Adaptando o IVA aos arranjos de consumo do século XXI - O problema da mobilidade

AutorMelissa Guimarães Castello
Ocupação do AutorProcuradora do Estado do Rio Grande do Sul. Doutora em Direito pela PUC-RS
Páginas211-273
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4. ADAPTANDO O IVA AOS ARRANJOS DE
CONSUMO DO SÉCULO XXI – O PROBLEMA
DA MOBILIDADE
Um dos grandes impactos das relações de consumo do
século XXI foi encurtar a cadeia de circulação de bens, na
medida em que as plataformas de comércio eletrônico viabi-
lizam o contato direto entre fornecedor e consumidor, dando
maior mobilidade aos bens de consumo.810 Este encurtamento
da cadeia ocorre tanto na circulação de bens tangíveis, quanto
de intangíveis. Ademais, ele impacta na aptidão do IVA para
tributar operações internacionais stricto sensu, bem como
operações internas aos mercados integrados.
Isso porque as plataformas alteraram a forma de agrega-
ção de valor ao processo produtivo, ao introduzir o que Aires
chamou de “modelo de negócios multilateral”, em que tan-
to fornecedor, quanto consumidor final, são tomadores dos
serviços da plataforma.811 Este modelo de negócios traz per-
plexidades à lógica linear da clássica cadeia de produção em
que se desenvolveram os IVAs, mas também pode represen-
tar uma vantagem à eficiência desta técnica de tributação,
810. Conforme debatido no tópico 2.2.1.
811. AIRES. O labirinto tributário na nova economia: da transformação digital à
odisseia fiscal. p. 7.
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UM NOVO IVA?
OS TRIBUTOS SOBRE O CONSUMO E A ECONOMIA DIGITAL
especialmente quando se está diante de aquisições interna-
cionais, como será detalhado ao longo deste capítulo.
Na esfera internacional, as plataformas de comércio ele-
trônico permitem a aquisição de produtos importados dire-
tamente pelo consumidor final, processo este que era extre-
mamente complexo antes do desenvolvimento da economia
digital. Com efeito, estima-se que estas pequenas importações
já movimentam um trilhão de dólares globalmente.812 E elas
trazem impactos imediatos na neutralidade do IVA: as admi-
nistrações tributárias usualmente estabelecem um limite de
valor, abaixo do qual não se mostra economicamente viável
arrecadar o IVA na importação de um bem.813 Esta isenção
encontra respaldo no princípio da eficiência tributária, pois
a administração não pode incorrer em custos excessivos para
assegurar a tributação,814 mas acaba tornando as pequenas
importações mais atrativas do que o consumo do produto si-
milar nacional (já que a importação é isenta do imposto, e o
similar nacional não), em clara afronta ao princípio da neutra-
lidade tributária.815 Muitos países já consideram inaceitável
esta afronta,816 sugerindo a eliminação da isenção.
812. OCDE. The Role of Digital Platforms… p. 12.
813. Segundo Tamer Budak, na União Europeia essa isenção se aplicava para a im-
portação de bens com valor inferior a € 10,00 (ou € 22,00, se o país desejasse ampliar
o limite). Contudo, em 2018 ela foi substituída por um modelo de limite anual, abai-
xo do qual o IVA não é cobrado da empresa exportadora (BUDAK. The Transfor-
mation of International Tax Regime:… p. 311-2). Os limites anuais de isenção são
fixados pelos estados-membros, variando de € 30.000 a € 100.000 (UNIÃO EURO-
PEIA. O IVA nas transações transnacionais. Abr. 2018. Disponível em: https://bit.
ly/3hu0FIX Acesso em: 29 maio 2020). No Brasil, cada estado tem regramento espe-
cífico no que toca à isenção do imposto incidente sobre importações por consumi-
dor final, não havendo tratamento uniforme nacional.
814. OCDE. International VAT/GST Guidelines. p. 24. Luís Aires indica outros fun-
damentos para a isenção nas importações: dar tratamento fiscal semelhante entre
importações e operações internas; aproximar as isenções de IVA das aduaneiras;
reconhecer benefícios fiscais previstos em acordos internacionais; e evitar situa-
ções de dupla tributação (AIRES. O labirinto tributário na nova economia: da trans-
formação digital à odisseia fiscal. p. 39).
815. OCDE. International VAT/GST Guidelines. p. 32.
816. OCDE. The Role of Digital Platforms… p. 14.
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MELISSA GUIMARÃES CASTELLO
Mas o encurtamento da cadeia de circulação de bens não
impacta somente as operações internacionais propriamente
ditas. Os marketplaces mitigaram a barreira comercial de-
corrente da distância física entre fornecedor e consumidor,
facilitando compras remotas por não contribuinte do impos-
to, tanto em importações, quanto em operações internas aos
mercados integrados, na modalidade não presencial.
No Brasil, nas operações interestaduais, o critério espa-
cial do ICMS, que enfatizava a cobrança do imposto na ori-
gem, rapidamente demonstrou suas limitações para alcan-
çar o comércio eletrônico. Contudo, o impacto econômico do
comércio eletrônico foi tão grande que teve o condão de de-
sorganizar o equilíbrio federativo do país, fomentando a pro-
mulgação da Emenda Constitucional 87/2015. Esta Emenda
Constitucional limitou a competência tributária dos estados
de origem, levando uma parcela maior da arrecadação do
ICMS para o estado de destino.817
Essa alteração foi necessária porque, com o incremento
do comércio eletrônico, e o consequente aumento das opera-
ções de compra e venda interestaduais por consumidor final,
houve modificação do equilíbrio de receitas entre os entes da
Federação. Os estados de origem começaram a concentrar ar-
recadação que anteriormente costumava ser auferida pelos
estados de destino. Conforme salienta Kiyoshi Harada, a mu-
dança de hábitos dos consumidores, favorecidos pelo avanço
tecnológico possibilitado pelo comércio eletrônico, impulsio-
nou a alteração constitucional de 2015.818
Com efeito, para evitar este desequilíbrio no pacto federa-
tivo brasileiro, a Emenda Constitucional 87/2015 determinou
817. VAGETTI; e SEPULCRI. Análise Crítica da EC 87/2015 e seus reflexos na de-
nominada guerra fiscal de ICMS; GRUPENMACHER, Betina Treiger. Emenda que
Disciplina a Incidência do ICMS sobre Operações Interestaduais. Consultor Jurídi-
co, São Paulo, 23 abr. 2015. Disponível em: https://bit.ly/3hStJJg Acesso em: 03 set.
2019. Vide, também, o tópico 1.3.1.2.
818. HARADA, Kiyoshi. ICMS – Doutrina e Prática [recurso eletrônico]. 2ª ed. SP:
Atlas, 2019. tóp. 2.8.

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