Adaptando o IVA aos arranjos de consumo do século XXI - O problema dos intangíveis

AutorMelissa Guimarães Castello
Ocupação do AutorProcuradora do Estado do Rio Grande do Sul. Doutora em Direito pela PUC-RS
Páginas145-210
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3. ADAPTANDO O IVA AOS ARRANJOS DE
CONSUMO DO SÉCULO XXI – O PROBLEMA
DOS INTANGÍVEIS
Após apresentar os traços fundamentais da regra-matriz
dos impostos sobre valor agregado, tomando por exemplos
práticos o IVA europeu e os impostos sobre o consumo bra-
sileiros, com ênfase no ICMS; e analisar quais aspectos dos
arranjos de consumo do século XXI têm a propensão de im-
pactar na eficiência arrecadatória destes impostos; chega-se
ao momento propositivo deste livro.
Como visto, a “onda de longa duração” instaurada com os
arranjos de consumo do século XXI demanda a reestrutura-
ção do sistema tributário, para assegurar que o consumo seja
tributado de forma eficiente e neutra. Há muitos autores que
entendem que o IVA é inapto a incidir sobre os novos arranjos
de consumo. Normalmente, os críticos ao IVA propõem sua
substituição por um tributo incidente sobre o fluxo de caixa,
que teria base mais ampla do que o imposto sobre valor agre-
gado.603 Esta proposta de reformulação do sistema tributário
603. Para uma análise econômica das vantagens e desvantagens do IVA e do impos-
to sobre fluxo de caixa, vide: AUERBACH, Alan et al. Work Paper 17/01: Destina-
tion-Based Cash Flow Taxation. Disponível em: https://bit.ly/3iqwcLb Acesso em:
19 jul. 2021. No estudo, os autores propõem a tributação incidente sobre o fluxo de
caixa, como alternativa às tributações incidentes sobre a renda e sobre o consumo.
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UM NOVO IVA?
OS TRIBUTOS SOBRE O CONSUMO E A ECONOMIA DIGITAL
não é aprofundada nesse livro, pois se entende que o IVA é
adequado para tributar os novos arranjos de consumo.
Outros estudiosos sustentam a criação de um “Impos-
to sobre Serviços Digitais”, em acréscimo ao IVA. Este novo
imposto teria como sujeito passivo um grupo específico de
empresas, usualmente as prestadoras de serviços digitais
que têm faturamento global muito alto, adotando como crité-
rio material da hipótese tributária o fornecimento de alguns
serviços ou intangíveis digitais.604 O Imposto sobre Serviços
Digitais costuma ser proposto para corrigir uma distorção da
tributação incidente sobre a renda605 – e não sobre o consumo
– motivo pelo qual tampouco é aprofundado neste livro.
A busca por alternativas para a tributação da economia
digital, em substituição ou adicionalmente ao IVA, é conse-
quência dos arranjos de consumo do século XXI. Conforme
Rezende, o grande desafio da incidência de IVA sobre a eco-
nomia digital decorre da reformulação da cadeia produtiva,
que deixou de ser linear, passando a ser uma “rede de valor”,
com relações horizontais que se entrecruzam.606 Portanto, tor-
na-se muito difícil identificar o valor agregado em cada eta-
pa produtiva,607 o que leva o autor a questionar a utilidade
Esta tributação seria equivalente à tributação pelo IVA conjugada a um sistema de
desoneração dos custos de trabalho. Segundo os autores, a única diferença entre os
dois modelos é que a tributação sobre o fluxo de caixa desonera o custo do trabalho,
pois ela foi desenhada para tributar os lucros, ao passo em que a tributação pelo
IVA não faz essa desoneração de forma automática. Portanto, seria necessária a re-
dução da carga tributária incidente sobre a folha de pagamentos, para que o IVA
tivesse um impacto financeiro equivalente ao do imposto sobre o fluxo de caixa.
604. Sobre o tema, vide: GONZÁLEZ, Dario. Impuesto sobre Servicios Digitales «Di-
gital Services Tax». In: Centro Interamericano de Administraciones Tributarias. Dis-
ponível em: https://bit.ly/36qZ9Ry Acesso em: 07 ago. 2020; AIRES. O labirinto tribu-
tário na nova economia: da transformação digital à odisseia fiscal. p. 57-64.
605. RUBINSTAIN, Flávio. In: A Maior Live de Administração Tributária do Mun-
do, 2020. 1 vídeo (11:55h). Publicado pelo canal Stael Freire. Disponível em: https://
bit.ly/3wAOkas Acesso em: 07 ago. 2020.
606. REZENDE. A Revolução Digital e a Reforma Tributária. p. 117.
607. Ibid. loc. cit. e p. 130.
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MELISSA GUIMARÃES CASTELLO
do IVA. Sob outra perspectiva, sustenta-se a insuficiência do
IVA, uma vez que os setores mais onerados com este impos-
to – notadamente energia, telecomunicações e combustíveis
– têm sido impactados de forma negativa com a nova “onda
de longa duração”.608
Contudo, a nova “onda de longa duração” não teve sim-
plesmente o condão de eliminar ou reduzir a expressividade
de alguns setores da economia, mas de substituí-los por ou-
tros tipos de empreendimentos, com novos modelos de ne-
gócio, como amplamente debatido no capítulo 2. Estes novos
modelos de negócio importam em circulação de riqueza – ain-
da que o ciclo de circulação de riqueza tenha se alterado. É
precisamente por isso que o IVA permanece sendo uma alter-
nativa tributária funcional: quando a riqueza circula, há valor
agregado, e o IVA incide. Simples assim.
Não obstante, o IVA, tal qual formatado hoje, não está ade-
quado às relações de consumo do século XXI.609 Os problemas
apresentados ao longo dos dois capítulos anteriores levam à
resposta negativa. Hoje, o IVA não está preparado para inci-
dir sobre a economia digital de forma neutra, eficiente e não
cumulativa, pois a intangibilidade dos bens de consumo do sé-
culo XXI permite que eles escapem à incidência do imposto.
O problema identificado não é tanto do critério material da hi-
pótese tributária, pois o valor agregado subsiste, mas dos cri-
térios espacial e pessoal, como será demonstrado. Acerca des-
sa insuficiência do IVA, é pertinente a observação de Correia
Neto, Afonso e Fuck, para os quais “enquanto perdurar o des-
compasso entre a nova economia e os velhos tributos, ganharão
608. Exemplo deste impacto negativo é dado pelas estatísticas do estado do Rio
Grande do Sul, que dão conta de que a arrecadação de ICMS com estas blue chips
caiu, de aproximadamente 4% do PIB gaúcho, em 2005, para cerca de 2,5%, em
2019. Considerando-se que a alíquota do imposto aumentou neste intervalo de tem-
po, a redução da representatividade destes setores da economia sobre o PIB é ain-
da maior (RIO GRANDE DO SUL. Reforma RS – Reforma Tributária do Estado. Jul-
2020. Disponível em: https://bit.ly/3hpKRqK Acesso em: 14 jul. 2020. fl. 35).
609. No mesmo sentido: AIRES. O labirinto tributário na nova economia: da trans-
formação digital à odisseia fiscal. p. 33.

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