Agências administrativas, poder regulamentar e o sistema financeiro nacional

AutorProf. Egon Bockmann Moreira
CargoProfessor de Direito Administrativo no Instituto Romeu Felipe Bacellar
Páginas1-22

Professor de Direito Administrativo no Instituto Romeu Felipe Bacellar. Advogado em Curitiba, sócio da Justen & Associados. Mestre em Direito Administrativo. Ex-consultor jurídico do Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (1º semestre/1995)..

Texto originalmente publicado na Revista de Direito Administrativo, n.º 118 e Revista de Direito Administrativo & Constitucional, n.º 4 (com ligeiras alterações, sob o título Conselho Monetário Nacional, Banco Central do Brasil e Comissão de Valores Mobiliários, na Revista Trimestral de Direito Público, n.º 25; Revista de Direito Bancário e Mercado de Capitais, n.º 6; e Revista de Direito Mercantil, n.º 116).

Page 1

O sistema financeiro nacional é integrado pelo Conselho Monetário Nacional e Banco Central do Brasil, ambos criados pela Lei n. º 4.595, de 31.12.1964 (e alterações), e cujas competências relativas ao mercado de capitais estão previstas na Lei n. º 4.728, de 14.7.1965. A Comissão de Valores Mobiliários foi criada pela Lei n. º 6.385, de 7.12.1976.

Tendo em vista as recentes modificações experimentadas no Direito Administrativo pátrio, é de se cogitar se tais entidades podem ser classificadas como "agências independentes", bem como sua eventual diversidade em face das recém-criadas "agências executivas" e "agências reguladoras". Ademais, cabe investigar seu "poder normativo" e os limites derivados dos estândares estabelecidos pela legislação que criou tais organizações. Ao final, Page 2 analisaremos se o artigo 192 da Constituição Federal de 1988 estabeleceu alguma reserva de lei que não esteja atendida nos diplomas supracitados.

I Premissas hermenêuticas
  1. A análise das questões acima arroladas pressupõe a fixação de premissas de interpretação claras e, mais do que isso, exige que seja fixado um conceito básico para a realidade normativa "agências", bem como sua razão, conteúdo e limites.

  2. Partimos de três regras de hermenêutica jurídica.

Primeira, a de que a interpretação não pode abstrair das finalidades normativas visadas, justamente em face da situação concreta. A lei não pode ser interpretada puramente em abstrato, tal como não possuísse vínculos e desdobramentos na vida real ou não se dirigisse a determinado objetivo. A relação entre ratio legis e situação de fato é essencial às conclusões hermenêuticas. Ainda mais quando estão em análise normas de ordem pública, as quais, no Brasil, devem reger um Estado Democrático de Direito.

Segunda, a interpretação jurídica há de ser sistemática, não analisando somente aqueles preceitos específicos colocados à disposição do intérprete, como se pudessem existir normas avulsas, mas a unidade do sistema. "Em outras palavras, uma consciente interpretação do Direito Administrativo jamais poderá ser isolada ou destituída da necessária conexão com a inteireza do sistema, na sua vocação teleológica para a abertura e para a unidade. Com efeito, toda interpretação juspublicista, mesmo diante das questões mais singelas, há de ser sistemática, principiológica e hierarquizadora..."1

A terceira regra é a de que a interpretação jurídica não pode orientar-se por aquilo que Luís Roberto Barroso denominou de "uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo". Ao definir a "hermenêutica retrospectiva", o autor reporta-se à lição de Barbosa Moreira: "Põe-se ênfase das semelhanças, corre-se um véu sobre as diferenças e conclui-se que, à luz daquelas, e a despeito destas, a disciplina da matéria, afinal de contas, mudou pouco, se é que na verdade mudou."2

Estas são, basicamente, as premissas de hermenêutica que orientarão o presente texto. Page 3

II As agências administrativas e o direito brasileiro
  1. O direito positivo brasileiro, especialmente o constitucional e administrativo, vem passando por radical série de mudanças.3 O legislador visou a instalar uma Administração Pública qualificada de flexível e ágil, destinada a corresponder às necessidades pelas quais passa um mundo pósglobalização. Dentre tais alterações, está a instalação das chamadas "agências administrativas".

    3.1.Como é notório, as agências administrativas têm origem no direito estadunidense, cujo Direito Administrativo se estruturou em torno de tais entidades.45 Note-se que a primeira agência foi criada ainda no século XIX (Interstate Commerce Comission, de 1887).

    Naquele país, existe lei própria, definidora da estrutura normativa das agências (Federal Administrative Procedure Act, de 1946), bem como de seus genéricos poderes e deveres. Trata-se de lei geral, que fundamenta a criação de agências específicas, no âmbito federal.

