O ajuizamento da ação civil pública da lei n. 7.913 para imputar responsabilidade à companhia e de arbitragem para os mesmos fins é inconstitucional

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C A P Í T U L O
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O ajuizamento da ação
civil pública da lei n. 7.913
para imputar respon-
sabilidade à companhia
e de arbitragem para
os mesmos fins é
inconstitucional
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3.1 a função social da propriedade
A ideia de coordenação de classes sociais medeia a relação
entre o ius abutendi e as forças de oposição à propriedade
privada por meio do implante de um elemento solidarístico
nas dimensões axiológica e sociológica do Direito.1
A concepção tradicional do direito de propriedade,
sob forte inuência de uma consciência pré-jurídica do
fenômeno que a ele se refere, atribui ao “dono” um poder
absoluto em relação à coisa sob o seu domínio, para a usar
(utendi), para dela gozar (fruendi) e mesmo para a destruir
(abutendi), segundo a sua vontade.
Essa concepção sofreu, ao longo dos séculos e dos muitos
inuxos civilizatórios, uma gradativa redenição semântica.
E não será outra a causa, senão uma antecedente redenição
do conteúdo da ética.
É certo que as visões coletivistas do mundo zeram
pressão sobre a propriedade privada, ao ponto de ruptura,
como as que, de fato, trabalharam para o seu esvaneci-
mento – com avanços e retrocessos – na União Soviética,
a partir da Revolução de Outubro de 1917 e, sob a sua
inuência, com a internacionalização do comunismo.
O aparecimento do Estado do Bem-Estar Social foi uma
resposta liberal ao impulso de relativização da propriedade.
E não é à toa que a ideia de função social da propriedade
apareceu, já nos anos 1910, na Europa, como uma tentativa
1 Sobre a solidariedade no Direito: supiot, Alain (Coord.). La solidarité: enquête
sur un principe juridique. Paris: Odile Jacob, 2015; brunkhorst, Hauke.
Solidarity: from civic friendship to a global legal community. Cambridge, Ma:
mit Press, 2005; théron-hecquard, Maryvonne. Solidarité(s): perspectives
juridiques. Toulouse: Presses de l’Université des Sciences Sociales de Toulouse,
2008; martín, Carlos de Cabo. Teoría Constitucional de la solidaridad. Madrid:
Marcial Pons, 2006.
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de coordenar as classes sociais; uma tentativa precisamente
projetada para suplantar o antagonismo de classes denun-
ciado pelo marxismo.
Tratou-se, a toda prova, de um esforço de transformação
social por meio do Direito.
A famosa aula de Léon Duguit, na Faculdade de Direito
de Buenos Aires
2
, que daria vida ao trabalho seminal sobre
“la proprietè fonction sociale”3, representa esse esforço da
Política do Direito para transformar a dogmática, o direito
objetivo e jurisdicizar, em princípio, uma relativização do
direito de propriedade.
E é por isso que armarmos que a ideia de articulação
social, que subjaz à função social da propriedade, preside a
relação entre o ius abutendi e o m da propriedade privada,
mediante a introdução de um elemento solidarístico nas
dimensões axiológica e sociológica do Direito.
O direito de propriedade ganha um novo signicado,
submetido a interesses transindividuais, que desbordam
o campo dos interesses exclusivamente egoísticos do seu
titular, porque interessam toda a sociedade, ao contemplar
elementos de produção. Deveres passam a condicionar o
2 Trata-se de conferência, a última de uma série de seis, proferida em Buenos
Aires, em setembro de 1911. Cf. Duguit, Léon. Les transformations générales
du droit privé depuis le Code Napoléon. 2. éd. Paris: Felix Alcan, 1920. pp. 147
ss. Entre nós, é notória a opinião de Fábio Konder Comparato. Cf. “Função
social da propriedade dos bens de produção”. Comunicado apresentado no xii
Congresso Nacional de Procuradores de Estado, Salvador, de 1 a 5 set. 1986,
painel sobre “A função social da propriedade”. Revista de Direito Mercantil,
Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, v. 25, n. 63, pp. 71-79, jul./set.
1986. “Estado, empresa e função social”, Comunicação à xvi Conferência
Nacional dos Advogados, Fortaleza, set. 1996. Revista dos Tribunais, São Paulo,
v. 85, n. 732, pp. 38 ss., out. 1996.
3 Ideia semelhante, no que concerne à função social da propriedade, já havia sido
proposta pelos Fisiocratas. Cf. Hugon, Paul. História das doutrinas econômicas.
6. ed. São Paulo: Atlas, 1959, p. 118.

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