Acórdão nº 51231853020208210001 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Primeira Câmara Criminal, 03-08-2022
Data de Julgamento | 03 Agosto 2022 |
Tribunal de Origem | Tribunal de Justiça do RS |
Classe processual | Apelação |
Número do processo | 51231853020208210001 |
Tipo de documento | Acórdão |
Órgão | Primeira Câmara Criminal |
PODER JUDICIÁRIO
Documento:20002476665
1ª Câmara Criminal
Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906
Apelação Criminal Nº 5123185-30.2020.8.21.0001/RS
TIPO DE AÇÃO: Homicídio qualificado (art. 121, § 2º)
RELATOR: Desembargador MANUEL JOSE MARTINEZ LUCAS
APELANTE: SEGREDO DE JUSTIÇA
APELADO: SEGREDO DE JUSTIÇA
RELATÓRIO
Na Comarca de Santa Maria, Elissandro Callegaro Spohr, alcunha "Kiko", 31 anos à época dos fatos, Mauro Londero Hoffmann, 47 anos à época dos fatos, Marcelo de Jesus dos Santos, 32 anos à época dos fatos, e Luciano Augusto Bonilha Leão, 35 anos à época dos fatos, foram denunciados como incursos nas sanções do art. 121, § 2º, incisos I e II (241 vezes) e do art. 121, § 2º, incisos I e II, na forma do art. 14, inciso II, do art. 29, caput, e do art. 70, primeira parte, (636 vezes), todos do Código Penal.
A peça acusatória, recebida em 03/04/2013 (p. 7/17, contidas no evento 13 - PROCJUDIC162 da ação penal), é do seguinte teor:
“1) Homicídios consumados e tentados:
No dia 27 de janeiro de 2013, por volta das 03h15min, na Rua dos Andradas, n° 1.925, Bairro Centro, em Santa Maria, nas dependências da boate Kiss, os denunciados ELISSANDRO, MAURO, MARCELO e LUCIANO AUGUSTO, em conjunção de esforços e comânimos convergentes, mataram as pessoas nominadas no ANEXO 1 (clientes e funcionários da boate), causando-lhes as lesões descritas nos respectivos autos de necropsia, os quais consignam morte por asfixia por inalação de gases tóxicos (monóxido de carbono e cianeto) e queimaduras.
Nas mesmas circunstâncias de tempo, lugar e modo de - execução descritas acima, os denunciados ELISSANDRO, MAURO, MARCELO e LUCIANO AUGUSTO deram início ao ato de matar as vítimas relacionadas no ANEXO I Ws 242 a 877, no mínimo), o que não se consumou por circunstâncias alheias aos atos voluntários que praticaram, pois as vítimas sobreviventes conseguiram sair ou foram retiradas com vida da boate, sendo submetidas, outras tantas, a tratamento médico eficaz.
Na ocasião, durante uma festa de universitários denominada "Agromerados", houve a realização do show da banda "Gurizada Fandangueira", tendo todos os denunciados concorrido, conforme adiante descrito, para a utilização de um fogo de artifício identificado como "Chuva de Prata 6" (laudo pericial n° 12268/2013, fls. 5757 a 5918 do anexo XXVII do IP, mais especificamente fls. 5836 a 5840), cujas centelhas entraram em contato com a espuma altamente inflamável (laudo pericial nº 15209/2013, fls. 5685 a 5692 do anexo XXVI) que revestia parcialmente paredes e teto do estabelecimento, principalmente junto ao palco, desencadeando fogo e emissão de gases tóxicos, que foram inalados pelas vítimas, as quais não conseguiram sair do prédio a tempo em razão das péssimas condições de segurança e evacuação do local, acabando intoxicadas pela fumaça.
As vítimas foram surpreendidas pelo fogo em seu momento de diversão, sem saber que estavam dentro de um verdadeiro "labirinto", pois a boate dispunha de uma única porta, não apresentava saída adequada ou sinalização de emergência, sendo que a disposição das paredes e das grades supostamente orientadoras de fluxo formaram "bretes" que inviabilizaram a evacuação, ficando as vítimas sem saber para onde fugir, muitas delas acabando por ingressar em um dos banheiros, de onde não puderam escapar, por confundi-lo com uma possível saída.
1.1) Individualização das condutas:
Os denunciados MAURO e ELISSANDRO concorreram para o crime, implantando em paredes e no teto da boate espuma altamente inflamável e sem indicação técnica de uso, contratando o show descrito, que sabiam incluir exibições com fogos de artifício, mantendo a casa noturna superlotada, sem condições de evacuação e segurança contra fatos dessa natureza, bem como equipe de funcionários sem treinamento obrigatório, além de prévia e genericamente ordenarem aos seguranças que impedissem a saída de pessoas do recinto sem pagamento das despesas de consumo na boate, revelando total indiferença e desprezo pela vida e pela segurança dos frequentadores do local, assumindo assim o risco de matar.
Os denunciados LUCIANO e MARCELO concorreram para os crimes, pois, mesmo conhecendo bem o local do fato, onde já haviam se apresentado, adquiriram e acionaram fogos de artifício identificados como "Sputnik" e "Chuva de Prata 6", que sabiam se destinar a uso em ambientes externos, e direcionaram este último, aceso, para o teto da boate, que distava poucos centímetros do artefato, dando início à queima do revestimento inflamável e saindo do local sem alertar o público sobre o fogo e a necessidade de evacuação, mesmo podendo fazê-lo, já que tinham acesso fácil ao sistema de som da boate; assim é que revelaram total indiferença com a segurança e a vida das pessoas, assumindo o risco de matá-las.
