Acórdão nº 71010366839 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Turma Recursal Criminal, 21-03-2022
Data de Julgamento | 21 Março 2022 |
Órgão | Turma Recursal Criminal |
Classe processual | Apelação |
Número do processo | 71010366839 |
Tribunal de Origem | Turmas Recursais |
Tipo de documento | Acórdão |
PODER JUDICIÁRIO
LGZP
Nº 71010366839 (Nº CNJ: 0003850-03.2022.8.21.9000)
2022/Crime
POSSE DE ENTOECENTES. ART. 28 DA LEI 11.343/06. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. TIPICIDADE DA CONDUTA. A posse de substância entorpecente, mesmo que em pequena quantidade, no caso 0,479g de crack, é conduta típica prevista no art. 28 da Lei 11.343/06. A não cominação de pena privativa de liberdade não equivale à descriminalização da conduta, revelando apenas opção legislativa de recuperação e reinserção social do indivíduo. Conduta passível de causar dano ao bem jurídico tutelado, o que afasta os argumentos da autolesão e da insignificância penal da conduta. RECURSO PROVIDO.
Recurso Crime
Turma Recursal Criminal
Nº 71010366839 (Nº CNJ: 0003850-03.2022.8.21.9000)
Comarca de Osório
MINISTERIO PUBLICO
RECORRENTE
LUIS FERNANDO MONTEIRO
RECORRIDO
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Juízes de Direito integrantes da Turma Recursal Criminal dos Juizados Especiais Criminais do Estado do Rio Grande do Sul, à unanimidade, em dar provimento ao recurso.
Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores Dr. Edson Jorge Cechet (Presidente e Revisor) e Dr. Luiz Antônio Alves Capra.
Porto Alegre, 21 de março de 2022.
DR. LUIS GUSTAVO ZANELLA PICCININ,
Relator.
RELATÓRIO
O Ministério Público interpõe recurso de apelação da decisão que reconheceu, em controle difuso, a inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/06 e rejeitou a denúncia oferecida contra Luís Fernando Monteiro pela prática do delito de posse de entorpecentes para consumo próprio, com fundamento legal no art. 395, III, do CPP.
O recorrente sustenta a constitucionalidade e a tipicidade da conduta, que não foi descriminalizada pelo advento da atual Lei de Drogas e que afeta o bem jurídico tutelado pela norma, independentemente da quantidade apreendida, pois é conduta que fomenta e expande o narcotráfico e uma miríade de outros crimes de lesividade social acentuada. Requer a reforma da decisão e o prosseguimento do feito.
O Ministério Público, nesta instância recursal, opinou pelo provimento do recurso.
VOTOS
Dr. Luis Gustavo Zanella Piccinin (RELATOR)
Conheço do recurso, pois cabível, adequado e tempestivo. Além disso, não há fato impeditivo ? renúncia ou preclusão ? ou extintivo ? desistência ou deserção ?, sendo formalmente regular. Presentes, também, os requisitos subjetivos de admissibilidade, quais sejam, a legitimidade e o interesse recursal.
O delito imputado ao denunciado é o previsto no artigo 28, caput, da Lei 11.343/06, uma vez que ele trazia consigo duas pedras de crack, pesando 0,479g, consoante laudo toxicológico da fl. 11, sem autorização e em desacordo com determinação legal.
É caso de provimento do recurso.
Esta Turma Recursal vem sustentando que a posse de entorpecentes para uso próprio configura a conduta ilícita prevista no artigo 28 da Lei de Drogas, independentemente da quantidade apreendida, por afetar o bem jurídico tutelado, que é a saúde pública, não configurando hipótese de autolesão. Pelo mesmo fundamento, afasta-se a aplicação do princípio da insignificância aos delitos da espécie, uma vez que esta não reside na quantidade da substância apreendida, mas na sua potencialidade lesiva, com todas as consequências pessoais e de fomento da macrocriminalidade que a conduta enceta.
Não é de hoje nem recente o debate que se dá quanto ao bem juridicamente tutelado no que diz respeito ao aparente conflito entre a liberdade individual do consumidor de entorpecente e o móvel político-legislativo que autoriza a punição do usuário de drogas, justamente legitimada a ação do Estado no interesse em preservar (e coibir) a lesão a bem jurídico de caráter supraindividual, que transcende a figura do simples usuário e da mera ótica da lesão quanto ao plano das liberdades individuais.
Fora de dúvida está que o usuário de drogas não é propriamente um criminoso ? senão que colateralmente fomenta o crime ? e, na mais das vezes, vê o vício impelir-lhe ao consumo da droga. Nesse contexto, a opção legislativa brasileira da Lei 11.343/2006 foi de inequívoco acerto, pois, sem perder o foco de que a conduta do usuário é que, em última análise, fomenta o tráfico, criou mecanismos para abrandar as sanções cominadas aos usuários de drogas, afastando a necessidade de aplicação de penas privativas de liberdade, prevendo, apenas, as sanções de advertência, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo, de modo a possibilitar a recuperação dos usuários. Note-se a aparente sutileza, de felicidade extremada do legislador: - se por um lado é certo não ser o usuário propriamente um criminoso, por outro não há como considerá-lo somente uma vítima da droga, ou um doente, pois é seu vício que alimenta toda a indústria bilionária do tráfico, com seus vertentes corretados, como homicídios daí decorrentes, lavagem de dinheiro e toda a sorte de crimes financeiros, que servem para a manutenção de poder e para viabilizar a funcionalidade, garantir territórios e a operacionalidade da indústria da droga. Assim, quanto ao usuário, a intenção do legislador foi a de impor a ele medidas de caráter educativo, objetivando alertá-lo sobre o risco de sua conduta para a própria saúde, além de evitar a reiteração do delito.
