Uma Abordagem do Direito Fundamental de Acesso à Justiça como um dos Elementos Fundamentais da Justiça Social: o que baliza uma sociedade justa?

AutorUlisses Pereira Terto Neto
CargoUniversidade Federal do Maranhão (UFMA)
Páginas11-25

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1 Introdução

Imersos no obscurantismo da Idade Média, carentes de direitos fundamentais e desprovidos até mesmo do direito de decidir sobre seus próprios destinos, milhares de seres humanos tiveram um fim trágico, notadamente em virtude de questões relacionadas com poder e fé. Nesse sentido, a influência dos portentosos clérigos – sacerdotes poderosos, em uma época em que o Estado e a Igreja confundiam-se – sobre suas vidas sufocoulhes a alma sem, contudo, adestrar a resistência ou asfixiar a esperança.

Na verdade, tem-se que a luta pela sobrevivência, assim como o grito em defesa, e pelo respeito à dignidade da pessoa humana, mesmo que timidamente, aflorava já em oposição aos cárceres e às atrocidades cometidas tanto pelos déspotas esclarecidos quanto pela Santa Inquisição. Ademais, tem-se que a dialética entre oprimidos e opressores fez-se presente naquele dado momento histórico, confirmando um traço peculiar de todas as sociedades humanas, qual seja, de que a história da civilização humana é a história da luta de classes1.

Com isso, faz-se importante notar que dessa oposição entre opressores e oprimidos – presente no feudalismo e evidenciada por Marx e Engels como um traço peculiar da História das sociedades humanas – resultou uma transformação revolucionária de toda a sociedade feudal, culminando com o fim do antigo regime e a ascensão da burguesia ao poder político. Obviamente que outros fatores, em sua maioria de ordem econômica e política, contribuíram para o declínio do feudalismo, mas há de se admitir que o desenvolvimento da temática dos direitos da pessoa humana, da própria ideologia dos direitos humanos

– em grande parte decorrente da necessidade de seimplementar uma estrutura político-administrativa que favorecesse a hegemonia liberal burguesa – foi, por via de conseqüência, viabilizado.

Assim, é forçoso reconhecer que, com o advento da Revolução Francesa, notadamente de caráter político-revolucionário, dá-seinício a uma nova fase na História da Humanidade, com a pessoa humana2 como centro e a razão como norteadora das práticas científicas, sociais e políticas. Sob essa era da razão, que se inicia a partir desse recorte epistemológico com o surgimento da Modernidade, a pessoa humana passa a ser titular de direitos, ocasionando uma mudança na relação política até então presente.

Em outras palavras, houve uma inversão da relação direitos x deveres entre o soberano e a coletividade, uma vez que, antes da Revolução Francesa, a pessoa humana não dispunha de direitos, apenas de deveres. Dessa forma, com a vitória do movimento político-revolucionário francês, o indivíduo passa a ser titular também de direitos, o que pode ser interpretado como um dos marcos do nascimento dos direitos humanos.3

Sem embargo, tem-se como outro marco na luta em defesa dos direitos humanos a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, quando se inicia uma “nova fase do desenvolvimento da luta em defesa dos direitos humanos, com o surgimento de um novo ramo do direito, caracterizado como um direito de proteção: o Direito Internacional dos Direitos Humanos” (HIDAKA, 2002, p. 23). Com efeito, o reflexo imediato desse novo quadro mundial é percebido com a implementação do processo de universalização dos direitos humanos, através de pactos e tratados internacionais, que norteiam os processos legislativos nacionais, gerando ainstitucionalização das demandas dos movimentos sociais organizados, com a positivação dos direitos fundamentais da pessoa humana.

Tendo em vista que esse processo de mudança social tem sido gradativo, dando-se através de um embate dialético de forças contrárias, principalmente no tocante à garantia efetiva dos direitos, que passaram a ser positivados em constituições políticas, ainda hoje persiste a luta socialpara se garantir, no plano material, os direitos fundamentais que propiciem a plena dignidade da pessoa humana.4

Em suma, uma mudança de materialidade na conjuntura brasileira, com os direitos fundamentais garantidos também materialmente, faz-se urgente e necessária. Nesse sentido, comentando sobre o percurso histórico dos problemas ligados à cidadania e aos direitos humanos no Maranhão e no Brasil, Costa (2004, p.7-8), em “Estado, direitos humanos e cidadania”, afirma:

Outra hipótese para se pensar o problema da violação sugere que a legislação acerca dos DH no Brasil instituiu direitos, mas não fez acompanhar, simultaneamente, de todos os instrumentos necessários à observância dos mesmos, situação esta que resulta em defasagem entre o direito proclamado e o direito efetivado, o que nos permite concluir que direitos estariam sendo violados por razões que poderíamos classificar como estruturais, ou seja, relacionadas a características materiais e/ou culturais mais permanentes da sociedade. Nessa perspectiva, a luta por direitos necessita se configurar como uma luta contra uma cultura difusa de autoritarismo social.

