O Agente Algorítmico - Licença para Discriminar? (Um olhar sobre a seleção de candidatos a trabalhadores através de técnicas de inteligência artificial)
Autor | Milena da Silva Rouxinol |
Ocupação do Autor | Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Escola do Porto da Universidade Católica Portuguesa |
Páginas | 347-365 |
OAALD
U
Milena da Silva Rouxinol(2)
O presentetexto foipublicado pelaprimeira vezna obraAAVVDireito Digitale InteligênciaArticialIn BARBOSA
MafaldaMirandaBRAGANETTOFelipeSILVAMichaelCésarFALEIROSJÚNIORJoséLuizdeMouracoordDiálogos Entre
Brasil e EuropaSãoPauloFocop
ProfessoraAuxiliardaFaculdadedeDireitodaEscoladoPortodaUniversidadeCatólicaPortuguesa
Euseiquealgunsalgoritmossãodiscriminatóriosporquecrieiumtraduçãodanossaresponsabilidade
O bloguechamase ScienticAmerican e o texto a cujo título se fez referência é datado de 31 de janeiro de 2020. Pode ser
consultadoemhpsblogsscienticamericancomvoicesiknowsomealgorithmsarebiasedbecauseicreatedone.
HOUSERKimberlyACanaisolvethediversityprobleminthetechindustry MitigatingNoiseandBias inEmployment
DecisionMakingStanford Technology Law Review, n. 22, p. 290-354, 2019.
TheparadoxofautomationasantibiasinterventionCardozo Law Review, n. 41, p. 1-55, 2020.
1. Introdução
“I know some algorithms are biased, because I created
one”(3)declaraocientistaNicolasTYoungnoseu
blogue(4) —. enquanto, por seu turno, numa publicação
quasecoevaKimberlyAHouser(5) explica como pode
ainteligênciaarticialmitigaroruído e o preconceito,
isto é, a discriminação, quando se trata de decidir
quem contratar para um emprego.
Parece, na verdade, inexistir qualquer insu-
perável antagonismo entre ambas as perspetivas.
Seráinjustoarmar queaaclamação dainteligência
articiale emespecial dasua utilizaçãono âmbito
da seleção de candidatos a emprego é mero canto de
sereia — tais ferramentas apresentam, na verdade,
vantagens não despiciendas —, mas, do mesmo passo,
importa lembrar que, pese embora a aparência criada
pela parte superior do corpo, uma sereia não é um ser
humano… Ou podemos dizê-lo parafraseando Ifeoma
Ajunwa(6)umalgoritmonãodeveservistocomoum
oráculo que tudo sabe, do alto da sua majestade ante
aingénuaintrepidezdequemointerpelaasabedoria
está em interrogá-lo e interpretá-lo com inteligência
e apuro crítico.
Nas linhas que se seguem, procuraremos, por
um lado, assinalar os benefícios que a utilização da
inteligênciaarticialpoderepresentarno âmbitoda
seleção de candidatos a trabalhadores, colocando o
acento tónico na sua aptidão para minorar o impulso
discriminatório que, quer dolosa quer inconsciente-
menteinquinafrequentemente tais decisõespor
outro, procuraremos explicar por que misteriosas vias
aquelainteligênciaarticialvema revelarseanal
articiosaredundandoosseusaparentementeasséti-
cos códigos binários em resultados cujo impacto sobre
sujeitos pertencentes a particulares categorias sociais
ébemdistintodovericadosobreaquelesforadetal
fronteira. É de discriminação, pois, também agora,
que falamos.
Pretendendoreetirsobre se e emquemedida
a utilização daqueles mecanismos tecnológicos
minora ou, ao contrário, potencia diferenciações de
duvidosa admissibilidade, não poderemos, por certo,
deixar de evidenciar alguns topoi de importância
crucial no contexto que aqui nos convoca do Direito
Antidiscriminação. Do mesmo modo, impõe-se levar
a cabo um conjunto de esclarecimentos terminológicos
no que respeita ao funcionamento dos algoritmos.
Tentaremos fazê-lo, com a natural consciência de que
falharemos, com toda a probabilidade, ao rigor da
linguagem tecnológica, mas também com o propósito
de escrever linhas que possam ser entendidas por quem
não domina as técnicas de programação informática.
Reconhecemos que “para prevenir o viés algorítmico,
Reforma Trabalhista.indb 347 03/06/2022 11:45:09
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REFORMA TRABALHISTA: NOVAS TECNOLOGIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA
asdeniçõesjurídica e técnica do que seja ‘justiça
algorítmicadeveriam alinharse(7), mas não é de tal
monta o nosso objetivo. Bastamo-nos com o propósito
queédesaantecustaencontrarumtextoquenão
sereraaos algoritmos como black boxes(8) — de, no
mencionado contexto da contratação laboral, procurar
explicarcomopode um robô cruzarocaminho do
princípio da igualdade. É por estes esclarecimentos
terminológico-conceptuais que principiaremos.
