Acórdão nº 71010477909 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Turma Recursal Criminal, 27-06-2022

Data de Julgamento27 Junho 2022
Tribunal de OrigemTurmas Recursais
Classe processualApelação
Número do processo71010477909
Tipo de documentoAcórdão
ÓrgãoTurma Recursal Criminal

PODER JUDICIÁRIO


LGZP

Nº 71010477909 (Nº CNJ: 0014957-44.2022.8.21.9000)

2022/Crime


POSSE DE DROGAS.
ART. 28 DA LEI 11.343/06. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA POR ATIPICIDADE DA CONDUTA. A posse de substância entorpecente, mesmo que em pequena quantidade, no caso 1,270g de cocaína, é conduta típica prevista no art. 28 da Lei 11.343/06. A não cominação de pena privativa de liberdade não equivale à descriminalização da conduta, revelando apenas opção legislativa de recuperação e reinserção social do indivíduo. Conduta passível de causar dano ao bem jurídico tutelado, o que afasta os argumentos da autolesão e da insignificância penal da conduta. RECURSO PROVIDO.
Recurso Crime


Turma Recursal Criminal

Nº 71010477909 (Nº CNJ: 0014957-44.2022.8.21.9000)


Comarca de Porto Alegre

MINISTERIO PUBLICO


RECORRENTE

EDER CRISTIANO DOS SANTOS WESSLING


RECORRIDO


ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.


Acordam os Juízes de Direito integrantes da Turma Recursal Criminal dos Juizados Especiais Criminais do Estado do Rio Grande do Sul, à unanimidade, em dar provimento ao recurso.

Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores Dr. Luiz Antônio Alves Capra (Presidente) e Dr.ª Keila Lisiane Kloeckner Catta-Preta.


Porto Alegre, 27 de junho de 2022.


DR. LUIS GUSTAVO ZANELLA PICCININ,

Relator.


RELATÓRIO

O Ministério Público interpõe recurso de apelação da decisão que reconheceu a atipicidade penal da conduta descrita no art. 28 da Lei 11.343/06 e rejeitou a denúncia oferecida contra Éder Cristiano dos Santos Wessling pela prática do delito de posse de entorpecentes para consumo próprio, declarando a extinção da punibilidade.


O recorrente sustenta a inaplicabilidade do princípio da insignificância aos delitos de posse de drogas para consumo pessoal, colacionando precedentes desta TRCrim e do e. Supremo Tribunal Federal.
Aponta que a pequena quantidade de droga apreendida não só não descaracteriza o delito em comento, como é de sua própria essência e natureza. Requer a reforma da decisão e o prosseguimento do feito.

Em contrarrazões, a Defesa requer a manutenção da decisão impugnada.


O Ministério Público, nesta instância recursal, opinou pelo provimento do recurso.

VOTOS

Dr. Luis Gustavo Zanella Piccinin (RELATOR)

Conheço do recurso, pois cabível, adequado e tempestivo.
Além disso, não há fato impeditivo ? renúncia ou preclusão ? ou extintivo ? desistência ou deserção ?, sendo formalmente regular. Presentes, também, os requisitos subjetivos de admissibilidade, quais sejam, a legitimidade e o interesse recursal.

O delito imputado ao denunciado é o previsto no artigo 28, caput, da Lei 11.343/06, uma vez que ele trazia consigo três pinos de cocaína, pesando 1,270g, consoante laudo toxicológico da fl. 20, sem autorização e em desacordo com determinação legal.


É caso de provimento do recurso.


Esta Turma Recursal vem sustentando que a posse de entorpecentes para uso próprio configura a conduta ilícita prevista no artigo 28 da Lei de Drogas, independentemente da quantidade apreendida, por afetar o bem jurídico tutelado, que é a saúde pública, não configurando hipótese de autolesão.
Pelo mesmo fundamento, afasta-se a aplicação do princípio da insignificância aos delitos da espécie, uma vez que esta não reside na quantidade da substância apreendida, mas na sua potencialidade lesiva, com todas as consequências pessoais e de fomento da macrocriminalidade que a conduta enceta.

Não é de hoje nem recente o debate que se dá quanto ao bem juridicamente tutelado no que diz respeito ao aparente conflito entre a liberdade individual do consumidor de entorpecente e o móvel político-legislativo que autoriza a punição do usuário de drogas, justamente legitimada a ação do Estado no interesse em preservar (e coibir) a lesão a bem jurídico de caráter supraindividual, que transcende a figura do simples usuário e da mera ótica da lesão quanto ao plano das liberdades individuais.


Fora de dúvida está que o usuário de drogas não é propriamente um criminoso ?
senão que colateralmente fomenta o crime ? e, na mais das vezes, vê o vício impelir-lhe ao consumo da droga. Nesse contexto, a opção legislativa brasileira da Lei 11.343/2006 foi de inequívoco acerto, pois, sem perder o foco de que a conduta do usuário é que, em última análise, fomenta o tráfico, criou mecanismos para abrandar as sanções cominadas aos usuários de drogas, afastando a necessidade de aplicação de penas privativas de liberdade, prevendo, apenas, as sanções de advertência, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo, de modo a possibilitar a recuperação dos usuários. Note-se a aparente sutileza, de felicidade extremada do legislador: - se por um lado é certo não ser o usuário propriamente um criminoso, por outro não há como considerá-lo somente uma vítima da droga, ou um doente, pois é seu vício que alimenta toda a indústria bilionária do tráfico, com seus vertentes corretados, como homicídios daí decorrentes, lavagem de dinheiro e toda a sorte de crimes financeiros, que servem para a manutenção de poder e para viabilizar a funcionalidade, garantir territórios e a operacionalidade da indústria da droga. Assim, quanto ao usuário, a intenção do legislador foi a de impor a ele medidas de caráter educativo, objetivando alertá-lo sobre o risco de sua conduta para a própria saúde, além de evitar a reiteração do delito.

Nem a discussão que se dá atualmente no STF, em que se pretende descriminalizar a conduta do consumidor (REXt 635.659/SP), desmerece o mérito da lei.
Antes pelo contrário. Os dispositivos conhecidos lançados na conclusão dos votos dos Min. Gilmar Mendes e Min. Edson Fachin, que são no sentido diametralmente oposto a este voto, descriminalizando a conduta, portanto, são expressos em manter o texto da atual legislação, especialmente no que tange à submissão do usuário àquelas medidas previstas no artigo 28 da Lei 11.343/06. Ora, então do que estamos tratando exatamente aqui?! Tão e apenas somente de decidir qual o juízo para aplicá-las: o cível ou o criminal, já que mesmo no reconhecimento da inconstitucionalidade vingar, o usuário não deixará de ser submetido àquelas medidas não-privativas de liberdade do artigo 28 da Lei. Lembro e reitero que nenhuma das penalidades ali previstas será convertida em prisão e, no tocante à advertência, deve seguir a mesma sorte da pena de multa para fins de não gerar reincidência, aplicando-se-lhe o texto do artigo 84, parágrafo único, da Lei 9.099/95: ?Art. 84. Aplicada exclusivamente pena de multa, seu cumprimento far-se-á mediante pagamento na Secretaria do Juizado. Parágrafo único. Efetuado o pagamento, o Juiz declarará extinta a punibilidade, determinando que a condenação não fique constando dos registros criminais, exceto para fins de requisição judicial?. É inevitável conciliar a intenção do legislador em desencarcerar o consumidor de drogas, tratando-o como doente ? tanto que nunca se aplica a ele medida de prisão ? e por igual não considerar aquele que pratica delito de menor potencial ofensivo que resulte em multa, aí incluída a posse de droga, como reincidente, não se constando a condenação para qualquer fim. Se a pena maior, a ?multa? não gera registro desabonatório que gere reincidência, mais razão ainda que a advertência, medida não-penal ?menor?, prevista no inciso I do artigo 28 também não gere antecedente ou reincidência.

Trago à baila, por pertinente, a discussão que se travou no HC 104.410, julgado pelo STF, no qual o Ministro Relator Gilmar Mendes, realizando uma digressão quanto aos níveis de intensidade do controle de leis penais, faz referência ao caso Cannabis (BVerfGEe 90,145), julgado pelo Tribunal Constitucional alemão, em que a Corte confirmou a constitucionalidade da tipificação penal da aquisição e porte para consumo de produtos derivados da planta cannabis sativa, onde justamente o que se discutia era a existência de autolesão ou de lesão coletiva, que justificasse a criminalização do uso da droga:


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Sob o ponto de vista material, ressalvadas as garantias constitucionais especiais, o princípio da proporcionalidade oferece o parâmetro geral constitucional, segundo o qual a liberdade de ação pode ser restringida [cf. BVerfGE 75, 108 (154 s.); 80, 137 (153)]. Esse princípio tem um significado mais intenso no exame de um dispositivo penal, que, enquanto sanção mais forte à disposição do Estado, expressa um juízo de valor ético-social negativo sobre uma determinada ação do cidadão [cf. BVerfGE 25, 269 (286); 88, 203 (258].
?Se há previsão de pena privativa de liberdade, isso possibilita uma intervenção no direito fundamental da liberdade da pessoa, protegido pelo Art. 2 II 2 GG. A liberdade da pessoa, que a Grundgesetz caracteriza como ?inviolável?, é um bem jurídico tão elevado que nele somente se pode intervir com base na reserva legal do Art. 2 II 3 GG, por motivos especialmente graves. Independentemente do fato de que tais intervenções também podem ser cogitadas sob determinados pressupostos, quando servirem para impedir que o atingido promova contra si próprio um dano pessoal maior [BVerfGE 22, 180 (219); 58, 208 (224 et seg.); 59, 275 (278); 60, 123 (132)], elas, em geral, somente são permitidas se a proteção de outros ou da comunidade assim o exigir, observando-se o princípio da proporcionalidade.
?Segundo esse princípio, uma lei que restringe o direito fundamental deve ser adequada e necessária para o alcance almejado. Uma lei é adequada se o propósito almejado puder ser promovido com o seu auxílio; é necessária se o legislador não puder selecionar um outro meio de igual eficácia, mas que não restrinja, ou que restrinja menos, o direito fundamental [cf. BVerfGe 30, 292 (316); 63, 88 (115); 67, 157 (173, 176)].
?Na avaliação da adequação e da necessidade do meio escolhido para o alcance dos objetivos buscados, como na avaliação e prognóstico a serem feitos, neste...

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