Acórdão nº 71010478600 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Turma Recursal Criminal, 27-06-2022
Data de Julgamento | 27 Junho 2022 |
Tribunal de Origem | Turmas Recursais |
Classe processual | Apelação |
Número do processo | 71010478600 |
Tipo de documento | Acórdão |
Órgão | Turma Recursal Criminal |
PODER JUDICIÁRIO
LAAC
Nº 71010478600 (Nº CNJ: 0015027-61.2022.8.21.9000)
2022/Crime
APELAÇÃO. POssE DE SUBSTÂNCIA ENTOECENTE. ART. 28 DA LEI Nº. 11.343/2006. SENTENÇA CONDENATÓRIA MANTIDA.
1. Posicionamento majoritário da Turma Recursal no sentido da tipicidade do art. 28 da Lei n. 11.343/06. Ressalva do entendimento minoritário do Relator pela atipicidade.
2. Hipótese em que o Ministério Público se desincumbiu da carga probatória que se lhe impunha, impondo-se seja acolhida a pretensão acusatória.
RECURSO DESPROVIDO.
Recurso Crime
Turma Recursal Criminal
Nº 71010478600 (Nº CNJ: 0015027-61.2022.8.21.9000)
Comarca de Três de Maio
CELSO LUIS RODRIGUES DE CASTRO
RECORRENTE
MINISTERIO PUBLICO
RECORRIDO
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Juízes de Direito integrantes da Turma Recursal Criminal dos Juizados Especiais Criminais do Estado do Rio Grande do Sul, à unanimidade, em negar provimento ao recurso.
Participaram do julgamento, além do signatário (Presidente), os eminentes Senhores Dr. Luis Gustavo Zanella Piccinin e Dr.ª Keila Lisiane Kloeckner Catta-Preta.
Porto Alegre, 27 de junho de 2022.
DR. LUIZ ANTÔNIO ALVES CAPRA,
Presidente e Relator.
RELATÓRIO
Recorre o réu da decisão que o condenou, por incurso nas sanções do art. 28 da Lei nº 11.343/06, à pena de advertência (fls. 50/53 v).
Sustenta, em síntese, a inconstitucionalidade do tipo penal, com base nos princípios da insignificância e da lesividade, postulando, por fim, a absolvição do réu (fls. 56/60 v).
O Ministério Público, nos dois graus de jurisdição, opinou pelo desprovimento do recurso (fls. 64/67 v; fls. 69/70 v).
VOTOS
Dr. Luiz Antônio Alves Capra (PRESIDENTE E RELATOR)
O recurso deve ser conhecido, pois cabível e tempestivo.
1. RESSALVA DE POSIÇÃO:
O entendimento majoritário desta Turma Recursal é no sentido da tipicidade do art. 28 da Lei n. 11.343/06.
Ressalvo, no ponto a minha posição minoritária.
O delito tipificado no art. 28 da Lei nº 11.343/06, como é do conhecimento dos eminentes colegas, está sendo objeto de exame perante o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário nº 635.659 centrando-se a discussão, como apontado pelo eminente Relator, Ministro Gilmar Mendes, em eventual violação às garantias constitucionais da intimidade e da vida privada, e que pode ser resumida pelo seguinte parágrafo:
?No caso agora em análise, o art. 28 é impugnado sob o enfoque de sua incompatibilidade com as garantias constitucionais da intimidade e da vida privada. Não se funda o recurso na natureza em si das medidas previstas no referido artigo, mas, essencialmente, na vedação constitucional à criminalização de condutas que diriam respeito, tão somente, à esfera pessoal do agente incriminado.?
Consigno que, embora não haja embaraço ao enfrentamento da questão sob tal prisma, não é esse o enfoque que proponho, não obstante a possibilidade de que se verifiquem pontos de contato.
1.1 DA NECESSIDADE DE UMA INTERETAÇÃO CONSTITUCIONAL:
Na lição de Juarez Freitas
?Interpretar uma norma é interpretar o sistema inteiro; qualquer exegese comete, direta ou obliquamente, uma aplicação da totalidade do Direito?.
Assim, nenhuma interpretação pode se verificar de forma descolada dos objetivos fundamentais, princípios e fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1º, da CF), que não se constituem em normas desprovidas de vinculatividade.
Válido, a propósito, o que defende Juarez Freitas
, no sentido de que:
?Em outras palavras, não se deve aceitar que os objetivos fundamentais, os princípios e os fundamentos do Estado Democrático de Direito sejam confundidos com simples disposições isoladas e destituídas de qualquer vinculatividade para a hermenêutica jurídica. Decididamente, então, é de pugnar, nos limites do sistema e sem jamais atentar contra ele, pela completa superação da teoria e, principalmente da práxis, que vê as normas programáticas como sem significado jurídico, esposando-se uma visão material do dever normativo-concretizador, não apenas dos órgãos legiferantes, mas também dos órgãos aplicadores do Direito, que jamais deveriam abdicar desta função ou deste telos de dar vida ao Estado Democrático.?
