Antônio Cândido e a transição política a partir de 1945: ação, conhecimento e mudança social

AutorMaria José de Rezende
CargoUniversidade Estadual de Londrina
Páginas444-468

Maria José de Rezende1

    Antônio Cândido and the Brazilian political transition since 1945: action, knowledge and social change.

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Introdução

Antônio Cândido cursou direito e filosofia simultaneamente, a partir de 1939. Como estudante, ele já se encontrava envolvido em algumas atividades políticas de oposição ao Estado Novo, ao fascismo e ao integralismo. Em entrevista publicada na revista Teoria & Debate, de 1988, ele afirma que sua posição política de esquerda assentada numa perspectiva nem stalinista nem trotskista, mas sim socialista-democrática, definiu-se no início da década de 1940 com sua inserção nos embates políticos que se formaram em torno da revista Clima, a qual tinha, em seus quadros, intelectuais (Paulo Emílio Salles Gomes, por exemplo) que se voltavam para a busca por soluções políticas condizentes com os problemas nacionais brasileiros.

Sua militância política esteve voltada para a validação de ações construtoras da democracia, por isso, seu empenho na Esquerda Democrática (ED) e no Partido Socialista para, através de todas as brechas possíveis, lutar contra os diversos modos de autoritarismo instalados na sociedade brasileira. Quando iniciou suas atividades como assistente do professor Fernando de Azevedo, na cadeira de Sociologia 2,na Universidade de São Paulo, ele mostrava-se engajado em várias atividades intelectuais e políticas que movimentavam a vida nacional no decorrer da década de 1950.

A partir de 1958 3, Antônio Cândido empenhou-se, como professor de Literatura Brasileira, num primeiro momento, e de Teoria Literária, num segundo. Desde então, ele produziu uma das mais importantes reflexões sobre a vida social e literária do país. Em suas atividades acadêmicas, sempre esteve presente uma marcante preocupação com as formas de expressão (literárias ou não) da vida política. Basta acompanhar sua produção intelectual, ano a ano, para concluir que temas como as transições políticas, a democracia, as formas de expressão do pensamento, as mudanças sociais e os vícios políticos autoritários sempre estiveram presentes em suas discussões. No período de transição do Estado Novo para a democracia, Antônio Cândido já definia, por meio de suas atuações políticas e intelectuais, sua postura de homem de ciência e de ação ao mesmo tempo.

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Em seus artigos, entrevistas e livros sobre a conjuntura política brasileira nas décadas de 1940 e 1950, Antônio Cândido faz uma ampla reflexão sobre os caminhos e os descaminhos da transição instaurada com o fim da ditadura do Estado Novo, que vigorou no país entre 19374 e 1945. Ganham destaque em suas discussões as seguintes questões: a) Como construir uma consciência crítica não somente demolidora, mas também analítica e funcional que fosse propositiva e capaz de ajudar a construir relações sociais mais democráticas no país? b) Que agentes sociais poderiam flexibilizar o Estado oligárquico brasileiro e qual era o papel dos setores médios nesse processo? c) De que natureza eram as divergências políticas entre alguns grupos (PCB e PSB, principalmente) de esquerda? d) No âmbito da esquerda quais grupos estavam, de fato, comprometidos com a instauração de uma sociedade democrática?

Antônio Cândido tratou dessas questões em ocasiões diversas, ou seja, tanto em seus escritos das décadas de 1940 e de 1950 quanto nas publicações posteriores. Nas entrevistas e nos artigos das décadas de 1970, 1980 e 1990, há um constante retomar dos problemas suscitados pelo processo de transição que antecedeu o golpe militar de 1964. As entrevistas publicadas nas revistas Trans/Form/Ação (1974); Teoria & debate (1988) e Estudos de sociologia (2006) podem ser citadas como exemplo de constante retorno àquelas questões que nortearam suas reflexões e suas ações em meados do século XX.

Neste artigo, lança-se mão, dentre outros, dos artigos publicados numa coletânea que foi intitulada Textos de intervenção e das entrevistas mencionadas no parágrafo anterior. Há nesses materiais expressiva reflexão sobre a conjuntura política pós-Estado Novo. Atravessa todas as discussões de Antônio Cândido a preocupação com elucidar o contexto social das opções políticas dos homens de ciência e de ação que se empenhavam em transmutar o país rumo a uma sociedade socialista e democrática. Todavia, segundo ele, era necessário ater-se às especificidades sociais e políticas brasileiras para não cair em equívocos, muito comuns na década de 1950, em que se seguiam insistentemente receitas de mudanças desconexas da realidade do país.

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Fica evidenciado, nos escritos de Antônio Cândido, que a sensibilidade política somente se cristaliza em razão da clareza acerca das singularidades e das complexidades brasileiras. Esse entendimento deve ser lido como parte de um amplo debate político que ganhava consistência na década de 1950 e chamava a atenção de inúmeros intelectuais que se ocupavam de encontrar a melhor forma tanto de explicar o Brasil quanto de intervir em seus processos de mudança.

A título de esclarecimento, já que não é possível, neste artigo, recuperar todo esse debate, em vista de sua amplitude e complexidade, constata-se que as preocupações de Antônio Cândido com a necessidade de uma atitude teórica voltada para a compreensão da singularidade social, política e cultural brasileira inscrevia-se na obsessiva luta de muitos outros intérpretes do Brasil para encontrar meios de intervir no processo político brasileiro, visando a direcionar as mudanças rumo a uma redefinição do padrão de organização social e do padrão de domínio político vigentes em meados do século passado.

Celso Furtado, Josué de Castro, Florestan Fernandes, Fernando de Azevedo, dentre outros, oferecem, cada um a seu modo e de maneira distinta, as melhores pistas para compreender as inúmeras faces e nuanças de um debate obstinado por encontrar a melhor forma de combater a ação política reacionária que tendia a preservar o estado de coisas vigente. Na condição de homens de ciência e de ação, eles visavam a combater uma política conservadora que perpetuava a exclusão. Esse era o norte das ações dos intelectuais que objetivavam fortalecer atitudes - as quais devem ser entendidas como a disponibilidade para um modo de agir - capazes de transfigurar a vida social brasileira.

A construção de uma consciência crítica não somente demolidora, mas também analítica e funcional

A postura teórico-política de Antônio Cândido deve ser lida à luz do seguinte desafio: conhecer para mudar 5.Dentre os dilemas que se colocavam para aqueles (tanto políticos quanto intelectuais) que tinham a intenção de contribuir com o processo de transição política que se instaurou na década de 1940 estava, segundo Cândido, o desafio de se posicionar não só como demolidor,

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mas também mediante críticas e ações propositivas. Tentando responder a um inquérito feito por Mário Neme, que coordenava a obra Plataforma da nova geração (1945), ele afirmava que a desorganização social vigente naquele momento levava a uma "ânsia desesperada de entender a confusão" que se havia instalado no mundo após a Segunda Guerra. e isso potencializava a emergência de posturas demolidoras, as quais nem sempre conseguiam ser, de fato, indicadoras de novos caminhos a ser construídos.

Antônio Cândido criticava os entusiasmos nervosos que eram gastos inutilmente e chamava a atenção para a necessidade de que aqueles que estavam comprometidos com a transição democrática iniciada em 1945 não deixassem levar-se por uma inquietude que nada construía, de fato. Entender o significado social e político daquele momento era enorme desafio. Ele elogiava o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) que conseguia exprimir em seus escritos "essa coisa invejável que é o amadurecimento paralelo aos fatos; o amadurecimento que significa riqueza progressiva, e não redução paulatina a princípios afastados do tempo" (CANDIDO, 2002, p. 239).

A construção de uma consciência crítica passava por um entendimento maduro do tempo presente. Esse era, segundo ele, o grande desafio. Era preciso vencer os desnorteios, os experimentalismos e avançar sob um terreno fértil já cultivado por intérpretes que tiveram papel fundamental no processo de decifrar o país. Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, dentre outros, tinham pavimentado uma estrada de enorme esforço intelectual - isso não significava, porém, inexistência de contradições, de discordâncias, de antinomias - que teria de ser o norte para aqueles empenhados em contribuir para as mudanças aparentemente possíveis a partir de 1945.

Note-se que Antônio Cândido insiste "na 'função' dos indivíduos e na sua organização 'em função' do tempo". Assim,

[...] encarada sob este aspecto funcional, me parece fora de dúvida que a minha geração é uma geração crítica. O que leva a admitir que, se é assim, é porque passamos no Brasil, ou pelo menos em São Paulo, por uma fase que exige um esforço de aclaramento, de compreensão, de classificação (CANDIDO, 2002, p. 240).

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Há nessa passagem, uma crença expressiva no papel que as ciências sociais e humanas deveriam desempenhar, no país, a partir de 1930. Elas teriam de agir no processo de formação de uma geração crítica e capaz de ações políticas substantivamente voltadas para construir uma nação mais inclusiva e democrática. Fazia-se, assim, uma exigência constante aos homens de ciência, os quais deveriam construir um agir pautado no conhecimento científico. Os intelectuais, ao adentrar a arena da política prática, por meio das militâncias partidárias e de outras...

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