Consignaremosnalmentealgumasnotasbre-
ves às propostas que a doutrina vem apresentando
em vista da superação do problema da discriminação
emergente do uso de algoritmos, enquanto, do mes-
mopassoassinalaremosasdiculdadessentidas
Notasdeesclarecimentoterminológicoconceptual
Discernindoàsuperfícieassinapsesda
inteligênciaarticial
Um algoritmo — designação derivada do
matemáticopersaAlkhwarizmi(9) — é um sistema
computacional, ou de matemática aplicada(10), capaz
de tomar decisões, ou de dar respostas (output ou
outcomeatravésdainteligênciaarticialecombase
nos dados (input) que lhe são fornecidos. A decisão
algorítmica consiste na resposta a uma pergunta
(target variable), à qual o programador funcionaliza
o sistema, o que, evidentemente, implica traduzir o
propósito visado para linguagem computacional. É
necessário, por outro lado, fornecer-lhe um conjunto
XIANGAliceTopreventalgorithmicbiaslegalandtechnicaldenitionsaroundalgorithmicfairnessmustalignPartnership
in AI, marDisponívelemhpswwwpartnershiponaiorgtopreventalgorithmicbiaslegalandtechnicaldenitions
aroundalgorithmicfairnessmustalign. Veja-se, ainda, XIANGAliceRAJIInioluwaDeborahOn the Legal Compatibility of Fairness
DenitionsCornellUniversityDisponívelemhpswwwarxivvanitycompapers.
PorexemploHOUSERKimberlyACanAISolvecit., p. 340 e ss.
KNUTH Donald EAlgorithms inmodernmathematics andcomputerscience Computer Science Department — Stanford
UniversitypessDisponívelemhpsappsdticmildtictrfulltextuapdf
DonaldEKnuthOp. cit.) sublinha que a descrição do algoritmo como uma ferramenta informática põe em evidência não
tanto o sistema em si mesmo mas o equipamento através do qual opera.
Em particular sobreas correlações estabelecidaspor estes sistemasWILLIAMS BetsyAnneBROOKS CatherineF
SHMARGADYotamHowAlgorithms DiscriminateBasedon DataThey LackChallengesSolutions andPolicyImplications
Journal of Information Policy, n. 8, p. 78-115, 2018.
BAROCASSolonSELBSTAndrewDBig DatasdisparateimpactCalifornia Law Review, n. 104, p. 671-732, 2016. Podem
tambémencontrarse esclarecimentos acercadestes conceitos porexemplo em FrederikZuiderveen BORGESIUS Frederik
ZuiderveenDiscriminationarticialintelligenceandalgorithmicdecisionmakingCouncil of Europe p. 8 e ss.,Disponívelem
hpsrmcoeintdiscriminationarticialintelligenceandalgorithmicdecisionmakingdGANGADHARANSeeta
PeñaJĘDRZEJNiklasBetweenantidiscriminationanddataunderstandinghumanrightsdiscourseonautomateddiscrimination
in Europe. LSE — Department of Media and Communications,Londres Disponívelem hpeprintslseacuk
Gangadharan_Between-antidiscrimination_Published.pdfRAUB McKenzie Botsbias and BigData articial intelligence
algorithmic bias and disparate impact liability in hiring practices. Arkansas Law Review, v. 71, n. 2, p. 529-570, 2018.
BAROCASSolonSELBSTAndrewDBigDatasdisparateimpactCalifornia Law Review, n. 104, p. 681 e ss., 2016
KINGAllanGMRKONICHMarkoJBigDataandtheriskofemploymentdiscriminationOklahoma Law Review, v. 68,
n. 3, p. 555-584, 2016.
de dados (training dataoudadosdetreinamentoo
sistema irá monitorizá-los (data mining, ou mineração
de dados) e aprender com eles (data learning), isto é,
captar as correlações entre eles(11) e, assim, criar pa-
drões, modelos (models), que vão possibilitar, então,
a associação de uma categoria, ou etiqueta (class label),
aos dados que se façam entrar no sistema(12). Um
dos exemplos mais comuns e também de mais fácil
compreensãoéodoalgoritmoqueltramensagens
de SPAM. Ao denunciarem determinada mensagem
como sendo desse tipo, os utilizadores fornecem ao
sistema algorítmico inserido nos respetivos equipa-
mentos eletrónicos informação sobre os conteúdos
a etiquetar dessa forma. Colhido um conjunto de
informações deste tipo, o algoritmo estabelece cor-
relações entre os conteúdos e a categorização dos
mesmos como SPAM ou não-SPAM e concebe um
modelo que lhe permitirá, automaticamente, fazer
essaclassicaçãoTodos sabemos com efeitoque
muitas das mensagens que, de facto, associamos a
esse tipo de conteúdo são remetidas para uma pasta
de SPAM que o sistema criou por nós, para não inqui-
narem as nossas caixas de correio. Sabemos também,
contudo, que às vezes vai para a pasta do SPAM uma
mensagem na qual temos interesse e que jamais,
com a nossa inteligência humana, etiquetaríamos
desse modo(13)… É que o algoritmo, embora capaz
de estabelecer correlações, não as distingue de uma
relação de causa-efeito(14). Portanto, uma mensagem é
classicadacomoSPAM por apresentar traços que a
correlacionam com as anteriormente etiquetadas des-
sa forma e não por ser, efetivamente, SPAM. De resto,
Reforma Trabalhista.indb 348 03/06/2022 11:45:09
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