Acórdão nº 51176392320228210001 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Vigésima Terceira Câmara Cível, 28-02-2023

Data de Julgamento28 Fevereiro 2023
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Classe processualApelação
Número do processo51176392320228210001
Tipo de documentoAcórdão
ÓrgãoVigésima Terceira Câmara Cível

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20003182460
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

23ª Câmara Cível

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Apelação Cível Nº 5117639-23.2022.8.21.0001/RS

TIPO DE AÇÃO: Empréstimo consignado

RELATORA: Desembargadora KATIA ELENISE OLIVEIRA DA SILVA

APELANTE: JANE EIRE SOUZA LEMOS (AUTOR)

APELANTE: PORTOCRED SA CREDITO FINANCIAMENTO E INVESTIMENTO (RÉU)

APELADO: OS MESMOS

RELATÓRIO

Trata-se de recursos de apelação interpostos em face da sentença proferida nos autos da ação revisional de contrato que JANE EIRE SOUZA LEMOS move contra PORTOCRED SA CREDITO FINANCIAMENTO E INVESTIMENTO, cujo relatório e dispositivo transcrevo abaixo:

Vistos.

JANE EIRE SOUZA LEMOS propôs ação revisional de contrato bancário contra PORTOCRED S.A. CREDITO, FINANCIAMENTO E INVESTIMENTO.

A parte autora da ação revisional afirmou ter celebrado contrato de empréstimo pessoal nº 3815029711 com a instituição financeira ré. Alegou que no decorrer do contrato houve excesso na cobrança de juros remuneratórios, pelo que requereu a procedência da ação para revisá-lo, a descaracterização da mora, a compensação dos valores e a repetição do indébito em dobro.

Foi deferida a gratuidade judiciária.

Citado, o réu contestou. Suscitou prefacial de ilegitimidade passiva em razão da impossibilidade de readequar os descontos. Sustentou, no mérito, que o contrato foi livremente pactuado pela parte autora, inexistindo qualquer abusividade nas cláusulas ajustadas. Requereu a improcedência da ação.

Sobreveio réplica.

Relatei.

[...]

Pelo exposto, defiro os pedidos liminares e JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTES os pedidos formulados pela parte autora para o fim de limitar os juros remuneratórios do contrato de empréstimo nº 3815029711 à taxa média de mercado à época da contratação (1,31% a.m.), bem como descaracterizar a mora da parte autora, condenando o réu à devolução dos valores cobrados em excesso, subtraindo-os, se for o caso, das parcelas vincendas, com a repetição simples do indébito caso exista crédito em favor da parte autora após a compensação dos valores. O valor deverá ser corrigido monetariamente pelo IPCA a contar de cada desembolso, acrescido de juros moratórios de 1% ao mês a partir da citação.

Considerando a sucumbência que toca à parte autora, decorrente da ausência de prova da má-fé, o decaimento é mínimo, a ensejar a condenação da parte demandada ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios ao procurador da parte adversa, fixados em R$1000,00 (um mil reais).

Em suas razões (evento 27, APELAÇÃO1), a parte autora defende a impossibilidade de compensação com parcela vincenda e seu direito à repetição em dobro dos valores pagos a maior. Pede a majoração da verba honorária.

Em suas razões (evento 32, APELAÇÃO1), a instituição financeira aduz a nulidade da sentença por ausência de fundamentação e afirma a legalidade dos juros remuneratórios, afirmando inaplicável a taxa média de mercado para a situação em apreço. Tece considerações acerca do risco compreendido no crédito concedido à parte recorrida. Insurge-se contra a compensação e repetição, requerendo, em caso de manutenção da sentença, a utilização da taxa SELIC. Pede a redução da verba honorária. Postula pelo provimento de sua irresignação.

Apresentadas contrarrazões (evento 36, CONTRAZ1 e evento 40, CONTRAZAP1), vieram os autos conclusos a este Tribunal de Justiça para julgamento.

É o relatório.

VOTO

Preenchidos os requisitos legais, conheço dos recursos.

Preliminarmente, no que se refere à alegação de nulidade da sentença por ausência de fundamentação, não prospera a irresignação, vez que o julgado impugnado apresenta adequada exposição de seus motivos e tem suas conclusões amparadas nos elementos fáticos e jurídicos que permearam a discussão durante todo o curso da lide. Por consequência, sem que se possa falar em qualquer nulidade, vai afastada, de plano, a prejudicial.

Da possibilidade de revisão contratual.

Toda relação jurídica formada a partir de um acordo de vontades válido e eficaz é regida pelo princípio da obrigatoriedade dos contratos. Princípio que confere ao pacto força de lei entre as partes e que garante sua não violação em decorrência de dificuldades comezinhas de cumprimento ou, em outras palavras, por fatores externos plenamente previsíveis. Por essa razão, apenas a ocorrência de situações excepcionais, em que configurada circunstância imprevisível ao tempo da pactuação ou causa de abusividade notória, legitima a revisão judicial.

