Análise jurisprudencial da responsabilidade civil nos ensaios clínicos

AutorPaula Moura Francesconi de Lemos Pereira
Páginas509-535
ANÁLISE JURISPRUDENCIAL
DA RESPONSABILIDADE CIVIL
NOS ENSAIOS CLÍNICOS1
Paula Moura Francesconi de Lemos Pereira
Sumário: 1. Considerações iniciais – 2. As decisões judiciais acerca da responsabilidade civil nos ensaios
clínicos – 3. A regulação, estrutura e função dos ensaios clínicos – 4. O regime jurídico da responsabili-
dade civil nos ensaios clínicos – 5. Considerações nais.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Inicialmente, antes de adentrar no tema central do presente artigo, que foi fruto
da tese de doutorado defendida em 2017, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
sob orientação da eterna professora, Heloisa Helena Barboza, e intitulada “A respon-
sabilidade civil como instrumento de proteção à pessoa humana nos ensaios clínicos”,
não poderia deixar de fazer um breve registro de toda admiração e gratidão que tenho
pelo professora Heloísa a quem esta obra homenageia.
Em 2008, a professora Heloisa Helena Barboza me apresentou o Biodireito e me
encantou com diversos questionamentos profundos de cunho ético e juslosóco
acerca da vida, passando desde o seu início, do indecifrável destino dos embriões e suas
innitas possibilidades de manipulação, até o m da vida, com as escolhas acerca da
terminalidade, eutanásia, ortotanásia. Os desdobramentos trazidos na seara não patri-
monial foram enfrentados diante dos constantes avanços biotecnológicos e da falta de
respostas do Direito para as vicissitudes das situações jurídicas existenciais e dúplices.2
E de forma tão singela, tudo se descortina, um novo mundo se abre, a reexão ganha
asas e não mais é possível manter o saber aprisionado. Resta evidente que as categorias
jurídicas tradicionais não mais suportam a nova estrutura posta e desvendar as funções
dos institutos dentro da legalidade constitucional passa a ser o novo desao.
Não existe privilégio maior do que o aprender com a professora Heloisa Helena,
pensar para além dos padrões insucientes impostos em uma sociedade ainda conserva-
dora e limitada frente à imensidão do porvir, e porquê não, do já presente futuro.3 Desta
1. O presente artigo é fruto de pesquisa realizada para desenvolvimento de tese de doutoramento.
2. Cf. TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; KONDER, Carlos Nelson. Situações jurídicas dúplices: continuando o
debate sobre a nebulosa fronteira entre patrimonialidade e extrapatrimonialidade. In: TEIXEIRA, Ana Carolina
Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima (Org.). Contratos, família e sucessões: diálogos interdisciplinares.
Indaiatuba: Foco, 2019, v. 01, p. 135-160.
3. Cf. BARBOZA, Heloisa Helena. Direito Civil e tecnologia: vivendo o futuro. In: TEPEDINO, Gustavo; PEREIRA,
Paula Moura Francesconi de Lemos; SANTOS, Deborah Pereira (Coord.). VII Congresso do IBDCivil, 2022, Rio
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PAUlA MOURA FRANCESCONI dE lEMOS PEREIRA
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profunda troca que transcende o ambiente acadêmico e do resultado corporicado em
artigos cientícos escritos, até em coautoria;4 o prefácio dos meus dois livros,5 frutos
da já citada tese e da dissertação de mestrado, esta defendida em 2010, com o tema:
“Relação médico-paciente: o respeito à autonomia do paciente e a responsabilidade
civil do médico pelo dever de informar”,6 nasceu uma verdadeira amizade, ganhei uma
orientadora para vida, compartilhamos não só o saber jurídico, mas sua experiência
humana de ser. Ficam os ensinamentos diários e a inspiração para continuar em busca
dos projetos mais genuínos que unem o Direito e a Ética em defesa da pessoa humana
vulnerável – o Instituto de Biodireito e Bioética – IBIOS.
Das innitas reexões acerca de matérias não naturalmente exploradas pela doutri-
na e jurisprudência, eis que emergem os segredos da caixa de pandora da experimentação
e os desaos advindos das pesquisas em seres humanos. Graças à vasta experiência da
professora Heloísa Helena na área da saúde, de sua atuação em Comitês de Ética em
Pesquisa, e seu doutoramento na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, ENSP,
Brasil, me arvorei em desbravar o obscuro mundo dos ensaios clínicos. Com o olhar
sempre voltado à tutela dos participantes de pesquisa, parte vulnerável, e que carece de
proteção frente aos danos a que estão expostos em razão dos riscos das pesquisas, nas-
ceu a tese sobre o regime jurídico da responsabilidade civil, que é um dos instrumentos
que visam garantir a dignidade do participante de pesquisa, sua proteção e reparação.
Os ensaios clínicos7-8 vêm ganhando os noticiários e destaque no cenário geopolítico
global em virtude da Covid-19, visto a urgência quanto a busca da cura e tratamento
dessa moléstia. Ao longo dos anos, as pesquisas clínicas têm se aperfeiçoado com o au-
xílio de novos estudos, a introdução de novas tecnologias, além do uso da inteligência
articial.9 É notadamente na etapa da Descoberta que se pode vericar a adoção de novas
de Janeiro. Direito Civil Constitucional – a construção da legalidade constitucional nas relações privadas – Anais
do VII Congresso do IBDCivil. Indaiatuba-São Paulo: Editora Foco, 2021. v. 1. p. 297-312.
4. PEREIRA, Paula Moura Francesconi de Lemos; ALMEIDA JUNIOR, Vitor; BARBOZA, Heloisa Helena. Pro-
teção dos dados pessoais da pessoa com deciência. In: TEPEDINO, Gustavo; FRAZÃO, Ana; OLIVA, Milena
Donato. (Org.). Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e suas repercussões no Direito Brasil. São Paulo: omson
Reuters, 2019, v. 1, p. 531-560.
5. PEREIRA, Paula Moura Francesconi de Lemos. A responsabilidade civil nos ensaios clínicos. São Paulo: Foco,
2019. v. 1.
6. PEREIRA, Paula Moura Francesconi de Lemos. Relação médico-paciente: o respeito à autonomia do paciente e
a responsabilidade civil do médico pelo dever de informar. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. v. 1.
7. As pesquisas clínicas também são chamadas de ensaios clínicos, estudos clínicos ou pesquisas biomédicas,
termos que serão utilizados indistintamente.
8. Nos termos do Art. 6º, XII da RDC 8/2015 da ANVISA “Ensaio clínico – pesquisa conduzida em seres humanos
com o objetivo de descobrir ou conrmar os efeitos clínicos e/ou farmacológicos e/ou qualquer outro efeito
farmacodinâmico do medicamento experimental e/ou identicar qualquer reação adversa ao medicamento
experimental e/ou estudar a absorção, distribuição, metabolismo e excreção do medicamento experimental
para vericar sua segurança e/ou ecácia;” BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução da
Diretoria Colegiada – RDC 9, de 20 de fevereiro de 2015. Dispõe sobre o Regulamento para a realização de
ensaios clínicos com medicamentos no Brasil. Diário Ocial da União, Brasília, DF, 3 de março de 2015, seção
1, n. 41, p. 69.
9. Outro avanço em sede de pesquisa é o uso de “Órgão-em-chip” como uma opção para substituir a experimentação
animal em estudos cientícos. Disponível em: https://jornal.usp.br/tecnologia/orgao-em-chip-e-opcao-para-
-substituir-experimentacao-animal-em-estudos-cienticos/. Acesso em: 20 fev. 2022.
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