Ressalte-se, por oportuno, o trágico paradoxo presente na realidade brasileira, onde o aparato estatal serve mais àqueles que detêm o poder político do que àqueles que necessitam de garantias mínimas para uma vida digna (desprovidos de qualquer poder), especialmente quanto aos seusPage 13 direitos fundamentais. Ou dito de outra forma: não obstante a existência de farta legislação constitucionaleinfraconstitucionalque, pelo menos formalmente, garante os direitos fundamentais da pessoa humana no Brasil, no plano material, a realidade é deveras diferente.

A situação se agrava, ao observar-se o paradigma do acesso aos direitos fundamentais, particularmente do direito fundamental de acesso à justiça5, que coloca a todos,independentemente de raça, cor, fé ou condição econômica, como titulares desse direito fundamental, que é conditio sine qua non à exigência dos demais. Com efeito, nesse cenário de inacessibilidade aos direitos fundamentais, tem-se que – dentre outros aspectos – o exercício do direito fundamental de acesso à justiça se apresenta como um elemento eficaz para garantir materialmente os demais direitos fundamentais do indivíduo. Assim, observa-se, na conjuntura nacional atual, que sem um acesso efetivo à justiça não pode haver um exercício eficaz da dignidade da pessoa humana e, por via de conseqüência, não pode haver justiça social.

De fato, é pacífico o entendimento de que os direitos fundamentais deveriam ser assegurados com absoluta prioridade pelo Estado6, tanto quanto pela sociedade civil, em todas as instâncias competentes. Contudo, em isso não ocorrendo – como de fato não ocorre em solo nacional–, o direito fundamental de acesso à justiça mostra-se eficaz para reprimir eventuais desrespeitos, violações ou mesmo a inobservância dos direitos humanos. Ademais, faz-se necessário explicitar que uma realidade de justiça social não se apresenta como verdadeira na sociedade brasileira, o que, por via de conseqüência, gera desigualdade, posto que a grande maioria dos cidadãos não dispõe de mecanismos efetivos para ter suas necessidades satisfeitas, seus direitos fundamentais efetivados, donde se concluique a pobreza e a exclusão social, fatores queinviabilizam ajustiça social, constituemse em um problema persistente no cenário nacional.

Com efeito, parece evidente que a pobreza é o elemento centraldainjustiça socialno país, de forma que, em se resolvendo a questão da pobreza e da exclusão social, reduzir-se-á, consideravelmente, o quadro de injustiça social nacional.7

2 O direito fundamental de acesso à justiça como um dos elementos fundamentais para a consecução da justiça social

Levando-se em consideração a problemática da garantia aos direitos fundamentais no Brasil, a questão central das lutas sociais pelo acesso à justiça configura um processo dialético necessário e permanente, especialmente em áreas onde a distribuição das riquezas nacionais é injusta, o que ocasiona grande exclusão social8. Neste diapasão, é correto afirmar-se que a luta social pelo exercício pleno e efetivo do direito fundamental de acesso à justiça é, também, um elemento fundamental para a consecução da justiça social no Brasil. De qualquer forma, tem-se que o entendimento de políticas públicas orquestradas pelo Estado e voltadas para o combate à pobreza e à exclusão social deve passar por uma reflexão profunda do que seria uma sociedade justa.

Portanto, sustenta-se, no presente artigo, que a compreensão histórica da categoria justiça social9 – no caso, seria mais apropriado afirmar-se: a compreensão do histórico quadro deinjustiça social no Brasil – possibilita o combate à pobreza e à exclusão social, bem como a efetivação de novas perspectivas de mudança social para o quadro sóciopolítico nacional, tendo como norte a garantia não somente formal, mas também, e principalmente, material de que os direitos fundamentais da pessoa humana serão exercidos por todos os indivíduos.

2. 1 Os limites da injustiça e a resistência social: por uma nova cidadania

Evidenciou-se, anteriormente, que a história da civilização humana é marcada pela dialética entre opressores e oprimidos. Essa lógica tem se efetivado, sem exceção, em todas as formas de organização humana, mesmo naquelas onde os problemas da autoridade, da divisão do trabalho e da distribuição de bens e serviços foram política e culturalmente resolvidos, de forma diferente do modelo ocidental, ou seja, modos diversos de lidar com os problemas sociais não eliminam a opressão, intrínseca em qualquer sociedade.

Tais sociedades, para solucionar os...

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