    Há duas espécies de agências, as "reguladoras" e as "executivas". Estas vinculam-se à pura execução de serviços de ordem social (pensões, previdência social, seguros etc.), enquanto que aquelas disciplinam determinada área de atuação estatal (incluindo-se aí direitos e deveres dos particulares).

    Tais agências administrativas reguladoras caracterizam-se por ter independência em face do Poder Executivo e não estar submetidas a controle hierárquico. De forma autônoma, emanam normas que regulamentam a matéria de sua competência e decidem litígios, exercitando os denominados poderes "quasi-judicial" e "quasi-legislative". Na ampla maioria delas, seus dirigentes possuem mandato fixo, há supervisão das comissões do Congresso, possibilidade de controle judicial e "relações políticas" com o Poder Executivo.

    3.2.No Brasil, inexiste qualquer lei semelhante à norte-americana. Não há nenhuma disposição normativa que defina as condições genéricas de Page 4 existência de uma agência administrativa - seja ela "reguladora", seja "executiva". Mais do que isso, não há qualquer preceito legal que diga o que é uma "agência". Ao contrário, reina a confusão.

    De há muito, o direito positivo brasileiro utiliza-se à larga do termo, ora em sentido vulgar (agência telegráfica, agência do correio, agências das capitanias dos portos),6 ora em sentido específico (Agência Nacional de Telecomunicações - ANATEL, Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, Agência Nacional do Petróleo - ANP e Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVS),7 ora em sentido técnico indefinido (Agência Espacial Brasileira e Agências de Água).89

    O texto constitucional contém apenas a expressão "agências financeiras oficiais de fomento" (art. 165, § 2º) e o inc. I do art. 52 do ADCT refere-se a "agências de instituições financeiras". Mesmo depois das Emendas n.º 8/9510 e 9/95,11 a Constituição Federal contempla a locução "órgão regulador", não "agência administrativa".

    Já a Lei 9.649/98, que "dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios", adota o termo "órgão regulador", para ANP e Page 5 ANEEL,12 e cria o qualificativo "agência executiva",13 a ser outorgado a autarquias ou fundações que tenham cumprido determinados requisitos (plano estratégico e contrato de gestão).

    Por fim, os Decretos 2.487/98 e 2.488/98 estabelecem a qualificação das "agências executivas", não declinando o que vêm a ser tais entidades, mas meramente dispondo sobre o procedimento e requisitos necessários a tal atributo - o que levou Celso Antônio Bandeira de Mello à percuciente conclusão de que "O decreto, curiosamente, não indica quaisquer conseqüências extraíveis do qualificativo 'agência executiva', de sorte que ele apresenta o sabor de uma 'comenda'."14

    3.3.Além de não haver previsões gerais definidoras do que efetivamente vem a ser uma "agência" no direito brasileiro, os textos legais em vigor produzem séria confusão dos conceitos. Não há qualquer coerência semântica, que, de imediato, autorize e (ou) facilite a uniformidade na interpretação de tais normas.

    Há leis que estabelecem o que vem a ser o "regime especial" ao qual estão submetidas as "agências administrativas", nunca de forma igual às demais, e outras que somente lançam tal locução quando "qualificam" a agência, tal como se houvesse incontrovérsia quanto ao uso do termo e de sua "especialidade". A definição mais precisa está na legislação da ANATEL, que confere exaustiva precisão à palavra utilizada. Resta saber qual o impacto que tal incerteza pode gerar para eventual fixação do verdadeiro sentido do termo "agência", para o direito brasileiro (se é que isso é possível).

  2. Destaque-se que, neste momento histórico, a definição de um ente público como "agência" não envolve pura questão de nomenclatura, mas definição do tipo jurídico e (ou) título competencial detido pelo órgão administrativo. Não se trata de dúvida limitada ao nomen juris da entidade, mas à possibilidade da qualificação de sua ação, limites e conteúdo.15

    Ou seja, o problema enfrentado abrange o verso e o reverso da questão. Não apenas é significativa a especificação normativa dos entes (são ou não são agências), mas também o prévio conteúdo da qualificação atribuída a tais entes (o que é - ou pode ser - uma agência, no direito brasileiro). Tal como leciona Daniele Coutinho Talamini, "Poder-se-ia pensar, desde logo, que a questão reduz-se à mera terminologia. Todavia, como já advertiu André Gonçalvez Pereira, um problema terminológico não é somente um problema terminológico. A terminologia desempenha uma função, que é a de designar coisas idênticas com o mesmo nome e coisas diferentes com nomes diferentes. E para a Ciência do Direito, cada termo utilizado deve designar um conceito, o Page 6 qual, por...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT