Representação como advocacy: um estudo sobre deliberação democrática

AutorNadia Urbinati
CargoProfessora do Departamento de Ciência Política da Universidade de Columbia (New York).
Páginas51-88
Artigo
Representação como advocacy*:
um estudo sobre deliberação democrática**
Nadia Urbinati ***
A
ação indireta em política nunca desfrutou de muito prestígio
na teoria democrática. O governo direto costuma ser visto
como paradigmático da democracia porque implica uma fusão de
“falar” e “fazer” na ação política, bem como a plena participação de
todos os cidadãos no processo de tomada de decisão.1 A moderna
* O termo advocacy refere-se à defesa de direitos no contexto de ações coletivas,
políticas, públicas. A autora explicita ao longo do texto, em especial na seção
III, sua concepção de advocacy no contexto do processo de representação
política. (N. da T.).
** Publicado originalmente em Political Theory, vol. 28, n.6, 2000, pp. 758-786 (Urbi-
natti, N. Representation as advocacy: A study of democratic deliberation. Copyright
© (2000) by SAGE Publications, Inc). Agradecemos a SAGE Publications, Inc. pela
autorização para tradução e publicação. Tradução de Sieni Maria Campos.
*** Professora do Departamento de Ciência Política da Universidade de Columbia
(New York).
Nota da autora: Versões anteriores deste ensaio foram apresentadas na reu-
nião anual de 1998 da American Political Science Association em Boston, no
Colóquio da New School Political Theory, no Columbia Colloquium in Political
Theory e no Workshop de Teoria Política da Universidade de Chicago. Eu gosta-
ria de agradecer aos que participaram dessas discussões, especialmente a Jean
L. Cohen, Sankar Muthu, David Plotke, Jon Elster, Jack Snyder, Bernard Manin,
Andreas Kalyvas, Charles Larmore e Andrew Rehfel por seus comentários que
muito me ajudaram. Expresso um agradecimento particular a Jane J. Mansbrid-
ge, cujas sugestões me auxiliaram na revisão final do ensaio. A minha gratidão
ao Conselho de Ciências Humanas e Sociais do Comitê de Desenvolvimento
Docente da Universidade de Columbia pela verba com que me apoiou.
1 Jane J. Mansbridge, Beyond Adversarial DemocracyDemocracy, com prefácio
revisto. (Chicago: University of Chicago Press, 1983), 279-81. Mansbridge
questionou a exatidão da ideia de que a democracia direta permite mais
participação e mais controle do que a indireta: “O tamanho pequeno de fato
faz aumentar o poder do indivíduo médio dentro de seu próprio grupo, mas
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Volume 9 – Nº 16 – abril de 2010
“descoberta” da representação não questionou o valor normativo
deste paradigma. Com excessiva frequência, deu-se apenas uma
justificação instrumental à representação, que tem sido vista como
expediente pragmático para lidar com Estados territoriais grandes,
ou como “ficção” útil por meio da qual o método de divisão do
trabalho tem sido adaptado à função de governo.2
Particularmente desde a Revolução Francesa, a democracia
passou a denotar, como em Atenas, um estado de perfeição que
os modernos admiram e pelo qual anseiam mesmo sabendo que
é irrealizável para eles: “Hoje, em política, a democracia é o nome
do que não podemos ter - mas não podemos deixar de querer.”3
Portanto, para pensadores como George W. F. Hegel e Benjamin
Constant, democracia “clássica” era o nome de algo que os mo -
dernos não podiam mais ter, ao passo que, para os democratas
contemporâneos, tornou-se o nome de uma boa sociedade que
ainda podemos ter, desde que a interpretemos como um processo
incessante de educação política em cidadania. Os primeiros expli-
caram (e racionalizaram) o caráter indireto da ação soberana por
meio da representação como destino inescapável dos modernos.4 Os
últimos desviaram sua atenção da representação e procuraram algo
que lembrasse a ação direta na sociedade civil.5 Em ambos os casos,
também reduz o poder do grupo em relação ao resto do mundo. Contudo, a
análise direta dos resultados sugere que os interesses dos pobres são mais
bem protegidos em unidades maiores.”
2 Ver, respectivamente, Hanna Fenichel Pitkin, The Concept of Representation
(Berkeley: University of California Press, 1967), 86 e Hans Kelsen, General
Theory of Law and State, trad. Anders Wedberg (Union, NJ: Lawbook Ex-
change, 1999), 289.
3 John Dunn, Western Political Theory in the Face of the Future (Cambridge:
Cambridge University Press, 1993), 28.
4 A nostalgia pode promover a resignação, mas também pode incentivar um
desencanto realista com o presente. Este foi o trabalho de normalização ide-
ológica levada a cabo por Hegel: situar as antigas repúblicas no cume de uma
perfeição não contaminada para torná-las inócuas e tornar seu significado ideal
impotente. Constant adotou estratégia similar, embora sua paixão militante
antijacobina o levasse a declarar que a antiga democracia era indesejável, não
só inatingível; velha, em vez de apenas idealmente eterna.
5 Como exemplo, recordemos a teoria da democracia industrial das décadas de
1960 e 1970, um revival do ideal oitocentista de cooperação combinado com
a experiência dos conselhos de fábrica do início do século XX. Os democra-
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a representação foi associada ao enfraquecimento do autogoverno.
Para os democratas, em particular, a representação é pouco atraente,
primeiro por ser vista como algo que justifica uma relação vertical
entre os cidadãos e o Estado, e segundo por ser vista como fator
de promoção da cidadania passiva.6 Até a tentativa de torná-la mais
compatível com o princípio democrático de igualdade, por exemplo
tornando-a proporcional, foi considerada não só inútil como também
insincera. É inútil porque a proporcionalidade não pode preencher a
lacuna entre os cidadãos e seus representantes. É insincera porque
a representação proporcional pode, na verdade, tornar-se um modo
de usar a representação de minorias para legitimar as decisões da
maioria. Em seu livro seminal, Hannah Pitkin afirma que a exatidão
proporcional e descritiva na representação tira com a mão esquerda
o que dá com a direita: espelha meticulosamente a topografia social,
mas, ao mesmo tempo, transforma a assembleia em um corpo que
“fala mais do que age, delibera mais do que governa”.7 Por fim, em
um sistema eleitoral proporcional, os custos - instabilidade gover-
namental e fragmentação do eleitorado - superam os benefícios. Em
suma, não há como fazer a representação ser o que ela não pode
ser: um substituto válido da democracia direta.
Minha intenção não é questionar o valor normativo da partici-
pação direta, mas argumentar a favor da pertinência da representa-
ção. Penso que isso, além de necessário, vale a pena, particularmente
quando valorizamos o caráter deliberativo da política democrática.
Quando expressamos nossa insatisfação quanto à maneira como
somos representados, estamos aludindo implicitamente a algum
ideal de representação. Quanto ao caráter da política democrática,
tas radicais acreditavam que era possível conciliar propriedade capitalista e
controle operário da fábrica aplicando à esfera econômica a lógica da esfera
política segundo a qual todos têm direito a um voto, independentemente de
suas desigualdades em termos de situação social e acesso a propriedade; ver,
por exemplo, Carole Pateman, Participation and Democratic Theory (1970;
reimpressão, Cambridge: Cambridge University Press, 1997).
6 “A representação é incompatível com a liberdade porque delega e, portanto,
aliena, vontade política ao custo de verdadeiros autogovernos e autonomia.”
Benjamin Barber, Strong Democracy: Participatory Politics for a New Age
(Berkeley: University of California Press, 1984), 145.
7 Pitkin, The Concept of Representation, 84.

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