Não apenas isso, a interpretação constitucional, como aponta com propriedade Salo de Carvalho
, deve atender a um processo de constitucionalização das leis:
?É que a consolidação do modelo impositivista dogmático no direito (penal) induz à ignorância da força normativa da Constituição e à resignação com a aplicação mecânica das leis inferiores. Como consequência, obtém-se a manutenção da racionalidade legalista que provoca a dessubstancialização do direito, isto é, ao centrar sua análise na lei ordinária (fetichismo legalista), os aplicadores do direito mantêm eficazes normas isentas de conteúdo constitucional (inválidas materialmente), Desta forma, é comum perceber a ?penalização? da Constituição pela recusa do jurista ao processo de constitucionalização das leis.
A patologia que envolve o saber jurídico-penal é demonstrada com precisão por Luís Roberto Barroso: ?(...) as normas legais têm de ser reinterpretadas em face da nova Constituição, não se lhes aplicando automática e acriticamente a jurisprudência forjada no regime anterior. Deve-se rejeitar uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo.?
Dessa forma, é possível afirmar a necessidade de novo processo secularizador no direito penal, não mais voltado à separação entre direito e moral e/ou direito e natureza (processo ainda inconcluso), mas, fundamentalmente, no sentido de conferir primazia aos valores e princípios, objetivando efetivar o conteúdo constitucional das normas.?
Não é, portanto, a Constituição que deve ser lida a partir da legislação infraconstitucional, mas sim esta a partir daquela, pois, do contrário, estaríamos consagrando exacerbado positivismo, tornando válida a advertência trazida por Juarez Freitas
:
?A propósito, RADBRUCH foi convincente ao demonstrar que o positivismo, com sua fórmula ?lei é lei?, deixou a jurisprudência e a judicatura alemãs inermes contra todas as crueldades nazistas, plasmadas pelos governantes da hora, em consonância com a forma legal.
Em outras palavras, é inadequado sustentar que se possa, numa correta postura hermenêutica, pensa r a base do Direito Positivo, por meios puramente formais, sem, de algum modo, ter de recorrer a critérios axiológicos. Por iguais e relevantes motivos, resulta plenamente inaceitável o princípio jurídico positivista de que a ordem jurídica forma uma unidade fechada, em função de cujo princípio, à feição de autômato, estaria ao juiz vedado o poder criador jurisprudencial, num pressuposto de que o poder judicial, candidamente teria função apenas reprodutiva, como se tal fosse possível, quando se sabe que a lógica jurídica é, queiramos ou não, necessariamente dialética. Não fosse assim, em equivocada perspectiva, o juiz evadir-se-ia de decisões éticas e como que ?isentar-se-ia? da culpa pela aplicação antijurídica da lei sabidamente iníqua.?
1.2 DO BEM JURÍDICO TUTELADO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LESIVIDADE:
O objeto jurídico da tutela penal em relação ao art. 28 da Lei nº 11.343/06 é a saúde pública.
Assim o definem em sede doutrinária Nucci
, Marcão
e Delmanto
.
Tal entendimento, aliás, encontra curso perante esta Turma Recursal:
?APELAÇÃO CRIMINAL. POSSE DE DROGAS. ART. 28 DA LEI 11.343/2006. INCONSTITUCIONALIDADE E OFENSA AO PRINCÍPIO DA ALTERIDADE. A norma penal em causa tutela interesse coletivo que se sobrepõe ao direito individual de liberdade, assegurado constitucionalmente. A posse de substância entorpecente representa perigo para a saúde pública, o que autoriza o apenamento da conduta do agente sem que resultem feridos os seus direitos constitucionais. (...) (Recurso Crime Nº 71005389556, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Luis Gustavo Zanella Piccinin, Julgado em 28/09/2015)?
?APELAÇÃO CRIMINAL. PORTE DE SUBSTÂNCIA ENTOECENTE. ART. 28 DA LEI Nº. 11.343/2006. TIPICIDADE. INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. SENTENÇA CONDENATÓRIA REFORMADA. (...) Impossível desconsiderar, na hipótese, que o seu cometimento configura dano à saúde pública, bem jurídico tutelado, não se abrindo espaço, portanto, para a aplicação do Princípio da Insignificância. Alegação de inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato que não se alberga. Estes, é cediço, não tutelam a vida, a integridade física ou o patrimônio, mas tão somente a incolumidade pública, o que decorre de opção do legislador. Inexistência de inconstitucionalidade em relação ao art. 28 da Lei nº 11.343/06, na medida em que o ato de portar drogas traduz risco à incolumidade pública, ultrapassando, portanto a esfera individual. (..) (Recurso Crime Nº 71005420831, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Luiz Antônio Alves Capra, Julgado em 28/09/2015)?
?APELAÇÃO CRIME. POSSE DE DROGAS. ART. 28 DA LEI 11.343/06. CONDUTA TÍPICA. INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. SENTENÇA CONDENATÓRIA REFORMADA 1. (...)Há justa causa para o manejo da ação penal, desacolhendo-se o argumento de autolesão que, em realidade, tem fundo constitucional, pelo entendimento de que a criminalização das condutas descritas no dispositivo em exame buscam resguardar a saúde pública, sem afronta à garantia da liberdade individual. (...) (Recurso Crime Nº 71005465737, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Edson Jorge Cechet, Julgado em 14/09/2015)?
Em se tratando de bem jurídico afigura-se oportuna a advertência de Maria Luiza Schäfer Streck
no sentido de que:
?Nunca é demais lembrar que a função do Direito Penal é a de proteger bens jurídicos ? que nada mais são do que valores e interesses de relevância constitucional ligados explícita ou implicitamente...
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