Inobstante, nos casos em que o ajuste decorre de adesão a termos prévia e unilateralmente estipulados pela instituição financeira, indiscutível é a incidência do Código de Defesa do Consumidor a essa análise a par do disposto na Súmula 297 do STJ1, o que, por certo, importa em alguns temperamentos à teoria geral dos contratos, em face do reconhecimento da hipossuficiência da parte aderente. Sob este prisma, no que pertine à limitação dos juros remuneratórios, o Superior Tribunal de Justiça2, a quem compete a uniformização da interpretação da legislação federal, sedimentou o entendimento no sentido de que é livre a pactuação dos juros entre as partes, salvo em caso de abusividade categoricamente demonstrada. Quanto ao ponto, para fins de melhor compreensão da solução adotada, já há mais de uma década, pela Corte Superior, pertinente a transcrição da elucidativa digressão histórica do controle dos juros no Brasil, traçada, em sede doutrinária, pelo Desembargador Paulo de Tarso Vieira Sanseverino:

[...]. A limitação dos juros por ato normativo estatal tem-se constituído em matéria das mais controvertidas ao longo da história da economia, com reflexos nos ordenamentos jurídicos antigos e modernos. [...] No direito brasileiro, a limitação dos juros por ato legislativo também tem apresentado sucessivos processos de sístole e diástole, conforme o momento político-ideológico vivenciado pelo País. No início do século XX, época da gestação do Código Civil de 1916, predominava a orientação ideológica liberal, que preconizava uma intervenção mínima do Estado no domínio econômico (Estado liberal). Por isso, no Código Civil de 1916, a regra estabelecida pela 2ª parte do art. 1.262 [...] conferia aos contratantes ampla liberdade negocial para estipulação dos juros e da periodicidade de sua capitalização. Os anos que se seguiram à vigência do CC/ 1916, no período compreendido entre as duas grandes guerras, constitui época de grande turbulência econômica e política em todo o mundo, especialmente na Europa, sendo um período de profundas modificações ideológicas no plano sociopolítico. [...]. No Brasil, a chamada Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas, abre espaço para um regime político fortemente intervencionista, que culmina com o Estado Novo, instituído em 1937. Na década de trinta surge, no Brasil, o Decreto 22.626, de 07.04.1933, que passou a ser chamado de Lei de Usura, pois, em seu art. 1º, limitou a pactuação máxima de juros remuneratórios em contratos ao dobro da taxa legal, que era estabelecida pelo art. 1.062 do Código Civil de 1916. Ou seja, os juros remuneratórios máximos passaram a ser de 12% ao ano. E o art. 4º permite apenas a capitalização anual dos juros. [...]. Em 1964, após o golpe militar, uma das medidas preconizadas foi a reestruturação do sistema financeiro nacional para solucionar a grave crise econômica e para estimular o desenvolvimento do País. Assim, a Lei 4.595, de 31.12.1964, estabeleceu normas para reestruturação e regulamentação do sistema financeiro nacional, atribuindo ao Conselho Monetário Nacional (art. 4º) e ao Banco Central do Brasil (art. 8º e ss.) amplos poderes para o controle das atividades das instituições financeiras nacionais, inclusive, “limitar, sempre que necessário, as taxas de juros, descontos, comissões e qualquer outra forma de remuneração de operações e serviços bancários ou financeiros” (art. 4º, IX). A partir desse regramento da Lei 4.595/64, passou-se a discutir se as instituições financeiras estariam submetidas às normas da Lei da Usura (Decreto 22.626/33). Após longo debate jurisprudencial, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 596 com o seguinte teor: “As disposições do Dec. 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas que integram o sistema financeiro nacional”. A jurisprudência dominante consolidou-se no sentido do entendimento de que os contratos celebrados por instituições financeiras não estavam submetidos aos ditames da Lei da Usura, embora esta continuasse em vigor para todos os demais negócios celebrados por outros setores da vida econômica3. [...].

Restou, assim, completamente rechaçada a tese da aplicabilidade da Lei de Usura aos contratos bancários, conforme decidido no julgamento do recurso representativo de controvérsia, REsp 1.061.530/RS4, pela Terceira Turma sob relatoria da Ministra Nancy Andrighi. Posteriormente, o Código Civil trouxe novo colorido à questão, inserindo disposição expressa acerca da limitação dos juros em seu artigo 5915, cuja interpretação integrada aos artigos 4066, do mesmo diploma, e 161, § 1º7, do Código Tributário Nacional conduz à conclusão de que o limite da taxa de juros remuneratórios passou a ser de 12% ao ano. Entretanto, por se tratar de norma de caráter geral, o novo estatuto não derrogou os preceitos contidos na Lei 4.595/64, que, em virtude do critério da especialidade das normas, continuou a reger os negócios jurídicos celebrados por instituições financeiras, mantendo-se, assim, atual a Súmula 596 do Supremo Tribunal Federal8.

Ademais, a orientação da inaplicabilidade da limitação legal de 12% ao ano aos contratos bancários foi sufragada pelo Superior Tribunal de Justiça, mesmo após o advento do...

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