRIO

Cuida-se de Recursos de Apelação interpostos por ambas as partes contra sentença que julgou parcialmente procedentes os pedidos formulados nos autos da ação ajuizada por MIGUEL DE OLIVEIRA LANFERDINI, menor impúbere representado por sua genitora, em face da DOCTOR CLIN OPERADORA DE PLANOS DE SAÚDE LTDA., na qual o demandante objetivava fosse a ré compelida a arcar integralmente com o tratamento multidisciplinar prescrito pelo seu médico assistente para o tratamento do transtorno do espectro autista, sem a cobrança de coparticipação.

Segue transcrição do dispositivo da sentença:

Isso posto, com fundamento no art. 487, inc. I, do Código de Processo Civil, resolvo pela parcial procedência da Ação de Obrigação de Fazer movida por Miguel De Oliveira Lanferdini, representado por sua mãe Gisele Machado de Oliveira, contra DOCTOR CLIN Operadora de Planos de Saúde LTDA, ratificando a antecipação de tutela outrora concedida.

Outrossim, tendo em conta o Princípio da Sucumbência, condeno as partes ao pagamento proporcional das custas processuais e aos honorários advocatícios do procurador da parte adversa, que, observados os critérios do art. 85 do CPC, fixo em R$ 1.300,00 (um mil e trezentos reais), corrigíveis pelo IGP-M (FGV) a contar do trânsito em julgado da sentença. Suspendo a exigibilidade de tal pagamento em relação ao autor, porquanto beneficiário da assistência judiciária gratuita.

Em suas razões recursais, a parte demandante alegou, em síntese, que sua família não tem como custear os atendimentos com a cobrança de coparticipação, o que se mostra abusivo, resultando em obrigação demasiadamente onerosa, a ponto de impossibilitar o acesso às terapias. Ressaltou, ainda, que sua genitora recebe R$ 1.752,00 (um mil, setecentos e cinquenta e dois reais) mensais e tem que contar com a ajuda de seus pais para arcar com as contas para sua sobrevivência e do menor. Asseverou que tal prática se revela claramente abusiva e desproporcional, colocando o consumidor em situação de extrema desvantagem, impondo-se, assim, a declaração de nulidade da cláusula contratual que assim prevê, na forma do art. 51, IV, do CDC. Aduziu que com tal atitude a Apelada inviabiliza, inclusive, o pagamento da mensalidade e, assim, força o cancelamento do plano de saúde, encontrando novas formas de negar o tratamento. Outrossim, no que tange à cobrança, afirmou que não há previsão clara e expressa acerca de coparticipação para acompanhante terapêutico, razão pela qual deve ser afastada a cobrança a tal título. Referiu que embora mantido na sentença o direito a acompanhante terapêutico na escola pela metodologia ABA, a requerida cancelou essa modalidade, a qual deve ser mantida. Postulou pelo recebimento do efeito suspensivo, para que seja restabelecido o acesso às terapias sem a cobrança de coparticipação. Por fim, requereu o provimento do recurso.

A parte ré, por sua vez, asseverou que a Terapia ABA não consta no rol de procedimentos e eventos em saúde da ANS, o qual é taxativo, consoante novo entendimento do STJ. Asseverou que não pode, então, ser compelida a custear terapia não prevista no referido rol. Nesse contexto, postulou a reforma da sentença.

Ambas as partes apresentaram contrarrazões.

Os autos subiram e foram distribuídos.

O Ministério Público ofertou parecer opinando pelo provimento do apelo do autor e pelo desprovimento do recurso da parte ré.

Após, os autos vieram conclusos para julgamento, ocasião em que fora convertido em diligência, para que a operadora do plano de saúde informasse o custos de cada sessão individualizada das terapias realizadas pelo autor.

Com a resposta, os autos retornaram conclusos para julgamento.

É o relatório.

VOTO

Eminentes Colegas.

Presentes os pressupostos de admissibilidade recursal, conheço dos Recursos de Apelação.

Conforme relatado, a matéria controvertida nos autos, devolvida a este grau de jurisdição, refere-se ao dever de cobertura, pela operadora do plano de saúde, da Terapia ABA, bem assim sobre a possibilidade de cobrança de coparticipações sobre as sessões de terapias multidisciplinares realizadas pelo autor, portador do Transtorno do Espectro Autista.