1.2) O dolo eventual:
Os denunciados ELISSANDRO, MAURO, MARCELO e LUCIANO AUGUSTO assumiram o risco de produzir mortes das pessoas que estavam na boate, revelando total indiferença e desprezo pela segurança e pela vida das vítimas, pois, mesmo prevendo a possibilidade de matar pessoas em razão da falta de segurança, não tinham qualquer controle sobre o risco criado pelas diversas condições letais da cadeia causal, a saber:
a) o fogo de artifício era sabidamente inapropriado para o local, pois se destinava a uso externo (laudo pericial n° 12268/2013, fls. 5757 a 5918 do anexo XXVII do IP, mais especificamente fls. 5836 a 5840);
b) o ambiente também era visivelmente inapropriado para shows desse tipo, pois, além de conter madeira e cortinas de tecido (laudo pericial n° 12268/2013, fls. 5757 a 5918 do anexo XXVII do IP, mais especificamente fl. 5819), a espuma usada como revestimento do palco era altamente inflamável e tóxica, sem qualquer tratamento antichama (laudo pericial n° 15209/2013, fls. 5685 a 5692 do anexo XXVI);
c) apesar dessas condições, o fogo de artifício foi acionado no palco, perto das cortinas e a poucos centímetros da espuma que revestia o teto (laudo pericial n° 12268/2013, fls. 5757 a 5918 do anexo XXVII do IP, mais especificamente fls. 5910 e 5916);
d) consoante imagens, testemunhas e somatório do número de vítimas, a boate estava superlotada, com número de pessoas bem superior à capacidade pericialmente apurada (laudo pericial n° 12268/2013, fls. 5757 a 5918 do anexo XXVII do IP, mais especificamente fl. 5914);
e) a boate não apresentava saídas alternativas ou sinalização de emergência adequada (laudo pericial n° 12268/2013, fls. 5757 a 5918 do anexo XXVII do IP, mais especificamente fls. 5911 e 5912);
f) a única saída disponível apresentava dimensões insuficientes para dar vazão às pessoas;
g) a única saída disponível estava obstruída por obstáculos de metal do tipo guarda-corpo que restringiam significativamente a passagem (laudo pericial n° 12268/2013, fls. 5757 a 5918 do anexo XXVII do IP, mais especificamente fls. 5896, 5897 e 5901);
h) os funcionários da boate não tinham treinamento para situações de emergência;
i) os seguranças da boate dificultaram a saída das vítimas nos primeiros instantes do fogo, cumprindo ordem prévia e geral dos proprietários ora denunciados, em razão do não pagamento da despesa;
j) os exaustores estavam obstruídos, impedindo a dispersão da fumaça tóxica, que acabou direcionando-se para a saída, justamente onde as pessoas se aglomeraram para tentar deixar o prédio.
1.3) Qualificadoras:
Os crimes foram cometidos mediante meio cruel, haja vista o emprego de fogo e a produção de asfixia nas vítimas.
Os crimes foram praticados por motivo torpe, ganância, pois ELISSANDRO e MAURO, além de economizarem com a utilização de espuma inadequada como revestimento acústico e não investirem em segurança contra fogo, também lucraram com a superlotação do estabelecimento, chegando a desligar o sistema de ar condicionado para aumentar o consumo de bebidas; também por ganância, MARCELO e LUCIANO adquiriram o fogo de artifício indicado para uso externo (cerca de R$ 2,50), por ser bem mais barato que o indicado para uso em ambientes internos (cerca de R$ 50,00).
2) Crimes conexos:
2.1) Fraude processual:
Entre os dias 27 e 29 de janeiro de 2013, em horário não apurado, por primeiro na Rua das Açucenas, n2 139, Bairro Patronato, residência e local de trabalho de Josy Maria Gaspar Enderle, depois na sede do 42 Comando Regional de Bombeiros (CRB), na Rua Coronel Niederauer, n° 890, em Santa Maria, os denunciados GÉRSON e RENAN, bombeiros, em comunhão de esforços e vontades, na pendência de processo administrativo, qual seja, o inquérito policial que apurava a tragédia na boate Kiss, inovaram artificiosamente o estado de coisas, mais precisamente documentos, inovação destinada a produzir efeito em processo penal, ainda não iniciado, com o fim de induzir a erro o Juiz, assim como os operadores do direito que atuariam na persecução penal.
Na primeira ocasião, em razão de entrevistas concedidas à imprensa pelo Comando dos Bombeiros com estimativa de que a capacidade da boate Kiss fosse em torno de 1000 (mil) pessoas, a engenheira Josy Maria Gaspar Enderly contatou com o denunciado RENAN, de quem tinha o número de telefone, e esclareceu a ele que, por ter feito projeto técnico de Plano de Prevenção Contra Incêndio (PPCI) para a boate Kiss em época próxima ao início do funcionamento e calculara que a capacidade seria de 691 (seiscentas e noventa e uma) pessoas; RENAN deslocouse até a casa de Josy e, junto à filha desta, obteve via impressa daquele cálculo, bem como de croqui retratando a planta baixa da boate; a partir de então, o Comando da Brigada Militar e dos Bombeiros, em entrevista coletiva à imprensa, retificou a informação sobre a capacidade da boate.
Assim é que, na segunda data especificada, face a solicitação dos Delegados de Polícia responsáveis...
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