Nem a discussão que se dá atualmente no STF, em que se pretende descriminalizar a conduta do consumidor (REXt 635.659/SP), desmerece o mérito da lei. Antes pelo contrário. Os dispositivos conhecidos lançados na conclusão dos votos dos Min. Gilmar Mendes e Min. Edson Fachin, que são no sentido diametralmente oposto a este voto, descriminalizando a conduta, portanto, são expressos em manter o texto da atual legislação, especialmente no que tange à submissão do usuário àquelas medidas previstas no artigo 28 da Lei 11.343/06. Ora, então do que estamos tratando exatamente aqui?! Tão e apenas somente de decidir qual o juízo para aplicá-las: o cível ou o criminal, já que mesmo no reconhecimento da inconstitucionalidade vingar, o usuário não deixará de ser submetido àquelas medidas não-privativas de liberdade do artigo 28 da Lei. Lembro e reitero que nenhuma das penalidades ali previstas será convertida em prisão e, no tocante à advertência, deve seguir a mesma sorte da pena de multa para fins de não gerar reincidência, aplicando-se-lhe o texto do artigo 84, parágrafo único, da Lei 9.099/95: ?Art. 84. Aplicada exclusivamente pena de multa, seu cumprimento far-se-á mediante pagamento na Secretaria do Juizado. Parágrafo único. Efetuado o pagamento, o Juiz declarará extinta a punibilidade, determinando que a condenação não fique constando dos registros criminais, exceto para fins de requisição judicial?. É inevitável conciliar a intenção do legislador em desencarcerar o consumidor de drogas, tratando-o como doente ? tanto que nunca se aplica a ele medida de prisão ? e por igual não considerar aquele que pratica delito de menor potencial ofensivo que resulte em multa, aí incluída a posse de droga, como reincidente, não se constando a condenação para qualquer fim. Se a pena maior, a ?multa? não gera registro desabonatório que gere reincidência, mais razão ainda que a advertência, medida não-penal ?menor?, prevista no inciso I do artigo 28 também não gere antecedente ou reincidência.
Trago a baila, por pertinente, a discussão que se travou no HC 104.410, julgado pelo STF, no qual o Ministro Relator Gilmar Mendes, realizando uma digressão quanto aos níveis de intensidade do controle de leis penais, faz referência ao caso Cannabis (BVerfGEe 90,145), julgado pela Corte alemã, em que o Tribunal confirmou a constitucionalidade da tipificação penal da aquisição e porte para consumo de produtos derivados da planta canabis sativa, onde justamente o que se discutia era a existência de autolesão ou de lesão coletiva, que justificasse a criminalização do uso da droga.
Sob o ponto de vista material, ressalvadas as garantias constitucionais especiais, o princípio da proporcionalidade oferece o parâmetro geral constitucional, segundo o qual a liberdade de ação pode ser restringida [cf. BVerfGE 75, 108 (154 s.); 80, 137 (153)]. Esse princípio tem um significado mais intenso no exame de um dispositivo penal, que, enquanto sanção mais forte à disposição do Estado, expressa um juízo de valor ético-social negativo sobre uma determinada ação do cidadão [cf. BVerfGE 25, 269 (286); 88, 203 (258].
Se há previsão de pena privativa de liberdade, isso possibilita uma intervenção no direito fundamental da liberdade da pessoa, protegido pelo Art. 2 II 2 GG. A liberdade da pessoa, que a Grundgesetz caracteriza como ?inviolável?, é um bem jurídico tão elevado que nele somente se pode intervir com base na reserva legal do Art. 2 II 3 GG, por motivos especialmente graves. Independentemente do fato de que tais intervenções também podem ser cogitadas sob determinados pressupostos, quando servirem para impedir que o atingido promova contra si próprio um dano pessoal maior [BVerfGE 22, 180 (219); 58, 208 (224 et seg.); 59, 275 (278); 60, 123 (132)], elas, em geral, somente são permitidas se a proteção de outros ou da comunidade assim o exigir, observando-se o princípio da proporcionalidade.
Segundo esse princípio, uma lei que restringe o direito fundamental deve ser adequada e necessária para o alcance almejado. Uma lei é adequada se o propósito almejado puder ser promovido com o seu auxílio; é necessária se o legislador não puder selecionar um outro meio de igual eficácia, mas que não restrinja, ou que restrinja menos, o direito fundamental [cf. BVerfGe 30, 292 (316); 63, 88 (115); 67, 157 (173, 176)].
Na avaliação da adequação e da necessidade do meio escolhido para o alcance dos objetivos buscados, como na avaliação e prognóstico a serem feitos, neste contexto, dos perigos que ameaçam o indivíduo ou a comunidade, cabe ao legislador uma margem (discricionária) de...
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