Antes de adentrar no mérito da controvérsia existente nos autos, ressalto que o atual sistema de saúde do país pode ser divido em dois subsistemas – o público, representado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), cujo financiamento, como o próprio nome diz, é público, comportando a participação das esferas da federação, gestão pública, através de serviços da rede própria de municípios, estados e União, de serviços públicos de outras áreas de governo e de serviços privados contratados ou conveniados; e o privado, que por sua vez se subdivide em dois subsetores, denominados de suplementar (planos e seguros de saúde) e liberal clássico (serviços particulares).

Na espécie, nos interessa dirimir a questão relativa ao sistema de saúde suplementar, que é composta pelos serviços financiados pelos planos e seguros de saúde, os quais possuem um financiamento privado, mas com subsídios públicos.

A despeito de a saúde suplementar ter surgido no Brasil na década de 1960, sua atividade apenas foi regulamentada em 1998, quando da edição da Lei nº 9.656/1998, que regulamenta os Planos de Saúde e as empresas deste ramo.

E, por determinação da Lei que dispõe sobre os planos de saúde, foi criada, pela Lei nº 9.961/2000, a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, que possui natureza jurídica de autarquia sob regime especial vinculada ao Ministério da Saúde, e é responsável pela regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades que garantam assistência suplementar à saúde. E, tem por finalidade promover a defesa do interesse público, regulando operadoras setoriais, inclusive as relações com prestadores de serviços e consumidores, a fim de contribuir para o desenvolvimento das ações de saúde.

O principal escopo da ANS é, portanto, regulamentar os produtos e serviços no setor de saúde suplementar, com limites e deveres expostos na Lei nº 9.565/1998.

Importante ressaltar que no artigo 10, § 4º, da Lei nº 9.656/1998 c/c o artigo 4, inciso III, da Lei nº 9.961/2000, o legislador optou por atribuir à ANS a elaboração da lista de procedimentos e eventos em saúde que constituiriam a referência básica para fins do disposto na Lei dos Planos de Saúde.

Essa opção, a toda a evidência, decorreu da preocupação do legislador com o equilíbrio atuarial dos planos e seguros de saúde, os quais devem estar assentados em planos de custeio elaborados por profissionais, segundo diretrizes definidas pelo CONSU.

O Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS propicia, a meu ver, a correta aplicação da fórmula de cálculo do preço a ser pago pelos beneficiários dos serviços de saúde, de forma que a imposição de todo e qualquer custeio de tratamentos à operadora do plano de saúde, evidentemente, afeta a sustentabilidade do plano e implica em prejuízo a toda cadeia de beneficiários.

Além disso, não cabe ao judiciário se substituir ao legislador, vez que a atribuição que tem de interpretar a lei, quando chamado para aplica-la, não o autoriza agir como se fosse legislador, acrescentando ou tirando direitos nela não previstos. Ao Judiciário cabe tão somente analisar se houve a correta aplicação do direito no caso concreto, sob pena de violar a tripartição dos poderes e suprimir a atribuição legal da ANS.

No que respeita às normas do Código de Defesa do Consumidor, mister observar o disposto no artigo 4º, que, ao estabelecer a Política Nacional das Relações de Consumo e os princípios que devem ser observados, prioriza a proteção dos interesses econômicos e a transparência e harmonia das relações de consumo – entre consumidores e fornecedores.

Logo, considerando o disposto na própria Lei consumerista, a qual se aplica apenas de forma subsidiária à Lei Especial, conforme previsão do artigo 35-G da Lei dos Planos de Saúde (EAREsp 988.070/SP), a transparência e a harmonia da relação, que deve ser interpretada como aquilo que foi previamente acordado entre as partes, deve prevalecer.

Sendo assim, nas ações como a presente devem ser observadas as coberturas definidas na Resolução Normativa nº 428/2017, atual RN nº 465/2021, da Agência Nacional de Saúde Complementar (ANS), que apresenta Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, a qual não pode prever aquelas excetuadas no artigo 10 da Lei nº 9.656/98 e, também, não pode excluir ou mitigar as hipóteses do artigo 12 do mesmo diploma legal.

In verbis:

Art. 10. É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta Lei, exceto: (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001)

I - tratamento clínico ou cirúrgico experimental; (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001)

II - procedimentos clínicos ou cirúrgicos para fins estéticos, bem como órteses e próteses para o mesmo fim;

...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT