Acórdão nº 50862468520198210001 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Sexta Câmara Cível, 26-05-2022

Data de Julgamento26 Maio 2022
ÓrgãoSexta Câmara Cível
Classe processualApelação
Número do processo50862468520198210001
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Tipo de documentoAcórdão

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20001985613
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

6ª Câmara Cível

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Apelação Cível Nº 5086246-85.2019.8.21.0001/RS

TIPO DE AÇÃO: Indenização por Dano Moral

RELATOR: Desembargador NIWTON CAES DA SILVA

APELANTE: TIAGO FERREIRA FEIJO (AUTOR)

APELANTE: ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (RÉU)

RELATÓRIO

TIAGO FERREIRA FEIJÓ ajuizou ação de indenização em face do ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, através da qual postula o pagamento de danos morais decorrentes da prisão em condições degradantes e em superlotação, no valor de R$ 60.000,00 (...). Ressaltou o julgamento do RE n. 5800252 pelo STF no sentido de que o preso submetido a situação degradante e/ou superlotação tem direito a ser indenizado. Pugnou, assim, pela procedência da ação.

Sobreveio sentença de parcial procedência da ação para o fim de condenar o requerido ao pagamento, em favor do autor, de indenização por danos morais, arbitrada em R$ 2.000,00 (...), a ser corrigida pelos índices do IPCA, desde a data da sentença, e acrescida de juros de mora, desde a citação, com base nos índices de remuneração da caderneta de poupança. Em razão do resultado do julgamento, condenou o autor ao pagamento de 70% do valor das custas processuais e dos honorários advocatícios do patrono da parte ré, arbitrado em 10% sobre o valor da causa. O restante das custas seria suportado pelo Estado não fosse a isenção prevista no artigo 5º da Lei nº 14.634, de 15 de dezembro de 2014. Ainda, condenou Estado ao pagamento de honorários ao procurador da parte autora, arbitrados em 10% sobre o valor da condenação (evento 02 doc 3 páginas 363-368).

A parte autora apelou aduzindo a necessidade de majoração do quantum indenizatório. Requereu, assim, o provimento do recurso (evento 2 doc 4 páginas 1-4).

A parte ré apelou aduzindo a ausência de responsabilidade subjetiva do Estado. Asseverou ser injustificável atribuir ao preso, que está num ambiente de risco por fato próprio, um seguro absoluto, ainda mais que, muitas vezes, são os próprios autores da depredação do ambiente no qual recolhidos. Sustentou que a concessão de indenização de maneira individualizada a cada detento submetido à superlotação e a outras agruras que permeiam nossos estabelecimentos carcerários, quando muito, servirá tão só para drenar e canalizar escassos recursos públicos, não contribuindo para efetiva solução do problema de maneira global e em favor da coletividade dos prisioneiros. Defendeu que a pretensão, não se atém ao princípio da reserva do possível. Discorreu acerca da impossibilidade de aplicação do Tema nº 365 do STF e sobre a situação atual do sistema carcerário gaúcho. Mencionou a ausência dos pressupostos do dever de indenizar. Subsidiariamente, pugnou pela redução do quantum indenizatório e pela isenção do ente público do pagamento das custas processuais. Requereu, por fim, o provimento do recurso (evento 2 doc 4 páginas 24-50).

Apenas a parte ré apresentou contrarrazões (evento 2 doc 4 páginas 10-20).

O Ministério Público manifestou-se no evento 08.

Os autos vieram conclusos em 25 de março de 2022.

É o relatório.

VOTO

Eminentes colegas. Trata-se, consoante positivado no sumário relatório, de ação de indenização através da qual a parte autora postula o pagamento dos danos morais advindos da superlotação e das condições degradantes a que submetido em cumprimento de pena no Presídio Central de Porto Alegre - PCPA, julgada parcialmente procedente na origem.

Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço dos recursos.

A questão é tormentosa e daquelas mais complexas submetidas a julgamento, não pelo aspecto jurídico-legal, cujo desate é até simples, mas, sobretudo pelo conteúdo humanitário e de resgate do mínimo de dignidade existencial da pessoa humana que transborda dos autos e que aflige essa massa invisível que são os presidiários, tema que não arrasta, reconheço, a simpatia popular e acarreta desprezo de parcela significativa da comunidade, inclusive de pessoas com destacado discernimento.

A verdade, inescondível e crua, é que a sociedade quer sangue e não tem a menor paciência e tolerância com os direitos alheios, menos ainda dos marginalizados, pior ainda, se se tratar de direito dos presos. “Eles que padeçam, sofram e morram à míngua”, pois estão lá “por fato próprio”. Mal se percebe que esse tipo de gesto, de desprezo está retornando na outra via, em alta velocidade, pois os presos estão ficando cruéis, destemidos, verdadeiros animais e, amanhã, estarão povoando de novo nossas ruas distribuindo em doses progressivas essa mesma violência recebida e potencializada.

Essa nossa cegueira social vai custar muito caro no futuro, disso não tenho dúvida.

A questão trazida a lume no presente julgamento, como já disse, diz com ação proposta por apenado em que reclama indenização por danos morais em face das condições precárias e desumanas do Presídio Central de Porto Alegre - PCPA, no período em que lá esteve preso, com destaque para: a) superlotação carcerária; b) falta de controle estatal; c) desassossego em face da violência; d) celas em tamanho ilegal e impróprio em desacordo com a LEP; e) insalubridade do ambiente; f) insetos e baratas, fezes e dejetos humanos correndo nos corredores e pátios.

Reconheço a robustez dos argumentos lançados na sentença, é justamente o que me move a conceder a indenização postulada na exordial, pois o fato é que o autor está preso, é apenado, está custodiado e colocado sob a responsabilidade do Estado e, por conta disso, o apenado e presidiário não tem condições de pessoalmente modificar a realidade que lhe é imposta pelo cárcere e não importa porque razão o sujeito está preso, se cometeu crime grave, médio, violento, com ameaça, sem ameaça, com morte ou sem morte. O fato é que o sujeito está preso, custodiado e contido, e o responsável por essa condenação ou prisão foi o Estado. Logo, o Estado é responsável por tudo que lhe acontece a contar do encarceramento, na medida em que o sujeito está preso e submetido à ação estatal e o Estado, somente ele, é responsável pelo mínimo existencial do preso, conforme reza a Carta Magna.

Outra assertiva que precisa ser espanada, a meu juízo, para bem aferir a questão central colocada no processo, é a de que desimporta, ao menos na minha ótica, para fins da pretensão deduzida, que o sujeito-autor está preso “por fato próprio”. É claro que foi ele o culpado e o único responsável por estar preso e encarcerado, disso não pende a menor dúvida, nem será neste processo que se discutirá essa responsabilização. Se assim não fosse, ele não teria sido condenado, preso e censurado pelo Estado. Contudo, essa situação não justifica o desleixo ou as agruras desumanas a ele impostas por obra da inércia estatal, fartamente comprovada nos autos, até porque, não se perca de vista, é a Constituição Federal que não permite a pena de morte, a prisão perpétua, a imposição de penas cruéis e de trabalhos forçados. E a Constituição, conforme diz o preâmbulo, é fruto e resultante da vontade do povo brasileiro representado em Assembléia Nacional Constituinte livre e soberana.

Outra questão que precisa ser afastada, de modo preliminar, muito utilizada como força de retórica, é a crise estatal institucionalizada como fator de precarização dos serviços públicos essenciais, seja na saúde, educação e segurança, para dizer o mínimo, que denigrem, humilham e desassistem o cidadão honesto e trabalhador, cujas demandas seriam prioritárias às do preso. Esse juízo de valor é particularmente perigoso e perverso, com todo respeito. As deficiências gerais dos serviços públicos essenciais, acima aludidos, ingressam justamente na responsabilização estatal por omissão genérica, que de fato agridem a sociedade e ao cidadão e a cada individuo individualmente considerado, mas exigem demonstração probatória caso a caso para serem aptas a gerar indenização. Afora isso, destarte, o cidadão livre tem múltiplas alternativas para complementar os deveres estatais precários, alternativa inexiste ao preso e custodiado. Afora isso, a mensuração desigual das prioridades dos deveres do Estado em relação ao cidadão honesto e ao cidadão preso, me parece desumana e implica em reconhecer no preso um individuo menor ou uma subespécie humana, o que é incompatível com o Sistema Jurídico vigente que prega por igualizar a todos, indistintamente, por isso registro o perigo do preconceito com o indivíduo segregado.

A análise do caso telado, concessa vênia, deve ser despida justamente desses “pré” conceitos que estão introjetados na sociedade em que os presos, por terem cometido “alguma espécie” de crime não “merecem” um tratamento mínimo existencial, pois estão recolhidos ao cárcere “por fato próprio”. Esse pensamento, a meu sentir, embora caia no gosto popular, é transbordante de desumanidade e viola frontalmente o sistema legal vigente e rasga o Texto Constitucional, ainda em pleno vigor.

1) DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO -

Não pairam dúvidas, de que o Estado é responsável pela guarda e segurança das pessoas submetidas a encarceramento, enquanto permanecem detidas. É seu dever mantê-las em condições carcerárias com mínimos padrões de humanidade. Esse me parece o nó górdio da questão debatida.

Afinal, o Estado, ciente das péssimas condições de detenção, envia pessoas a cárceres superlotados e insalubres. Ainda que assim não fosse, a definição da natureza da responsabilidade civil no caso deve considerar a particularidade de que os presos se encontram sob a custódia do Estado. Nessa situação, submetem-se inteiramente ao controle do poder público e dependem de agentes estatais para quase todos os aspectos de sua vida, inclusive para o atendimento de suas necessidades mais básicas e para sua...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT